Em 1922 o mundo convulsionava no despertar de novas utopias e distopias. O saldo da Grande Guerra deixava um mundo em nova reconfiguração geopolítica, surgiam duas novas superpotências separadas pelas ideologias que marcariam o século XX. Havia o trauma coletivo das mortes nas trincheiras entre semelhantes, mas também a vã esperança que os acordos escritos os curariam e garantiriam a ordem e a paz acima do sofrimento, da morte e da perseguição que se alastrava por todo canto da Europa, África e Ásia. A ilusão durou pouco; em uma década, o capitalismo e o socialismo viveram suas primeiras grandes crises, gerando mais mortes, fome, repressão, instabilidade e guerras. Na Itália já nascia o primeiro fracasso deste novo mundo: o governo do Partido Nacional Fascista sob o comando de Benito Mussolini.
Em 1922, também na Itália, nascia Pier Paolo Pasolini, filho de pais muito católicos, um militar e uma professora, e irmão de um militante socialista católico, morto por outros comunistas, na emboscada de Porzûs. Não haveria motivos para Pasolini crer em utopias, tendo vivido até a idade adulta em uma Itália fascista que seria banhada de sangue pela Segunda Grande Guerra. Mas por motivos que apenas sua arte pode ainda trazer intuições, Pasolini calcou-se na esperança que vem dos pobres, dos despossuídos, sem narrativas sobrenaturais. E assim contou até o mesmo Evangelho com as expressões e as belezas mais humanas e terrenas. ”Não há dúvida acerca da sinceridade de sua busca pelo homem, de seu verdadeiro amor pela humanidade, pelos pobres e simples de sua terra”, resume o jesuíta italiano Massimo Pampaloni, em entrevista concedida ao IHU.
Para comemorar o centenário de Pier Paolo Pasolini, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove nesta segunda-feira, 11-04-2022, às 14h, o debate “Centenário de Pasolini: debate sobre o filme O Evangelho segundo Mateus”, com os professores Dr. Faustino Teixeira e Dr. Rodrigo Petronio, como atividade da 19ª Páscoa IHU. Incertezas e esperanças do tempo presente. O evento é aberto e será transmitido pela homepage, canal do Youtube e página do Facebook do IHU.
Faustino Teixeira possui graduação em Ciência das Religiões pela Universidade Federal de Juiz de Fora (1977), graduação em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (1977), mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1982) e doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (1985).
Rodrigo Petronio é escritor e filósofo e atualmente é professor titular da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP. Desenvolve pós-doutorado no Centro de Tecnologias da Inteligência e Design Digital - TIDD/PUC-SP sobre a obra de Alfred North Whitehead e as ontologias e cosmologias contemporâneas. Ainda é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ. Possui dois mestrados: em Ciência da Religião, pela PUC-SP, sobre o filósofo contemporâneo Peter Sloterdijk, e em Literatura Comparada, pela UERJ, sobre literatura e filosofia na Renascença.
Pier Paolo Pasolini. Foto: Wikicommons
Pasolini foi um artista completo do seu tempo, deu aulas de literatura, escreveu poesias, livros e chegou ao ápice com seus filmes. Em toda sua arte trabalhou como pedagogo, ou um intelectual orgânico, comprometido com a transformação do mundo. “Sua vocação pedagógica é refletida na formulação do jovem revolucionário alemão [Karl Marx]: o sonho de uma coisa é a reforma da consciência. De uma consciência que quer e que pode obter o mundo. Que pode e quer mudar a realidade de acordo com o próprios planos político-pedagógicos, selecionados e vividos coletivamente”, explica o filósofo italiano Luciano de Fiore, em entrevista concedida ao IHU.
Homossexual assumido, Pasolini foi acusado de se envolver com menores de idade, o que lhe fez ser expulso do Partido Comunista Italiano em 1947. Sua militância e adesão ao partido tampouco era integral, percebia o PCI mais como uma última esperança institucional à Itália pós-fascista, mas contraditório. Sempre manteve uma repulsa ao autoritarismo e aos hipócritas, por isso em seus filmes trabalhava essencialmente com a liberdade dos marginalizados. Expressou em suas artes essa preocupação com os efeitos do Estado e da cultura capitalista sobre os pobres. “Em Pasolini, 'o pobre', enquanto potência, deve ser conservado em sua inocência, protegido da sociedade industrial e consumista, na forma de sua cultura popular – linguagens e expressões corporais –, no que o cineasta vislumbra um novo apocalipse, uma nova rearticulação do fascismo através dos circuitos totalitários da ditadura midiática e mercantil que promove o 'assassinato dos vaga-lumes', dos lampejos de resistência ao capitalismo”, analisa o comunicólogo Vladimir Santafé, em entrevista concedida ao IHU.
Pôster com ilustração de Pier Paolo Pasolini (Foto: Pixabay)
Sua crítica ao consumismo pegava a todos. Em sua última entrevista foi contundente ao dizer “não existem mais católicos na Itália, nem marxistas, são todos consumistas”. Para Pasolini, o capitalismo era o neofascismo, uma sociedade tomada pelo consumo, pela falsa liberdade de que todos são tolerados, mas na verdade engolidos pelo totalitarismo. Vinicius Honesko, professor de História da UFPR, afirma que o corpo dos marginalizados era o que Pasolini mais amava, chamava os excluídos ao centro, assim escolhia seus atores, seu enredos, seus personagens. ”Entretanto, ele percebe, pouco tempo depois de filmar a Trilogia da Vida [1971-1974] (em que esse seu modo de operar atinge seu ápice) que esse seu gesto de algum modo esbarra num limite: até mesmo esses corpos são apreendidos no movimento de totalização do neofascismo”, explica em entrevista concedida ao IHU.
Seu último filme é Salò, o qual tanto para Honesko quanto para um dos seus atores e grande amigo, o filósofo Giorgio Agamben, é o grito final da resistência à indústria do consumo e a investida final à anarquia. “Ele trata de expor como vê esse poder tentacular: filma Salò. Mesmo quando já percebe que aquilo que mais ama (os corpos dos marginalizados, seus rostos pobres e belos, como costumava dizer) parece-lhe interditado, não renuncia a seus intentos. Que seja num grito – de desesperança, mas sem medo, não se cala: a denúncia, a resistência, o bradar mesmo que lhe custasse a vida são os modos de insistir, de continuar seu papel de 'destotalizar'“, define Honesko.
Pasolini foi assassinado semanas antes lançamento de Salò. Na sua última entrevista se declarou “mais Cassandra que Tirésias”, isso é, mais profeta da guerra que da esperança. Toda a sua obra cinematográfica, poética e literária dialogou com a história do mundo em que vivia. Com histórias próprias ou roteiros adaptados, Pasolini deu sentido concreto às utopias e distopias do século XX. E conseguiu traduzir isso numa fiel releitura do Evangelho de São Mateus.
Pasolini nasceu de uma família católica, porém com o tempo declarou-se abertamente ateu. Assim como tomou distância da Igreja, ele se distanciou do Partido Comunista. Isso não significou, no entanto, um afastamento dos projetos e da estética que tudo isso representava. O jesuíta Nazareno Taddei definiu isso como “nostalgia do sagrado”. Pampaloni explicou em entrevista ao IHU: “nostalgia do sagrado, porque não podemos esquecer que Pasolini teve uma infância profundamente católica, que permeou a sua cultura de base nos moldes do catolicismo camponês típico do Friuli. Depois se afastou e explicitamente o deixou. Porém ficou uma espécie de saudade, um profundo desejo por algo (nunca chegou ao ponto que nos autorizaria a dizer 'por Alguém'), que iria preencher o vazio deixado pelo abandono. Mesmo em suas expressões mais violentas e críticas contra a Igreja, contra o Vaticano, contra a Democracia Cristã etc., sempre se sente ressoar os passos de uma marcha na direção de um amadurecimento espiritual, especialmente desde que ele entrou no mundo do cinema, desde os anos 1960”.
Pasolini (Foto: Divulgação)
E essa “nostalgia do sagrado” o fez criar uma obra-prima: O Evangelho segundo São Mateus, em 1964. Pasolini foi à Terra Santa conhecer a paisagem da vida de Jesus, se assustou com a estética “queimada da matéria ao espírito”. Mas reconheceu que o Evangelho está na terra: “a minha ideia de que, quanto menores e mais humildes são as coisas, mais profundas e belas elas são, encontra aqui uma confirmação que eu não esperava. Entendi que essa ideia é ainda mais verdadeira do que eu imaginava. A ideia daquelas quatro colinas despojadas da pregação tornou-se para mim uma ideia estética e, por isso, espiritual”, declarou em entrevista.
No casting, escolheu pessoas comuns, por exemplo, foi à Espanha encontrar seu Jesus, intencionalmente um sindicalista, Enrique Irazoqui, também escalou sua própria mãe como Maria, e até mesmo Agamben fez uma ponta como Felipe. O professor Faustino Teixeira comenta que o Jesus de Irazoqui “quebra nitidamente a dinâmica iconográfrica estabelecida. Sua figura impressiona, apresentando-nos um Jesus magro, rude, de ombros recurvados, fartas sobrancelhas pretas, pele bem morena e cabelos curtos. Um Jesus cujo olhar profundo permanece vivo na lembrança dos que assistiram ao filme. O toque da fotografia, dos cenários mínimos e enquadramentos simples, com muitas filmagens em primeiro plano, contribuem para marcar essa presença viva e profética de um Jesus derradeiramente humano. Esse artista espanhol que interpretou Jesus tinha inaugurado com o filme o seu trabalho de representação, assim como todo o elenco, composto por pessoas do povo”.
Cena do filme o Evangelho segundo São Mateus (Foto: Divulgação)
Expressou a dialética do Evangelho também na trilha sonora, dialogando o barroco de Johann Sebastian Bach, com o classicismo de Mozart, a música cristã popular africana e o folk estadunidense. O jesuíta Antonio Spadaro comenta que Pasolini “tem uma instintualidade litúrgica que seleciona os trechos musicais e cria nexos pelo faro”.
Em artigo publicado pelo IHU, Spadaro disseca o Evangelho segundo São Mateus, define o filme como “a obra-prima sagrada”, pois Pasolini entendeu o Evangelho instintiva e esteticamente. O Vaticano declarou o filme como “pouco sacro” quando no seu lançamento, embora reconhecendo a fidelidade à Escritura. Spadaro explica essa contradição pela comparação com outros filmes espiritualizados, que “esse é o Evangelho, não a poesia, não a ideologia, não a coerência estilística (que pode ser uma forma de ideologia). Pasolini, portanto, é verdadeiramente teólogo e exegeta. A sua lectio evangélica é feita, por um lado, de um literalismo absoluto: entre os muitos filmes feitos sobre a vida e a paixão de Jesus, o de Pasolini é o único no qual o protagonista e os outros interlocutores usam palavras escritas no Evangelho, sem recorrer a paráfrases ou transposições. Por outro lado, o seu gesto absolutamente criativo liberta o sentido das palavras e a sua interpretação com a força das imagens”.
Com 50 anos de atraso, isso é, em 2014, o Vaticano reconheceu que o Evangelho segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini, é “a melhor obra cinematográfica sobre Jesus“.
Imagem: capa Revista IHU On-Line N° 504
O italiano Pier Paolo Pasolini só consegue unanimidade num rótulo: o de espírito indomável. É um artista fluido, que vai da poesia ao cinema, passando pelo jornalismo e pelas artes plásticas. Sua busca por um mundo melhor requer ações de revolucionário, de alguém capaz de se manter livre mesmo tendo sido inscrito num partido político; descrente, mas capaz de reconhecer um Deus humano. Sua obra se tornou uma referência na luta contra qualquer tipo de opressão, ou fascismos. Voltar ao artista italiano num tempo tão belicoso, e de inabilidade de reconhecer o humano no rosto do outro, pode ser inspirador. É a aposta da presente edição da revista IHU On-Line.