Por: Jonas | 14 Novembro 2012
Para o teólogo José María Castillo, “o princípio determinante da conduta de Jesus não foi a submissão ao “império da lei”, mas o enfrentamento da dor, da opressão, da injustiça, da desigualdade de direitos, da dura condição dos excluídos e marginalizados e, em geral, de tudo o que era motivo de sofrimento para os mais desprotegidos e desamparados”. Seu artigo é publicado em seu blog Teología sin Censura, 10-11-2012. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
I. O problema
Da forma como as coisas estão sendo colocadas, em razão da crise econômica que quase todo dia se agrava, cujo final não se vê próximo, são muitas as pessoas de boa consciência que questionam se não teria chegado o momento de enfrentar seriamente o problema da desobediência civil. Isto, numa situação de legalidade democrática, que, aceitando a maioria absoluta do partido que nos governa, dá condições para que sejam adotadas decisões políticas que, dentro dessa legalidade, podem tomar decisões “por decreto-lei”, abrindo mão, assim, do controle parlamentar.
Com as coisas nessa situação, eu me pergunto sobre o que um teólogo pode dizer a respeito deste assunto tão grave. O que está em jogo são os direitos mais fundamentais dos cidadãos. Estou falando de situações de fome. E a fome não espera. A fome mata. E mata rápido. Podemos continuar esperando? O que a teologia pode dizer numa situação como esta?
O tema da desobediência civil, quando abordado pela religião (ou teologia), pode ser analisado a partir de dois pontos de vista: da subjetividade da própria consciência; ou da objetividade do que acontece na sociedade, na história, no momento concreto em que vivemos. É claro, o subjetivo e o objetivo, neste caso, estão necessariamente interconectados.
E mais, toda decisão moral é tomada e assumida a partir da consciência. Neste sentido, toda decisão moral é tomada e assumida a partir da subjetividade. Porém, não é este o ponto de vista que aqui nos interessa. O que importa, tratando do assunto que estamos analisando, é fixar qual é o fator determinante quando se toma uma decisão que resulta na desobediência civil. Uma decisão assim é (em princípio) incorreta; e pode ser perigosa para quem a toma.
Por isso, é necessário insistir na pergunta sobre o fator determinante da desobediência que o poder constituído nos obriga a tomar. Resistir ao “imperativo da lei” é sempre um risco. Pois bem, o motivo que nos leva a assumir esse possível risco é o meramente subjetivo (a consciência do sujeito)? Ou é o objetivo (o que acontece fora de nós, o que acontece aos outros, etc.)? Esta é a questão.
Como se sabe, no ensinamento tradicional das religiões, concretamente no cristianismo, a teologia do ato moral foi construída a partir da consciência, ou seja, a partir da subjetividade do indivíduo. O Concílio Vaticano II disse com toda a clareza: “o homem tem uma lei escrita por Deus em seu coração. Obedecer a ela é a própria dignidade do homem, que será julgado de acordo com esta lei. A consciência é o núcleo mais secreto e o sacrário do homem”. E isto é aplicável inclusive quando se trata de uma “consciência errônea invencível” (GS 16).
Ora, se o correto comportamento cristão é o que vem ditado pela própria consciência, ou seja, pela própria subjetividade, por mais que esta consciência deva estar orientada pela “verdade e o bem” (GS 16), é óbvio pensar que semelhante entendimento da conduta tem sua razão de ser e é formulada a partir do meramente subjetivo de cada indivíduo.
Foi assim que os criadores da doutrina moral clássica a perceberam, coisa que ficou patente na conhecida controvérsia entre são Bernardo de Claraval e Abelardo, no século XII, que Tomás de Aquino resolveu no século XIII. E que é, em definitivo, a mesma doutrina que o papa João Paulo II acolhe e repete na encíclica Veritatis Splendor. Ou seja, trata-se de um ensinamento que, com ligeiras variantes, basicamente se manteve invariável, em sua formulação a partir da subjetividade, até nossos dias.
Ao compreender o critério da boa conduta a partir da subjetividade da própria consciência, sem percebermos incorremos num perigo de consequências imprevisíveis. Basta pensar na frequência em que ocorre o fato de pessoas abandonarem um cargo público, depois de um escândalo, um delito, um crime talvez, e afirmarem tranquilamente que saem “com a consciência tranquila”. De fato, sabemos que é interminável a lista de inquisidores, ditadores, torturadores, algozes e genocidas que, após vitimarem incontáveis pessoas, afirmam que cometeram todas as suas atrocidades em “boa consciência”. É o enorme perigo da “ética da subjetividade”. Uma ética que nos trouxe para o lugar em que estamos: na mais vergonhosa decomposição moral, na corrupção como norma de conduta e de governo, na desintegração de valores e na desfaçatez que caracteriza a cultura da crise que estamos aturando.
II. Jesus e Paulo
Com as coisas desse jeito, a pergunta obrigatória é: a partir de onde e como se fundamenta, na teologia cristã, uma ética baseada no ditame da própria consciência? É significativo que a palavra “consciência” (syneídesis) não esteja presente nos evangelhos. Somente em Jo 8, 9 (no relato da adúltera) há uma variante apócrifa aplicada aos acusadores da mulher. Obviamente, este dado estatístico quer dizer que o chamado “ditame da consciência”, a “boa ou má consciência”, não teve nenhum papel na conduta e nem nos ensinamentos de Jesus. Em relação a isto, não se faz a mínima menção nos relatos da vida e doutrina do Jesus histórico. Portanto, quem pretende justificar sua conduta se amparando na “boa consciência”, precisa saber que não possui argumentos para recorrer, nem no exemplo e nem nos ensinamento do Evangelho.
Em contraste com os evangelhos, nos escritos do Corpus Paulino, encontra-se o termo syneídesis (consciência) 14 vezes (Rom 2, 15; 9, 1; 13, 5; 1Cor 4, 4; 8, 7. 10. 12; 10, 25. 27. 28. 29; 2Cor 1, 12; 4, 2; 6, 11), num total de 31 casos em todo o Novo Testamento. Portanto, quase metade dos textos, que recorrem à “consciência” para explicar a conduta humana ou sua qualificação moral, está nas cartas autênticas de Paulo.
É importante saber que a syneídesis não possui nenhuma correspondência em todo o Antigo Testamento. E na versão dos LXX aparece apenas em casos muito isolados (Ecl 10,20; Sab 17,11; Eclo 42, 18). A syneídesis, como “consciência moral”, é um termo que tem sua origem na filosofia popular grega (Plutarco), de onde foi passada para os autores judeus mais próximos do helenismo (Fílon, Josefo), e também está presente em escritores latinos destacados no pensamento estoico (Cícero) (cf. Lüdemann).
Com tudo isto, é fácil de entender o abismo que separa Jesus de Paulo, num assunto tão capital, como é o fator determinante na tomada de nossas decisões morais. Fica claro que, no caso de Paulo, esse fator determinante é a própria consciência, cuja expressão mais forte é o mandato que o próprio Paulo aplicou à comunidade cristã de Roma, em se submeter à autoridade constituída, que naquele momento era precisamente Nero, advertindo que era preciso fazer isto, “não só por medo do castigo, mas também por dever de consciência” (Rom 13,5). Foi dito, com razão, que esta é “uma das passagens mais imprudentes de todas as cartas de Paulo” (M. J. Borg, J. D. Crossan).
Em todo caso, e por mais matizações que existam neste texto, é inquestionável que motivando as pessoas “por dever de consciência”, pode-se (e se costuma) justificar “a mentalidade submissa”, mesmo aquela que cometeu as maiores atrocidades, produzidas na história, ao longo dos séculos. É fato que “somente os escravos são aptos para a repressão. Como se sabe, os atenienses só empregavam escravos na polícia. Quem pratica a repressão como ofício, tem que ser ele próprio um repressor exemplar. É esta a causa profunda de que a obediência cega, aos exercícios absurdos de instrução, cumpra um papel tão importante no exército e na polícia”. Como da mesma forma é sabido que “entre os vigilantes mais fiéis e seguros dos campos de concentração nazista estavam os próprios prisioneiros” (Vicente Romano).
Não é preciso ser um sábio para perceber que a conduta moral e, mais concretamente, o tema da consciência submissa se apresenta de uma maneira completamente diferente nos evangelhos. É evidente que Jesus não foi um modelo exemplar de obediência à autoridade estabelecida. Pelo contrário, seus atos, reiterados e insistentes, de desobediência às leis (Torá, Lei escrita, e Halaká, leis e interpretações orais que os rabinos ditavam), foram a razão que motivou o seu enfrentamento com o Sinédrio ou Grande Conselho. Um enfrentamento que se agravou, com o passar do tempo, e que terminou com o julgamento, condenação e execução de Jesus, com o tipo de morte mais cruel e vergonhosa que se praticava naquele tempo, a morte na cruz.
Este assunto motivou a pesquisa dos estudiosos mais competentes na exegese dos evangelhos e, mais concretamente, o espinhoso tema das relações entre Jesus e o judaísmo (E. P. Sanders, R. Banks...). Caso nos atermos ao ponto mais forte e mais delicado desta questão, a desobediência de Jesus à Lei Divina escrita, a Torá, lei dada por Deus a Moisés (de acordo com as crenças que a Bíblia transmite), é possível (e deve ser assim) discutir, matizar e precisar o exato significado de tal ou qual texto dos evangelhos. Hoje, se este assunto é analisado com objetividade e sem paixão, a conclusão é a de que os responsáveis da morte de Jesus foram os Sumos Sacerdotes (X. Alegre) e, com eles, o Grande Conselho. Partindo deste ponto de vista, sendo os supremos dirigentes da religião aqueles que condenaram Jesus à morte, pode-se (e deve-se) afirmar, com toda segurança, que foi a autoridade oficial constituída que sentenciou a morte de Jesus.
III. Luta contra o sofrimento e desobediência
Dito isto, o tema capital, que aqui nos interessa deixar claro, é especificar por que se chegou a este julgamento e a esta condenação. Com a questão exposta nestes termos, a leitura dos evangelhos não deixa lugar para dúvidas. Jesus foi um homem que não suportou o sofrimento dos seres humanos mais desgraçados deste mundo. E, sem dúvidas, foi isso o que lhe motivou a desobedecer ao poder constituído. Jesus desocupou violentamente o Templo, pois viu que aquele local já não era um lugar de encontro com Deus, mas que havia se convertido num “covil de bandidos” (Mt 21, 13; Mc 11, 17).
Jesus se opôs publicamente à lei do repúdio, “por qualquer motivo”, que estabelecia a desigualdade de direitos entre homens e mulheres (Mt 19, 1-12; Mc 10, 1-12). Jesus exigiu a transgressão da Lei divina ao dizer, para um de seus discípulos, que o seu seguimento se antepunha, inclusive, ao enterro do próprio pai (Mt 8, 21-22). O que naquela sociedade tinha uma importância singular. Está demonstrado que, “por influência dos Hassidim e dos Fariseus, o último serviço aos mortos era enaltecido acima de todas as boas obras” (M. Hengel).
Por outro lado, não esqueçamos que na sociedade do tempo de Jesus “o religioso” e “o civil” estavam fundidos, de tal maneira que, na prática, eram realidades inseparáveis (cf. E. Schürer). O “pecado” era vivido e considerado como “delito”. Da mesma forma que o “delito” era vivido e considerado como “pecado”. Daí que a desobediência religiosa era, ao mesmo tempo e igualmente, desobediência civil.
Tendo em conta como se vivia “o religioso” e “o civil” na sociedade judia do tempo de Jesus, compreende-se que o princípio determinante da conduta de Jesus foi, em primeiro lugar, a luta contra o sofrimento dos seres humanos. É o que se repete nos sumários dos sinópticos (Mt 4, 23-24; Lc 6, 17-19; Mt 9, 35-36; Mc 6, 34; 3, 13-19; Lc 10, 2; Mt 11, 4-6; Lc 7, 22-23). E o que resume o apóstolo Pedro quando afirma que “Jesus de Nazaré, ungido por Deus com a força do Espírito Santo, passou fazendo o bem e curando todos os subjugados pelo diabo, porque Deus estava com Ele” (At 10,38).
Entretanto, não pense que a atividade de Jesus se limitou a curar enfermos. É preciso acrescentar a isso, sobretudo, sua proximidade aos pobres, sua acolhida e sua amizade com os pecadores, os publicanos, os leprosos, os excluídos, os samaritanos, os estrangeiros e, de maneira especial, a relação de proximidade que sempre teve com as mulheres (Lc 8, 1-3; Mc 15, 40-41; Jo 4, 4-38), inclusive quando se tratavam de mulheres reconhecidamente desprezadas (Lc 7, 36-50; Jo 8, 1-11; Mc 5, 21-43).
Contudo, dizer isto não toca no assunto mais decisivo. O mais importante quando falamos (em religião ou em teologia) da desobediência civil, é que Jesus defendeu e libertou os que sofrem, desobedecendo às leis estabelecidas na sociedade de seu tempo. O que quer dizer que o princípio determinante da conduta de Jesus não foi a submissão ao “império da lei”, mas o enfrentamento da dor, da opressão, da injustiça, da desigualdade de direitos, da dura condição dos excluídos e marginalizados e, em geral, de tudo o que era motivo de sofrimento para os mais desprotegidos e desamparados, com quem convivemos.
IV. Proteger aos desprotegidos desobedecendo
É crucial destacar que não se trata de desobediência da lei para buscar o próprio proveito ou o próprio interesse. Porque não resta outro caminho, para remediar o dano que estão sofrendo outras pessoas, é que se desobedece. No entanto, sempre tendo bastante presente que o Evangelho é o que é, e que possui a força que tem, não simplesmente porque nos diz que remediar o sofrimento e proporcionar felicidade aos outros é o fator determinante e o critério diretor da vida humana, mas, também, porque isso se conquista e se faz desobedecendo a um sistema legal e um ordenamento jurídico pensado para favorecer e proteger os melhores situados na sociedade. Tudo isto, à custa do sofrimento e desamparo dos que se veem obrigados a viver nos estratos mais baixos dessa mesma sociedade. Não digo que este critério seja racionalmente demonstrável. O que digo é que este critério constitui a convicção básica na qual a fé cristã se sustenta.
É evidente que a Constituição vigente estabelece a igualdade em dignidade e direitos para todos os cidadãos (Art. 10 e 14), entretanto, sabemos de sobra que a vida dos indivíduos, das famílias, dos cidadãos, não é regida e nem organizada somente a partir do que está dito no texto constitucional. Mais importantes do que os artigos da Constituição, são as leis e os decretos ditados pelos governantes de turno. E sabemos muito bem que os governantes são seres humanos, não anjos. Como também sabemos que ninguém faz uma lei contra si mesmo. Nenhum tonto joga pedras em seu próprio telhado. Por isso, sem mais e sem menos, a desobediência civil é inevitável e (às vezes) necessária.
O que fazer concretamente? Não se trata de modo algum, como já foi dito, de organizar a vida com critérios de mera libertinagem, em busca do próprio interesse e do próprio proveito. O que se pretende é assumir, como convicção determinante, a intolerância diante da injustiça, da desigualdade e do sofrimento que os mais desprotegidos da sociedade padecem. Porém, o que fazer para que esta convicção seja verdadeiramente tal?
A primeira coisa é superar o pessimismo. Isto tem solução. O mais certo é que esta solução não será dada pelos governantes, que já nos demonstraram fartamente que, por “incompetência” ou “corrupção”, não são capazes de nos tirar deste caos. Primeiramente, então, como vem apregoando por todo o mundo o Nobel de Economia, Paul Krugman, “dispomos tanto do saber como dos instrumentos corretos para colocar fim a este sofrimento”.
A segunda é lutar pela liberdade que acaba com a passividade. Recordo, aqui, o que dizia Bertolt Brecht em seu “Elogio da dialética”: “De quem depende que a opressão prossiga? De nós. De quem depende que ela acabe? Também de nós”. Aqueles que abusam dos pobres deixariam de agir assim, se nós não ficássemos com a boca fechada e os braços cruzados diante de semelhante abuso. Martin Luther King tinha toda a razão do mundo quando disse a famosa frase que tantas vezes foi repetida: “O que mais me preocupa não é o grito dos violentos, nem dos corruptos, nem dos desonestos, nem dos sem caráter, nem dos sem ética. O que mais me preocupa é o silêncio dos bons”.
A terceira coisa é a necessidade urgente de se agrupar. Porque o “desobediente solitário” logo termina no calabouço da polícia, no tribunal da justiça e, provavelmente, no cárcere onde vão parar os “perigosos”. Se nos unimos, se nos agrupamos, se protestamos em massa, não há governante que possa enfrentar a massa de cidadãos que se rebelam contra a injustiça, a mentira, o atropelo. Em relação a isto, não há governo que resista. Os governantes se mantêm com a submissão dos cidadãos que calam e aguentam. Isso, jamais!
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A desobediência civil. Artigo de José María Castillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU