Os nativos, a Igreja, a frente do Canadá. Entrevistas com Cassidy Caron e Raymond Poisson

Papa Francisco se reúne com delegações dos Povos Indígenas do Canadá (Foto: Vatican Media)

11 Mai 2022

 

“Através de suas vozes pude tocar com a mão e levar para dentro de mim, com grande tristeza no coração, as histórias de sofrimento, privações, tratamentos discriminatórios e várias formas de abuso sofridos por vários de vocês, particularmente nas escolas residenciais”. Assim, o Papa Francisco dirigiu-se em 1º de abril às delegações dos povos indígenas do Canadá em visita a Roma: Inuit, Métis e Primeiras Nações.

 

Papa Francisco com representantes das Primeiras Nações do Canadá. (Foto: Vatican Media)

 

O Pontífice expressou "indignação" e "vergonha" e uniu suas desculpas às dos bispos canadenses. As trocas a portas fechadas e o encontro final na Sala Clementina, acessível em vídeo no site vatican.va, representam um momento histórico. Por mais de um século, até 1995, gerações de crianças foram arrancadas de suas famílias e internadas em escolas católicas mantidas pelo governo com a tarefa de remover o "índio" que estava nelas. O trauma das violências e dos desaparecimentos afetou centenas de milhares de indivíduos e comunidades inteiras. A recente descoberta de valas comuns em escolas na Colúmbia Britânica e Saskatchewan aumentou tensão ao confronto entre comunidades indígenas, autoridades católicas e governo.

 

La Lettura” conversou online em francês com o presidente da Conferência Episcopal canadense Raymond Poisson, 64, bispo de Quebec que acompanhou as delegações indígenas a Roma. E depois entrevistou em inglês o presidente do Conselho Nacional Métis na sede da rua MacLaren em Ottawa.

 

Representantes da Nação Métis após encontro com o Papa Francisco na segunda-feira, 28 de março de 2022. (Foto: Vatican Media)

 

Também Cassidy Caron, 29 anos, de formação católica, mas que saiu da Igreja, também esteve presente no Vaticano. Os Métis são hoje cerca de meio milhão e descendem por etnogênese do encontro entre nativos e mercadores europeus. Juntamente com as Primeiras Nações e os Inuit, são um dos três povos aborígenes reconhecidos pela Constituição canadense de 1982 e entre as vítimas do "colonialismo ideológico" condenado por Francisco em 1º de abril.

 


 

A entrevista com Cassidy Caron, presidente do Conselho Nacional Métis do Canadá, é de Marco Ventura, publicada por La Lettura, 08-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista.

 

As desculpas, um passo à frente E agora abram os arquivos

 

O que significou a viagem a Roma?

Muito mal foi feito ao nosso povo através da Igreja Católica. Agora tenho muita esperança em uma relação que dará ao nosso povo uma vida melhor.

 

Vocês trabalharam nos palácios do Vaticano.

Nunca vi tanta opulência. Mas embora muitos de nós vivamos na pobreza, dizemos que somos ricos. Temos a cultura, a linguagem, a família. Temos o orgulho.

 

Como foi o encontro com o Papa?

Eu não fui apenas para encontrar o Papa, mas para promover a nossa agenda de verdade, cura, reconciliação e justiça com o maior número possível de pessoas.

 

E o Papa?

Ele foi muito empático. Ele quer que o sistema da Igreja mude.

 

Vamos falar sobre o sistema.

Não teria havido abusos sem o sistema do qual a Igreja fazia parte.

 

O Papa pediu desculpas pelas culpas de membros da Igreja.

Um grande passo em frente. Ele pediu desculpas pelo mal que aconteceu dentro da instituição, não pode mais ser negado...

 

Alguém nega?

Certo. Acusaram-nos de ter enganado o Papa.

 

Como se pode julgar eventos que ocorreram em um contexto tão diferente?

Abusar de uma criança física, emocional ou sexualmente nunca foi correto. O contexto não tem nada a ver com isso. Abusar de uma criança nunca é correto.

 

O próximo passo depois de um pedido de desculpas?

Que seja reconhecida a responsabilidade da instituição. E depois a ação. Deixamos ao Papa uma carta de propostas.

 

Vocês esperam que o Papa venha pedir desculpas em seu solo.

Estamos inextricavelmente ligados à terra. E, além disso, as desculpas do Papa valem tanto mais quanto mais sobreviventes ele encontrar. Em Roma havia apenas três.

 

As escolas residenciais não eram apenas católicas.

Nas nossas pradarias aquelas católicas eram a maioria. Mas centenas de escolas ficaram de fora do acordo com o governo e a Igreja sobre os ressarcimentos.

 

Vocês esperam a restituição de terras da Igreja Católica?

Sim, ela é a maior proprietária de terras do país e não paga impostos federais.

 

E acesso aos arquivos.

Acesso irrestrito. Ainda estamos longe da verdade.

 

Uma mulher líder perante o Papa.

A nossa é uma sociedade matriarcal. Com a chegada do governo e da Igreja, foram-nos impostos líderes homens.

 

Você também é um exemplo de mundial de liderança jovem.

Nossas comunidades estão prontas. Só isso me interessa. Eu retiro delas a autoridade para falar aos bispos, aos cardeais e ao Papa. Sou uma líder política.

 

Para o mundo?

A colonização e a assimilação forçada afetaram a todos. É por isso que fiquei satisfeita com tanta atenção midiática em Roma. O mundo estava nos olhando.

 

Vocês foram a Roma junto com as Primeiras Nações e os Inuit.

Nós éramos as pessoas no limbo, os mestiços. O governo sempre tentou nos dividir, em Roma mostramos a todos o que acontece quando estamos unidos.

 


 

A entrevista com Raymond Poisson, 64, bispo de Quebec que acompanhou as delegações indígenas a Roma, é de Marco Ventura, publicada por La Lettura, 08-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Mas o povo de Deus não tem o mal no coração

 

Que lição a Igreja deve tirar da tragédia dos povos indígenas? “A Igreja deve permanecer independente de qualquer influência pública. Como guardiã do Evangelho e diante do perigo da imposição de outros interesses, somente o Evangelho de Cristo pode ser a espinha dorsal de sua independência”, afirma o bispo Raymond Poisson.

 

Eis a entrevista.

 

O que isso tem a ver com escolas residenciais?

Escolas residenciais... com a mentalidade da época... porque é absolutamente necessário adotar esta hermenêutica: os nossos olhos hoje não veem o mundo como se via na época. A pedagogia era diferente. Mas isso não justifica nada. Falo do sistema, não dos abusos.

 

Voltemos à independência da Igreja.

Na época a Igreja se tornou parceira do Estado, exercia funções públicas. É uma tentação sempre presente. Toda instituição busca meios, mesmo materiais. A mão estendida do Estado foi uma oportunidade para algumas comunidades católicas se estabelecerem. Isso aconteceu com as escolas residenciais.

 

Qual a lição?

Não há nada a perder com a laicidade. Se bem compreendida, pode garantir a independência da Igreja a serviço da humanidade.

 

O que significa o encontro de Roma com as delegações indígenas?

Vem-me à mente a passagem do latim para as diferentes línguas na liturgia. Anteriormente, a unidade exigia a uniformidade. Hoje queremos unir forças com as comunidades locais: precisamos de um equilíbrio entre abertura e apego a uma tradição.

 

É um desafio organizacional.

Estamos vivendo a travessia sinodal. Penso nos meus contatos com os bispos latino-americanos. A vida da Igreja deles é completamente diferente da nossa. Deve-se deixar espaço para que a Igreja respire com as populações locais e sua cultura.

 

As espiritualidades dos indígenas parecem mais adequadas às novas gerações.

Não há competição entre espiritualidade autóctone e espiritualidade cristã. Há apenas diferenças de expressão.

 

O Papa pediu desculpas pelos abusos cometidos por membros da Igreja Católica. Não deveria pedir desculpas pelas culpas da Igreja como tal?

Não estou disposto a dizer que a instituição da Igreja seja responsável, no sentido de que o povo de Deus tem em seu coração a infidelidade a Cristo, o mal. Os abusos diziam respeito a comunidades religiosas específicas. Eles foram cometidos por membros daquelas comunidades.

 

Vamos voltar à sua premissa sobre o contexto?

Havia membros de comunidades religiosas que não tinham uma qualidade de vida superior à dos internos. Não era uma existência fácil. Veja bem, isso não desculpa os abusos, a ideia do sistema. Mas vamos nos concentrar nos fatos. Procuremos caminhar juntos e nos reconciliar.

 

Os nativos querem justiça.

O que fere as comunidades indígenas é sobretudo a ideia por trás do sistema: fazer desaparecer ‘o índio’ dentro da criança.

 

Agora cabe ao Papa retribuir a visita.

O Papa ama muito Sant'Anna. As comunidades indígenas também o amam muito.

 

Ou seja, o Papa poderia vir ao Canadá para Santa Ana em julho próximo?

Ele sorri.

 

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