12 Abril 2022
"De fato, duas guerras distintas estariam em andamento: uma que os exércitos lutam no terreno e aquela do conflito de interpretações. Seguindo o afortunado slogan segundo o qual a verdade é a primeira vítima de qualquer guerra - os fatos são tornados irreconhecíveis pela propaganda -, seria apenas graças à nobre figura da dúvida e à necessária e paciente coleta de evidências que uma verdade fugidia poderia ser reconstruída. Mas o efeito dessa atitude é que as provas são anuladas em um turbilhão de discursos que acabam anulando as responsabilidades ao misturá-las em uma única indistinta mistura."
A análise é de Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 10-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em uma entrevista recente, a escritora Edith Bruck, uma sobrevivente de Auschwitz, denuncia seu desconforto ao constatar como as evidências dos massacres de civis indefesos perpetrados pelo o exército russo na Ucrânia em vez de levantar um coro unânime de indignação, levantaram dúvidas e perplexidades. O mesmo que os historiadores definidos como "negacionistas" adotaram para tentar derrubar a existência traumática do Holocausto. Um manifesto recente que reúne jornalistas de renome e autoridade convida a verificar as provas, proceder com cautela na leitura dos fatos, manter-se na certeza desde indícios certos antes de formular juízo e atribuir responsabilidades.
Quantas crianças foram realmente mortas? Mulheres estupradas? Homens torturados? Civis mortos? Eles realmente morreram às centenas no teatro Mariupol? Quem diz isso? Onde estão as provas? E de quais crimes as tropas ucranianas também são culpadas? Qual é a responsabilidade do governo de Kiev de representar a verdade de forma puramente propagandística? Nos talk shows televisivos, seguindo o formato de sucesso testado na pandemia, são convidadas vozes discordantes, divergentes, fora da média para preservar o espírito democrático do debate. A audiência, como bem sabem os apresentadores, nestes casos ganha significativamente. Primeiro foi a vez dos no vax com suas orientações das mais diferentes linhas a defender vigorosamente os direitos constitucionais pisoteados pelo novo regime sanitário total que, aproveitando a pseudopandemia, teria restringido de modo abusivo as nossas liberdades individuais, obrigando milhões de pessoas a submeter-se a uma vacinação com um soro não bem identificado, mas a longo prazo, muito provavelmente, mais letal do que a doença que pretendia combater.
Agora é a vez da guerra na Ucrânia. No entanto, a postura permanece sempre a mesma: no centro está o mesmo pensamento contra o sistema e negacionista. O populismo no vax assim se transfigura naquele da equidistância, senão mesmo naquele da defesa aberta de Putin, vítima da maligna ganância do Ocidente.
Em suma, deveríamos prestar atenção na falsificação da verdade que, através da despudorada manipulação das mídias, a reduz a mera propaganda belicista que defende os interesses estadunidenses, uma Europa corrupta e incapaz, a elite financeira, a oligarquia do governo Draghi, a traição do povo etc.
De fato, duas guerras distintas estariam em andamento: uma que os exércitos lutam no terreno e aquela do conflito de interpretações. Seguindo o afortunado slogan segundo o qual a verdade é a primeira vítima de qualquer guerra - os fatos são tornados irreconhecíveis pela propaganda -, seria apenas graças à nobre figura da dúvida e à necessária e paciente coleta de evidências que uma verdade fugidia poderia ser reconstruída. Mas o efeito dessa atitude é que as provas são anuladas em um turbilhão de discursos que acabam anulando as responsabilidades ao misturá-las em uma única indistinta mistura.
Não é por acaso que a noção de "complexidade" desempenha um papel retórico crucial nessa batalha de interpretações. O adiamento do juízo, a reconstrução histórica, a equidistância necessária, a atribuição de responsabilidades iguais aos dois contendores (OTAN e Putin; Rússia e Ucrânia), na realidade joga areia nos olhos. Mas os olhos de Edith Bruck, que já viram o horror, não precisam da nobre arte da dúvida, não precisam de mais provas para reconhecer um crime de guerra.
Se um regime, como o russo, oculta sistematicamente a verdade há mais de 20 anos, reprime o dissenso, abole todas as formas de democracia, mata e envenena os opositores, cultiva o sonho da Rússia como baluarte em relação à democracia, desencadeia uma guerra no coração da Europa, bombardeia as cidades, mata civis indefesos, é realmente necessário levantar dúvidas, perplexidades, questionamentos sobre o massacre de Bucha e os outros que infelizmente se seguirão? Em nome de que concepção abstrata da verdade? Os testemunhos, imagens e histórias do front não são suficientes? Mas, diriam os preocupados com a defesa absoluta da verdade, alguns detalhes não batem, alguns elementos permanecem contraditórios, nem tudo se encaixa, devemos prestar atenção.
"Belas almas de m*", Pasolini lhes responderia, não percebem que aqui está um povo que luta desesperadamente pela defesa heroica de sua terra, ofendida por uma invasão que não pode ter justificativas? Na desproporção das forças, na injustiça de uma agressão sofrida, na violação cega da intimidade das famílias, nas cidades arrasadas, no atroz sofrimento coletivo, um povo resiste. E vocês realmente acreditam que em nome da paciente busca da verdade é preciso mostrar nuances, indicar onde as águas se misturam, as culpas comuns, os enganos e as injustiças mútuas, problematizar, argumentar para trocar planos, colocar no fundo o que deve ficar no centro e vice-versa?
Isso é o que às vezes acontece mesmo no caso de separações conflitantes entre casais. Existe uma verdade comumente reconhecida: a responsabilidade deve ser sempre distribuída em partes iguais. Mas também há situações clínicas em que a responsabilidade está evidentemente apenas de um dos lados; e, nesses casos, a responsabilidade costuma ser de quem não tem condições de aceitar o desejo de liberdade da outra parte. É o machismo evidente da guerra de Putin: não tolerar a liberdade de uma terra que ele considera como sua propriedade.
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Moscou, Pasolini e as belas almas. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU