08 Junho 2022
O presidente russo quer vencer a batalha do trigo com a propaganda paga com propina. Para fazer com que ele não a vença, é preciso fazer com que o trigo chegue a quem dele tem necessidade.
O comentário é do embaixador italiano aposentado Stefano Stefanini, publicado em La Stampa, 07-06-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Uma partida a três é disputada em torno do trigo acumulado nos silos do Mar Negro. A Ucrâni a o produziu. A África o espera. A Rússia o controla.
O presidente de turno da União Africana, o senegalês Macky Sall, foi bater na porta do Kremlin. Encontrou um presidente russo acolhedor. Depois de colocar a corda do bloqueio naval no pescoço da agricultura ucraniana, Vladimir Putin jogou sobre Kiev e a União Europeia a responsabilidade pela catástrofe humanitária que ameaça muitos países africanos e asiáticos.
Na versão de Moscou, o problema não existe. Os ucranianos – não interpelados – não conseguem exportar o próprio trigo? A Rússia está pronta para fazer isso por eles a partir dos portos (ucranianos) dos quais se apossou com tiros de canhão: primeira solução.
Daqueles que ainda estão nas mãos de Kiev, em particular Odessa, devem ser eliminadas as barreiras das minas – colocadas para impedir o ataque de meios de desembarque russas: segunda solução.
Por fim, devem ser desbloqueadas as exportações russas de cereais e fertilizantes, que também são importantes para a África: as culpadas aí são as sanções da União Europeia.
Nem a União Europeia nem os Estados Unidos puniram as exportações de trigo russo para países terceiros; quanto aos fertilizantes, a única limitação é uma cota sobre as exportações russas para evitar que burlem a proibição do potássio de Belarus – uma sanção contra Minsk que remonta à instrumentalização bielorrussa de migrantes com destino à União Europeia via Polônia.
Porém, o fascínio nem tão discreto do Kremlin deve ter sido convincente. Assim que saiu, Sall se apressou em pedir a remoção das quase inexistentes sanções europeias sobre trigo e fertilizantes da Rússia. Muda pouco ou nada, mas marca um ponto de imagem a favor de Moscou. A Rússia exportará o seu trigo.
O nó diz respeito ao ucraniano. Até 75 milhões de toneladas até o outono [europeu], segundo Zelensky; mesmo fazendo a tara, uma cota não negligenciável das necessidades alimentares mundiais. Uma parte relativamente pequena é aquela de que a Rússia se apoderou e tenta exportar por conta própria. Não é nada menos do que um furto à luz do sol: querendo ou não, os agricultores ucranianos foram alistados no povo único teorizado pelo Kremlin.
Os estadunidenses já alertaram os potenciais importadores, principalmente africanos. Mas pedir que estes recusem os suprimentos alimentares de que têm uma necessidade extrema por serem “roubados” em uma guerra distante dificilmente é sustentável, mesmo em nível moral. A menos que sejam oferecidas alternativas eficazes.
A única alternativa é exportar o trigo acumulado em Odessa e no território sob o controle de Kiev que continua sendo o grosso das exportações esperadas pela África, com Egito, Marrocos e Tunísia na liderança. Como?
A Rússia, em palavras, não exclui isso, mas coloca condições que não estão plenamente explícitas. Moscou deve ser posto à prova. A Turquia, também grande importadora de trigo ucraniano, está tentando fazer isso. Uma mediação pragmática que pode ser bem sucedida.
A abertura de corredores alimentares não terá conotações antirrussas, mas deve respeitar a soberania e os interesses ucranianos. O papel parece ter sido predisposto para a ONU. A quadratura diplomático-logística do círculo levará tempo. Enquanto isso, devem ser feitos todos os esforços para aliviar o bloqueio marítimo com as alternativas ferroviárias e fluviais, que podem, porém, drenar quantidades reduzidas.
O importante é não sofrer passivamente a ofensiva de Vladimir Putin. Por bem ou por mal, ele está transformando o trigo ucraniano em uma arma russa. Os generais russos conseguem vencer as batalhas em Donbass apenas destruindo com os bombardeios por saturação. O presidente russo quer vencer a batalha do trigo com a propaganda paga com propina a Macky Sall. Para fazer com que ele não a vença, é preciso fazer com que o trigo chegue a quem dele tem necessidade.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Trigo, o último furto do Kremlin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU