A “cultura do cancelamento” foi a palavra do ano em 2019 para o Dicionário Macquarie. No entanto, essa não é uma moda tão recente, é uma censura reforçada pelo movimento de massa das redes sociais e seu impulsionamento por algoritmos, portanto, para um pesquisador e escritor renomado de 92 anos ter medo de ser “cancelado” hoje é se negar à profecia. Sem generalizações, mas se referindo ao espanhol José María Castillo essa hipótese é válida. Castillo fora “cancelado” pela Igreja espanhola com o aval do Vaticano ainda nos anos 1980, sendo proibido de lecionar até mesmo nas universidades da Companhia de Jesus, congregação a qual pertenceu até 2007.
Não obstante, sem medo de cancelamentos, José María Castillo será um dos conferencistas da 19ª Páscoa IHU. Esperanças e incertezas do tempo presente, na sexta-feira, dia 01º de abril de 2022, às 10h, com a palestra A crise do cristianismo e o poder sedutor do Evangelho. A existência cristã no mundo contemporâneo.
O evento é gratuito e será transmitido pela página inicial do IHU, canal do Youtube e página do Facebook do IHU. A conferência do importante teólogo espanhol fora agendada para o dia 18 de março, mas, devido a problemas técnicos, será realizada na próxima sexta-feira, dia 1º de abril de 2022.
O zeitgeist do Vaticano II foi indubitavelmente marcado pelas convulsões sociais e filosóficas de 1968, as reações às transformações do mundo moderno e pós-moderno chegarem em frenesi diante da incapacidade institucional e cultural da Igreja Católica em conversar com o mundo. Uma nova teologia aberta deu lugar a uma teologia persecutória, o que para José María Castillo gerou um resultado nefasto: “na Igreja, nos seminários e nos centros de estudos teológicos há medo, muito medo. E sabemos muito bem que o medo bloqueia o pensamento e paralisa a criatividade”, afirma em artigo publicado pelo IHU.
José María Castillo. Foto: Religión Digital
Castillo mesmo com tantas imposições do alto clero jamais parou de falar e de escrever. Continuou proferindo palestras, continuou com a produção de livros e manteve-se atualizado com a internet, mantendo um blog mais que semanal no portal Religión Digital – e seus artigos são traduzidos com frequência pelo IHU. No seu livro “Espiritualidade para insatisfeitos”, de 2007 – ou seja, escrito aos 77 anos – ele fala aos insatisfeitos com o sistema, os convoca a reconstruir a utopia a muito tempo perdida, principalmente pela sinergia que se constituiu entre os poderes eclesiásticos e capitalistas.
O Reino de Deus não é para os satisfeitos. Isso se vê com clareza nas parábolas do Evangelho. O reino não é para os ricos (Mateus 19, 23-24), nem para os convidados às bodas do rei que preferiram se dedicar a seus negócios em vez de acolher ao convite ao banquete compartilhado (Mateus 22, 5), nem para o rico epulão que “se vestia de púrpura e linho fino, e dava banquete todos os dias” (Lucas 16, 19), nem para o rico insensato, aquele que teve uma colheita esplêndida e apenas pensava em aproveitar da boa vida (Lucasc 12, 19). Se há algo claro no Evangelho, é que sua mensagem foi acolhida pelos insatisfeitos, os pobres, os que sofrem, os excluídos, os que se veem perseguidos pela justiça, os que choram e os que perderam a dignidade e a classe da qual outros gozam em excesso.
Em seus textos recentes ou mais antigos, Castillo buscou encontrar na história da Igreja os pontos cruciais do domínio da religião sobre o Evangelho e, portanto, o cristianismo. Em uma longa entrevista concedida ao Religión Digital, e publicada em português pelo IHU, o teólogo explica que a fusão dos poderes eclesiais com o econômico está marcado desde os imperadores Constantino e Teodósio, o que já no século IV fez do Evangelho refém dos poderosos.
Desde finais do século IV, todo o século V e até começos do século VI, se produziu um fenômeno surpreendente: a entrada em avalanche da gente mais rica e poderoso na Igreja. A coisa chegou até o extremo que houve muitos casos de bispos nomeados sem estarem nem batizados. Essa entrada massiva de gente rica e poderosa na Igreja deu um giro completamente novo, se mantinha o Evangelho, mas não se vivia. E aqui quero insistir em uma questão que me parece capital: o Evangelho não é uma teoria, é uma forma de viver. E este é o grande problema da Igreja: que temos uma instituição bem organizada, bem administrada e bem estruturada, mas igualmente alheia e distante do Evangelho
Cancelado pelos poderosos, Castillo seguiu escrevendo para inspirar os pobres. Não há afirmações objetivas de influência, mas o fato é que há uma nova recepção para seus livros no Vaticano. O Papa Francisco procurou seu ex-confrade jesuíta por pelo menos duas vezes durante o pontificado. Primeiro, em uma ligação telefônica, Francisco disse-lhe: “Quero lhe agradecer pelo que está fazendo por mim”. Depois, em um encontro fraterno no Vaticano, em abril de 2018, Francisco confessou-lhe: “Eu leio com muito prazer seus livros, que fazem muito bem às pessoas” – confessou, como se pecado fosse lê-lo.
José María Castillo entregando presente ao Papa Francisco. Foto: Religión Digital.
De fato, Francisco incomoda e é até mesmo chamado de herege por curiais tradicionalistas. O vaticanista Loup Besmond de Senneville revelou em reportagem publicada por La Croix International, e traduzido pelo IHU, nesta semana, que uma alta autoridade da Cúria Romana contou-lhe sobre a ampla insatisfação com o esvaziamento do poder romano neste pontificado e pela ânsia de alguns por um novo conclave. Suas reformas não seriam de surpreender, e tampouco são novidades, já no chamado roteiro do pontificado, a exortação Evangelii Gaudium, ou A Alegria do Evangelho, de 2013, Francisco chamava a uma Igreja em saída, aberta e descentralizada: “A evangelização é dever da Igreja. Este sujeito da evangelização, porém, é mais do que uma instituição orgânica e hierárquica; é, antes de tudo, um povo que peregrina para Deus. Trata-se certamente de um mistério que mergulha as raízes na Trindade, mas tem a sua concretização histórica num povo peregrino e evangelizador, que sempre transcende toda a necessária expressão institucional. Proponho que nos detenhamos um pouco nesta forma de compreender a Igreja, que tem o seu fundamento último na iniciativa livre e gratuita de Deus” (EG, 111).
Muitas são as semelhanças que podem ser encontradas entre Castillo e Francisco – bem como suas diferenças, a primordial, um foi silenciado, o outro é papa -, mas em especial está a coragem de anunciar o Evangelho e promover a utopia libertária sobre os poderes da ordem.
José María Castillo
Estudou teologia na Faculdade de Teologia de Granada (Espanha). Fez doutorado em Teologia na Universidade Gregoriana de Roma. Foi professor de Teologia Dogmática na Faculdade de Teologia de Granada e Professor visitante nas seguintes Universidades: Comillas (Madri), Gregoriana (Roma), UCA (San Salvador). Possui título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Granada.