13 Junho 2022
Desde o fim de maio, está nas livrarias italianas o livro “Agnus Dei. Gli abusi sessuali del clero in Italia” [Agnus Dei. Os abusos sexuais do clero na Itália], de Lucetta Scaraffia, Anna Foa e Franca Giansoldati (Solferino Editore). Trata-se de três autoras renomadas e de autoridade que também trabalham sobre a matéria específica há vários anos a partir da própria ótica profissional. Entre outras coisas, elas fazem isso em um país como a Itália, onde uma parte relevante da mídia participa ativamente do mau costume de não incomodar a Igreja e de não irritar a sua hierarquia, uma realidade midiática italiana que o correspondente em Roma do New York Times, Jason Horowitz, descreve como “safe space”, ou seja, um espaço seguro para a Igreja.
A reportagem é de Il Sismografo, 10-06-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Certamente, essa é a razão de fundo pela qual se fala muito menos na Itália sobre a questão da pedofilia clerical do que seria necessário pelo bem das vítimas, mas também da própria Igreja e da nação como um todo. Na Itália, o longo silêncio midiático sobre os abusos cometidos por membros do clero humilhou as vítimas, destruiu pais e familiares, encobriu cúmplices e correntes de ocultação, mas, acima de tudo, atrasou, como diria o Papa Francisco, “a verdade, a justiça e o acompanhamento rumo à cura”.
O livro “Agnus Dei” foi publicado mais ou menos nos dias em que a Conferência Episcopal Italiana (CEI) mudava a sua cúpula. O novo presidente, cardeal Matteo Zuppi, falando aos jornalistas, colocava no centro a questão das próximas investigações que a Igreja fará internamente para as denúncias posteriores ao ano 2000. O purpurado esclareceu alguns pontos do problema, mas outros permaneceram obscuros, e às vezes algumas as suas declarações aumentaram a perplexidade de muitos italianos, católicos ou não, diante do silêncio da hierarquia, longo demais, evasivo e confuso.
Há pelo menos três décadas, após a eclosão dos escândalos dos crimes de pedofilia na Igreja Católica, insiste-se em duas palavras: verdade e vítimas, acima de tudo! Mas infelizmente, por enquanto, não é assim. Ou, melhor, muitas, muitíssimas palavras, mas poucos fatos, escassos e em doses homeopáticas.
Como os pedófilos temem mais a imprensa do que o inferno, é urgente falar sobre isso, tirar o pó e abrir os arquivos, facilitar as investigações, ajudar as vítimas. Nada de justicialismo! Apenas justiça, que obviamente não é possível sem verdade.
Esse livro nos ofereceu a oportunidade de falar com L. Scaraffia, F. Giansoldati e A. Foa, e hoje publicamos primeiro a entrevista com Lucetta Scaraffia. Em breve, continuaremos com as outras duas autoras.
Nos últimos anos, sobre a delicada questão da pedofilia e sobre as violências e agressões de tipo sexual contra religiosas e deficientes por membros do clero, ouvimos até mesmo de importantes autoridades eclesiásticas que se trata de responsabilidades pessoais. Um exemplo: “A questão da pedofilia não diz respeito à Igreja como instituição, mas às pessoas que, por meio da instituição, fazem o que fazem. É justo que intervenham os responsáveis por essas pessoas, mas a responsabilidade não pertence à natureza da Igreja” (cardeal Fernando Filoni, 30 de novembro de 2018). Na sua opinião, é correto pensar assim?
Não, não é justo. É claro que não se pode negar a responsabilidade pessoal, mas ela se estende à instituição a que o culpado pertence e que não vigiou para evitar esse crime e que, além disso, na grande maioria dos casos, calou-se e tentou encobrir o escândalo, sem se preocupar com os danos sofridos pela vítima. Quem se posicionou claramente sobre as responsabilidades de toda a Igreja como instituição, e em particular sobre a responsabilidade das hierarquias eclesiásticas, foi Bento XVI na carta que escreveu sobre as acusações de ter encoberto um padre pedófilo quando era arcebispo de Munique e Freising. O papa emérito escreveu que, embora alegasse inocência em relação a essa acusação individual, não se sentia isento de culpa em geral, tendo ocupado cargos importantes dentro da Igreja. Por isso, chamou a instituição como um todo a assumir toda a responsabilidade em relação aos abusos, especialmente pela falta de reconhecimento do crime e da dor das vítimas. Mas, por enquanto, a sua voz permaneceu isolada.
Imediatamente após a publicação do relatório Sauvé na França, o Santo Padre, consternado, falou da “vergonha minha e vergonha nossa" (6 de outubro de 2021). Dois meses depois, em 6 de dezembro, no avião com o qual voltava do Chipre e da Grécia, falando dessa história, especificou: “Uma situação histórica deve ser interpretada com a hermenêutica da época, não com a nossa.” Esse pensamento causou muita confusão e desorientação. Como é possível ler corretamente o que Francisco disse?
“Vergonha nossa” não é suficiente como admissão de culpa coletiva: ainda é vergonha entendida apenas pelo comportamento desonesto de alguns padres, não admissão da responsabilidade coletiva em enterrar as denúncias de abuso e em lidar apenas com os culpados, nunca com as vítimas. No que diz respeito a essa referência à hermenêutica histórica, eu acho que é preciso distinguir dois níveis: o mais propriamente histórico e o moral. A análise do nível histórico – avançada por enquanto apenas por Bento XVI em um artigo em uma revista alemã – leva a explicar a intensificação dos abusos nos anos que se seguiram à revolução sexual, examinando a cultura dominante do período. De fato, são anos em que prevalece na sociedade ocidental a ideia de que a repressão do impulso sexual leva a desordens mentais e que a liberdade de praticar atos sexuais deve envolver também os menores.
Certamente, a Igreja e, de modo mais geral, o mundo religioso não foram impermeáveis a essas teorias, que, no entanto, nunca foram abordadas abertamente. Na mentalidade católica, a sexualidade foi examinada apenas dentro do casamento e em vista da procriação: qualquer outra manifestação errada era excluída e, portanto, a influência da revolução sexual em seu interior também foi ignorada. Do ponto de vista moral, a hermenêutica histórica não significa que os abusos sexuais devam ser julgados com base nas teorias da época em que foram perpetrados: trata-se de crimes, e a condenação dos crimes deve ser sempre a mesma, não pode mudar. Pelo menos dentro da moral católica. O problema, portanto, não é a hermenêutica, mas o mau hábito que prevalece nas hierarquias eclesiásticas de negar os abusos, de calar a voz das vítimas. Hábito com o qual elas ainda não acertaram as contas.
Na carta de renúncia (4 de junho de 2021) ao cargo de arcebispo de Munique e Freising, o cardeal Reinhard Marx escreve ao Santo Padre: “Substancialmente, para mim, trata-se de assumir a corresponsabilidade referente à catástrofe do abuso sexual perpetrado pelos representantes da Igreja nas últimas décadas. As pesquisas e as perícias dos últimos 10 anos me demonstram constantemente que houve falhas de nível pessoal e quanto erros administrativos, mas também um fracasso institucional e ‘sistêmico’.” O purpurado havia dito estas palavras antes desse julgamento conclusivo: “Vejo com preocupação que, nos últimos meses, se nota uma tendência a excluir as causas e os riscos sistêmicos ou, digamos também, as questões teológicas fundamentais e a reduzir a reelaboração a uma simples melhoria da administração.” Queremos perguntar a você, que faz parte do comitê nacional italiano de bioética, um comentário sobre a expressão “fracasso sistêmico”.
A expressão “fracasso sistêmico” explica claramente que o problema dos abusos tem as suas raízes no próprio sistema de governo da instituição, um sistema que envolve tanto uma superestimação da figura sacerdotal – que transformou o papel de serviço aos fiéis em um papel de poder social e psicológico – quanto uma adesão tácita das hierarquias à prática de abafar os escândalos para “salvar o bom nome da instituição”. É, portanto, o próprio sistema de funcionamento da Igreja que deve ser revisto: isto é, o tipo de recrutamento do clero, a preparação dos seminaristas, a presença e o papel ativo dos leigos, especialmente das mulheres.
Mas, sobretudo, deve ser repensado o Código de Direito Canônico, que não prevê o crime de estupro, mas o considera simplesmente uma transgressão ao sexto mandamento. Portanto, um pecado que pode ser perdoado, um pecado individual de impureza – como a masturbação – e não um ato violento que prejudica outra pessoa. Essa forma de considerar o caráter jurídico do estupro tem como consequência a negação de todo interesse pela vítima, que desaparece e não só não é indenizada e ajudada, como nem sequer é vista. É todo o sistema jurídico que deve ser mudado, portanto, e também deve ser abordado um sistema cultural que nunca levou em consideração o vínculo entre sexualidade e poder como questão central das relações humanas e de gênero em particular.
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“A expressão ‘fracasso sistêmico’ explica que o problema dos abusos tem suas raízes na própria instituição.” Entrevista com Lucetta Scaraffia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU