Para o teólogo José María Castillo não há dúvida: “o centro do cristianismo é o Evangelho de Jesus Cristo”
Quando é chegada a Semana Santa, a liturgia da Igreja Católica se volta a temas que versam sobre a conversão e a transformação. Há regras, ritos, orientações homiléticas e sacramentos que dizem que o bom cristão é aquele que cumpre esses protocolos, está na Igreja do Domingo de Ramos à Missa de Páscoa, passando pela confissão e o silêncio da Sexta-feira da Paixão. No entanto, o teólogo espanhol José María Castillo provoca algo diferente. E se, neste ano, no silêncio da espera para aquele que é o grande momento do cristianismo e em tempos de crises nós olhássemos mais para dentro de nós, repensando nossas próprias práticas até mesmo enquanto Igreja? Afinal, o que é ser cristão nesses tempos de crise civilizacional?
O texto foi publicado originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU no dia 14-04-2022.
Na conferência “A crise do cristianismo e o poder sedutor do Evangelho. A existência cristã no mundo contemporânea”, dentro da programação da “19ª Páscoa IHU – incertezas e esperanças do tempo presente”, o professor Castillo oferece de imediato uma chave importante para seguirmos nesse movimento: “o cristianismo não é primordialmente uma religião. O cristianismo tem seu centro e sua base no Evangelho”. Isso significa que ser cristão é introjetar a experiência de Cristo, o Deus que se fez humano e viveu na Terra, que chega até nós através das narrativas dos Evangelhos. “O centro da religião está no sujeito, enquanto o centro do cristianismo está no Evangelho de Jesus”, reitera.
O problema é que muito frequentemente nos perdemos nessa ordem e a religião, que a bem da verdade institucionaliza e populariza o cristianismo, acaba também se tornando muito maior que o Evangelho. Pode parecer desconfortável para os fiéis mais fervorosos, mas o que o Castillo está propondo é que repensemos justamente o espaço e o lugar da Igreja enquanto instituição em nosso tempo. Para ele, as regras, normas, dogmas e preceitos nos amarram numa perspectiva que, quase inevitavelmente, nos traga para disputas por poder e dinheiro. Afinal, a "máquina" precisa ser mantida e dentro de uma ordem. “A vida de Jesus de Nazaré foi um confronto constante – e, às vezes, incluindo um enfrentamento direto – do seu Evangelho com a religião que já existia em Israel, do povo judeu, tendo seu centro em Jerusalém”, recorda.
O que Castillo faz questão de lembrar é que cenas como a de Jesus quebrando bancas e ameaçando derrubar o templo são metáforas de uma fé esvaziada pela instituição religião. Mas isso é só uma parte do que o Messias revela. “Jesus não fazia ofertas aos sacerdotes e entrava direito em confronto com eles e com os doutores sobre as interpretações da lei. Também não ia ao templo para rezar. Frequentemente ele se afastava, ficava sozinho em diversos lugares para orar”, observa.
Num primeiro momento, as assertivas de José Maria Castillo podem parecer desconfortantes. Afinal, há locais sagrados determinados pela religião e ela orienta nossa fé e nos dá sentimentos de pertencimento e comunidade. Mas, agora, sejamos sinceros e olhemos no fundo do nosso coração. Quando foi a última vez que, na missa de Domingo, celebramos em verdadeira comunhão, sem olhar ao lado e julgar? E quantas vezes oramos pelo bem comum ao invés de uma busca para nossos próprios problemas? “A religião é o ser humano fixado em si mesmo. E quem é assim é, inevitavelmente, uma pessoa ambiciosa, uma pessoa que pretende dominar os demais, que pretende estar por cima de todos. E fazemos isso sem nos darmos conta de que é isso que estamos praticando”, provoca.
Castillo: "A religião é o ser humano fixado em si mesmo. E quem é assim é, inevitavelmente, uma pessoa ambiciosa" (Foto: Universidade Loyola)
É dessa distopia que Castillo nos provoca a refletir. “Pratica-se a religião porque quer salvar-se, porque quer obter de Deus o que precisa, porque quer resolver determinados problemas e por isso recorre-se à religião. Vou à missa para que eu seja bem-visto, para que eu fique tranquilo em minha consciência, para eu possa me salvar, para que eu, no dia que morrer, possa ir para o céu”, reflete.
Isso, na perspectiva do teólogo, é uma certa forma egocêntrica de pensar a "religião do eu". “Há duas maneiras de entendermos a vida, Deus e a nossa busca por Deus. Na religião, há a diferença de que o centro está no próprio sujeito”, observa. Isso não quer dizer que na religião não haja pessoas boas, pelo contrário. Inclusive, se olharmos com sinceridade as nossas práticas paroquiais, veremos muita gente – e até nós mesmos – em ações de caridade e boa fé. “O problema é que muitas dessas pessoas deveriam estar menos nos altares e mais a serviço dos outros”, completa.
Somos levados a isso, seguindo a lógica de Castillo, porque há um regramento e ordenamento na religião que nos faz parecer que, se cumprimos tudo isso, estamos na linha, Deus está conosco. “São os ritos, as normas, as leis, a submissão aos sacerdotes e clérigos em geral. Enquanto isso, o que é central do Evangelho não ocupa a vida dos cristãos e da Igreja. Esse é o grande problema”, observa. Além disso, aplainando tudo numa relação de toma lá, dá cá com O Divino, nos livramos do Deus bravo e que castiga. Quem nunca pensou: "eu faço tudo certo. Deus não vai fazer isso comigo". “Podemos encontrar pessoas muito bem ajustadas e praticando bem os ritos da religião, mas, ao mesmo tempo, têm um tipo de vida completamente oposto ao que diz o Evangelho”, observa, ao lembrar que Jesus não passa regras e leis a serem seguidas.
Castillo enfatiza que o ensinamento de Jesus está na experiência da prática de assistência e acolhida a quem precisa, seja doente, pobre, uma mulher ou qualquer outro menorizado pelo ordenamento social. “Se formos ler o Evangelho, veremos que não há neles determinadas teorias, doutrinas ou leis impositivas. Não! O que encontramos é uma forma de vida, a que levou Jesus, centrada no sofrimento dos enfermos. Por isso há tantos e tantos relatos de curas. Em segundo lugar está a desgraça dos mais pobres e desamparados nesse mundo. Daí a quantidade de relatos que apresentam Jesus interessado nos que passam necessidades, nos que sofrem, interessado pelos últimos desse mundo. É uma realidade que se contrapõe à ambição de riqueza e poder”, explica.
José Maria Castillo identifica o cerne desse problema na fusão que se faz do Evangelho com a religião. Segundo ele, é a própria Igreja que “funde e confunde” Evangelho com a religião de tal maneira que o que mais se aprende enquanto cristão é a prática da religião. “Fundir e difundir essas duas realidades [da religião e do Evangelho] é anular o Evangelho”, adverte. E realmente é curioso como não nos damos conta dessa confusão que é feita. De forma muito clara e didática, Castillo lembra de um causo seu, de muito tempo, quando tinha apenas seis anos de idade.
“Quando eu era um menino, já há tantos e tantos anos, um dia, voltando do colégio disse à minha mãe: ‘mamãe, hoje a professora explicou uma coisa que não entendo. Disse que Deus é um e não mais do que um. Mas, que são três pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. São três pessoas distintas e os três são um Deus. Como se pode explicar que são três e um, ao mesmo tempo?’
E minha mãe, que era uma pessoa muito religiosa, me disse: ‘menino, não se pensa nisso’. Evidentemente, a religião exige que nem pensemos no que pode contrariar o que ela nos impõe. E, como é lógico, por esse caminho muita gente não está disposta a transitar. Está aí a crise da religião”.
É como se fôssemos levados a acreditar que se repetirmos e praticarmos os ritos da religião, está tudo bem. E é verdade, pois isso nos dá segurança e alivia a consciência. Quantos de nós, agora na Semana Santa, procuramos o sacramento da confissão. Mas, depois da penitência deferida pelo padre, quantos de nós efetivamente mudamos nossa conduta que levou a essa falta? Para Castillo, é esse tipo de prática que nos distancia de uma efetiva vivência evangélica. “Muitos cristãos querem reunir tudo isso, religião e Evangelho num só modo de vida. Somos fiéis à religião e às exigências que impõe a sociedade, pois queremos ser os primeiros e ter abundância. Isso que, na verdade, se converte em dinheiro e poder”, reflete.
Já quase ao final da conferência, o teólogo é questionado por um dos espectadores acerca dos desafios para superar o cristianismo enquanto religião para aproximar os fiéis daqueles primeiros que compunham o segmento de Cristo e, quem sabe, até superar a ideia de fé como redenção. “No fundo, o segmento de Cristo hoje é, dentro das possibilidades de minha vida, seguir Jesus naquilo que ele fez. Para isso, é preciso ser uma pessoa muito livre, que diga o que é preciso ser dito a quem quer que seja”, adianta.
No entanto, Castillo recorda que uma fé de redenção era o que pregava Paulo de Tarso. Assim, é importante que lembremos que ele teve uma experiência de aproximação com o Cristo ressuscitado. “E ele teve coragem de pregar essa fé por cerca de 30 anos, estendendo o cristianismo pelo mundo. Mas precisamos entender que há algo que Paulo de Tarso não poderia ser”, explica. Assim, o teólogo observa que Paulo não conheceu Jesus enquanto Deus encarnado, não conviveu com essa face humana de Deus, nem o ouviu pregar ou teve seus ensinamentos em primeira mão.
Além disso, a narrativa dos primeiros Evangelhos é posterior, ainda em cerca de mais 30 anos, do assassinato de Paulo de Tarso. “Significa compreendermos que o primeiro cristianismo existiu sem o Evangelho. E, a partir do momento que o Evangelho se torna conhecido, abre outra janela ao cristianismo”, explica. Ou seja, Paulo tem sua experiência com Cristo e chegam até ele poucos relatos. Assim, é natural que compreenda o cristianismo como redenção. Mas, com o advento dos Evangelhos há uma virada de chave, como se tivéssemos a experiência do Cristo ressignificada na narrativa evangélica de forma organizada.
E mais: Castillo aponta que, nesse tempo de Paulo e nos próximos cerca de dois mil anos, a religião foi se organizando nessa perspectiva redentora. Só nos próximos dois mil anos é que o Evangelho de fato se torna conhecido e é incorporado à religião. E aí que reside, talvez, a perigosa fusão que Castillo aponta. “Ao longo desses séculos, a religião foi se fundido ao poder, aos poderosos, junto da riqueza. Observe na história como há ricos e governantes que vão se tornando bispos nesse período”, recorda. Depois, com a popularização do Evangelho há a fusão com a religião, mas essa já se encontra muito mais forte e institucionalizada.
É por isso que o teólogo insiste tanto que os palácios episcopais e suntuosas catedrais não são manifestações do Evangelho, mas apenas da religião. “O Evangelho não está ali, está no pobre, nos doentes, nas desigualdades tão cruéis nesse mundo”, aponta.
E nesse contexto de século XXI, de crise civilizatória atravessada por desequilíbrio ambiental, pandemia e guerras, vemos muito falar em crise do cristianismo. Nós mesmos até já devemos ter nos questionado se, diante de tanta desesperança e dor, o cristianismo ainda é capaz de responder às dores do mundo.
Nesse mesmo contexto, José Maria Castillo ainda vê, na religião poderosa, rica, de palácios e catedrais acessíveis para poucos, a redução do número de padres e seminaristas pensando em aderir a vida de sacerdócio. Para ele, isso é uma crise da religião e prova de que é preciso uma transição que consiste em trazer o Evangelho ao centro. Afinal, será mesmo que uma religião com o Evangelho verdadeiramente no centro precisa de vasto clero com toda sua hierarquia e staff? “Levemos em conta que essa crise é muito mais acentuada no país ou na sociedade em que está muito mais presente a tecnocracia, o poder e a riqueza. A consequência é que a religião se vê em maiores dificuldades, maiores contradições e, portanto, é mais difícil de resolver tudo isso”, aponta.
Por isso, chama atenção para a postura do Papa Francisco, que parece compreender bem a necessidade dessa transição. Para Castillo, o atual pontífice traz o Evangelho para o centro e efetivamente faz dele uma prova de vida. Então, por que a Igreja não aceita essa transformação deixando de lado as querelas com o Papa? “Porque isso não se faz por decreto. A Igreja não pode instituir isso de baixo para cima. Isso é uma virada, tem que transformar a prática da vida”, responde. “Sem ter o Evangelho como o centro de nossa vida, o problema do cristianismo não terá solução. Ao contrário, será cada dia maior”, sentencia.
Por fim, o teólogo ainda vê “muitos religiosos, sacerdotes, bispos que estão tristes, como se vissem o futuro de maneira muito negativa”. E o que dizer a eles? “Se somos fiéis ao Evangelho e a Jesus, sigamos à diante”, responde. Para Castillo, um dos problemas é que desde um palácio episcopal, com toda sua solenidade, desde uma catedral magnífica, preciosa, e cheia de obras de arte, é difícil de viver o Evangelho com veracidade. Nesse sentido, talvez, o grande convite que deixa à conversão nessa Páscoa é que não tentemos salvar o cristianismo enquanto religião, mas sim os cristãos como seres que vivem a partir do Evangelho. “Como, desde um monastério, onde há riqueza e beleza, grandeza, poder, se pode pregar que Jesus nasceu em um casebre, que iniciou a vida como um trabalhador humilde e logo transformou sua vida a cuidar dos enfermos, alimentar os pobres e a cuidar dos últimos da sociedade?”
E mais: nós, fiéis leigos, temos protagonismo nessa transformação, que deve ser movida desde o coração de cada um que tem o Evangelho como centro e modo de vida. Como diz José Maria Castillo:
“as grandes trocas que se têm produzido na Igreja normalmente não são transformações feitas por decisões da Igreja, mas sim porque a sociedade já havia se transformado e já não tolera, não aguenta que se sigam fazendo as coisas que se inventaram em séculos passados. Durante séculos, fomos escravos. Quando se acabou a escravidão? Quando a Igreja decidiu? Não, quando a sociedade decidiu”.
José María Castillo estudou teologia na Faculdade de Teologia de Granada (Espanha). Fez doutorado em Teologia na Universidade Gregoriana, de Roma. Foi professor de Teologia Dogmática na Faculdade de Teologia de Granada e professor visitante nas seguintes Universidades: Comillas (Madri), Gregoriana (Roma), UCA (San Salvador). Possui título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Granada.