04 Abril 2022
Em todos os contatos recentes dos papas com o mundo dos povos indígenas do Canadá (João Paulo II em 1984 e 1987, e Bento XVI em 2009) a questão dos limites e as contradições na relação da Igreja com sua tradição sempre apareceram.
A reportagem é de Lorenzo Prezzi, publicada por Settimana News, 03-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A articulada e recente visita de seus representantes a Roma (28 de março a 1º de abril), no entanto, marca um passo significativo após a eclosão do escândalo das centenas de covas anônimas de meninos e meninas indígenas descobertas desde maio de 2021. São quase mil aquelas identificadas até agora. Todas próximas das 139 instituições educacionais que, de 1831 a 1996, recolheram e "reeducaram" 150.000 meninos e meninas das populações nativas, um sexto de sua população jovem.
Tanto as instituições políticas, que repetidamente reconheceram seus erros contra elas, como a sociedade civil, esmagada pelo escândalo e pela má consciência, pediram repetidamente às Igrejas que administravam aquelas instituições a pedido dos governos, que manifestassem o pedido de perdão, de parte dos bispos até o papa.
Francisco não se esquivou e no discurso do encontro final (diante dos 32 expoentes das três linhagens reconhecidas - os mestiços, os Inuítes e as Primeiras Nações – presentes também outros 180 convidados) reconheceu em primeiro lugar a sabedoria dos povos nativos, os seus laços geracionais e os numerosos frutos positivos: o cuidado do território, a memória dos antepassados, o culto do Criador, a harmonia interior e exterior, o sentido da família, a língua, a cultura e as tradições artísticas.
“Mas a vossa árvore que traz fruto sofreu uma tragédia, que vocês me contaram nestes dias: a do desenraizamento. A cadeia que transmitiu saberes e estilos de vida, em união com o território, foi rompida pela colonização que, sem respeito, arrancou muitos de vocês do ambiente vital e tentou uniformizar a uma outra mentalidade. Assim, a vossa identidade e a vossa cultura foram feridas, muitas famílias separadas, muitos garotos se tornaram vítimas dessa ação homologadora, defendida pela ideia de que o progresso se dá pela colonização ideológica, de acordo com os programas estudados teoricamente, ao invés de respeitar a vida dos povos".
Foi um grandioso e desastroso programa de engenharia social que se revelou um genocídio cultural, do qual a Igreja Católica, que administrava 70% daquelas instituições através dos religiosos, não pode se isentar. "Quando o soberano europeu chegou às nossas costas - comentou Geraldo Antoine - as suas leis internacionais, conhecidas como as 'doutrinas do descobrimento', foram aplicadas às nossas terras, negaram-nos a nossa existência como seres humanos".
As instituições "educacionais" são apenas um dos muitos meios de pressão para uma assimilação forçada daquela que era considerada uma civilização (e religião) superior. A Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação, que encerrou seus trabalhos em 2015, estimava 3.000 a 6.000 vítimas de violência contra povos indígenas, mas, após a descoberta das covas anônimas, estima-se 12.000-15.000 mortes entre as gerações mais jovens.
Consequentemente, mudou a consciência dos povos indígenas, mas também aquela da Igreja e da sociedade civil. Por isso, o parlamento adotou a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, inserindo-a no direito nacional.
No que diz respeito à Igreja, pede-se sobretudo um pedido de perdão e de desculpas para com eles de parte do Papa, a ser feito no território nacional. E aqui está a resposta do papa:
“[suas histórias] despertaram em mim dois sentimentos: indignação e vergonha. Indignação porque é injusto aceitar o mal, e pior ainda é acostumar-se ao mal, como se fosse uma dinâmica inevitável causada pelos acontecimentos da história”. "E também sinto vergonha... dor e vergonha pelo papel que vários católicos, em especial com responsabilidades educativas, desempenharam em tudo o que vos feriu, nos abusos e na falta de respeito por vossa identidade, vossa cultura e até vossos valores espirituais. Tudo isso é contrário ao Evangelho de Jesus”. E o papa acrescenta: “Pelo deplorável comportamento daqueles membros da Igreja Católica, peço perdão e gostaria de dizer a vocês de todo o coração: estou muito triste”. Promete estar com eles no próximo mês de julho: “Ficarei feliz em voltar a beneficiar do encontro com vocês, visitando os vossos territórios nativos, onde vivem as vossas famílias”.
Entre os pedidos que os três grupos fizeram ao pontífice, há outras perguntas que foram ouvidas, mas ainda não totalmente respondidas. A revogação da bula papal emitida pelo Papa Alexandre VI em 1493, que deu origem às "doutrinas da descoberta", está em análise.
Mais imediato é o acordo sobre os reembolsos dos bispos e da conferência episcopal: mais 30 milhões de dólares serão adicionados aos 50 milhões de dólares já alocados. Também vai ser estudado o acesso aos arquivos relativos às instituições “educacionais” para os nativos, presentes no Vaticano, mas mais provavelmente nos arquivos das várias congregações religiosas que operam em solo canadense.
A visita das delegações aos museus do Vaticano e, em particular, a alguns artefatos da seção etnológica Anima Mundi (dos mocassins aos cintos, dos cachimbos da paz aos caiaques) despertou nos presentes o desejo de um conhecimento mais amplo dos artefatos e a solicitação de que retornem ao Canadá em instituições museológicas dedicadas aos nativos.
Junto com a visita, reacendeu-se a questão do padre Joannes Rivoire. Oblato de Maria Imaculada, de noventa e um anos, atuante no Canadá por mais de trinta anos entre os povos indígenas (1960-1991), acusado de agressões sexuais contra menores e hoje em um asilo francês, o religioso é convocado por um tribunal canadense desde 1998.
O pedido nunca foi respondido também porque a legislação francesa nega a extradição de seus cidadãos. Um novo testemunho contra ele ocorreu com o depoimento de Luisa Uttak, que foi violentada aos seis anos de idade. O papa foi solicitado a tomar medidas para tornar a parte interessada responsável por suas ações.
Os encontros vaticanos, organizados na linha das visitas ad limina dos bispos, terminaram com a troca mútua de presentes, com orações, danças e músicas. O elogio do papa aos bispos - cerca de dez estavam presentes - por sua coragem e humildade ("a humilhação da Igreja é fecunda") ressalta o caráter de "cura e reconciliação" da próxima viagem papal e a expectativa, expressa pelo presidente da Conferência, Mons. Raymond Poisson, "de uma renovada possibilidade de transmissão da fé e do Evangelho" dentro da tradição cultural indígena.
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Canadá. O Papa Francisco e os povos indígenas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU