17 Fevereiro 2022
“A carta de Bento XVI pode ser vista como uma tentativa de reduzir a questão da culpa a um pecado e, portanto, a uma culpa metafísica. Isso se encaixa em um certo padrão, não apenas do catolicismo alemão no qual Joseph Ratzinger cresceu, mas também do catolicismo institucional como um todo ao lidar com as revelações de abuso”, escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, Filadélfia, EUA, em artigo publicado por La Croix International, 15-02-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Na história do papado, Bento XVI marca uma cisão ou um freio, algo até irônico, dado o fato que muitos tradicionalistas identificam seu pontificado com a “hermenêutica da continuidade”.
Essa cisão não está apenas ligada a sua decisão em 2013 para renunciar voluntariamente a função papal, mas ainda mais com o fato que ele agora é mais emérito que Bispo de Roma.
Isso marcou um momento extraordinário na vida da Igreja e a recente carta penitencial de Bento sobre os casos de abusos sexuais na Arquidiocese de Munique, que ele administrou entre 1977 e 1982, precisa ser acrescentada à cena.
A carta era em resposta ao relatório sobre os casos de abusos sexuais do clero entre 1945 e 2019, que afirmou que o papa emérito conduziu mal pelo menos quatro casos durante seu mandato como arcebispo da arquidiocese bávara.
A carta de Bento tem sido recebida de diferentes formas em diferentes países.
Alguns criticam a tentativa do papa emérito de mudar seu envolvimento direto ou indireto em ações criminosas para a dimensão espiritual, e fazer a consciência pessoal decisiva em uma confusão que transforma um crime em uma falha moral a ser confessada ante a Deus – e só Deus.
Como em qualquer coisa publicada sob o nome de Bento XVI nos últimos anos, nós não podemos ter certeza sobre a verdadeira autoria da carta. Nós não sabemos se ele realmente a escreveu, ou talvez apenas parte dela, ou se ele está plenamente consciente do que foi publicado com sua assinatura.
Mas a carta ecoa as formas nas quais o catolicismo alemão tem que lidar com as responsabilidades históricas do último século.
O jovem Joseph Ratzinger estudou para o sacerdócio durante os anos do chanceler Konrad Adenauer na Alemanha, quando havia um “silêncio coletivo” sobre a participação da Igreja alemã no regime nazista.
Nem todos os alemães silenciaram, no entanto. Em 1946, imediatamente depois do fim da Segunda Guerra Mundial, o filósofo suíço-alemão Karl Jaspers publicou uma coleção de palestras que ele deu na Universidade de Heidelberg entre o fim de 1945 e o início de 1946.
O livro, que foi chamado de “A questão da culpa: A Alemanha e o Nazismo” (“Die Schuldfrage”), examinou a culpa geral da Alemanha nas atrocidades do Terceiro Reich de Hitler.
Jaspers, que precisou deixar a sua universidade depois de 1937 principalmente por ser casado com uma mulher judia e estava sujeito à proibição de publicar os seus artigos, distinguiu quatro diferentes tipos de culpa.
Há uma culpa criminal, em que “a jurisdição é dos tribunais”.
Há uma culpa política que “resulta em eu ter que arcar com as consequências dos atos do Estado cujo poder me governa [...] a jurisdição cabe ao poder”.
Há uma culpa moral: “Sou moralmente responsável por todos os meus atos [...] a jurisdição cabe à minha consciência”.
E, finalmente, há uma culpa metafísica: “a jurisdição cabe somente a Deus”.
Apesar das óbvias e enormes diferenças entre a culpabilidade da Alemanha e dos católicos alemães como um todo no regime nazista de um lado e dos católicos na crise dos abusos na Igreja do outro, há lições a serem tiradas que não escaparam aos teólogos alemães. Veja, por exemplo, um livro recente de Julia Enxing intitulado “Schuld und Sünde (in) der Kirche: Eine systematisch-theologische Untersuchung” (Culpa e Pecado (na) da Igreja: uma análise sistemático-teológica, em tradução livre).
A carta de Bento XVI pode ser vista como uma tentativa de reduzir a questão da culpa a um pecado e, portanto, a uma culpa metafísica.
Isso se encaixa em um certo padrão, não apenas do catolicismo alemão no qual Joseph Ratzinger cresceu, mas também do catolicismo institucional como um todo ao lidar com as revelações de abuso.
Na relação da Igreja com a praça pública no contexto da crise dos abusos nas últimas décadas vimos:
1) o domínio da culpa criminal (as estratégias legais e a abordagem do tribunal) e;
2) especialmente após a mudança de 2017-2018 (da Austrália, ao Chile, ao caso McCarrick nos EUA, à Alemanha), o aumento da culpa política (dadas as consequências das investigações nacionais sobre a relação entre Igreja e Estado).
O que ainda falta em grande parte é a culpa moral, porque é algo que envolve um número muito maior de católicos.
A história de abusos na Igreja não é apenas uma história do pequeno número de perpetradores e líderes da Igreja que sabiam sobre os abusos, encobriram e protegeram os criminosos da justiça.
É também a história de um número muito maior de católicos que, por muito tempo, sabiam algo sobre o problema dos abusos na Igreja, mas só muito mais tarde foram tocados por essas histórias e decidiram se tornar parte da solução.
O catolicismo alemão tornou-se, desde 2010, um modelo de resposta construtiva à crise dos abusos. Veja, por exemplo, a contribuição fundamental da Alemanha para a criação em 2012 do “Centro de Proteção dos Menores”, agora “Instituto de Antropologia: Estudos Interdisciplinares sobre Dignidade Humana e Cuidado” na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
Liderado pelo jesuíta alemão Hans Zollner, é o centro mais importante para formar as futuras gerações de líderes católicos nas melhores práticas para lidar com a questão do abuso.
Essa iniciativa aconteceu durante o pontificado do papa alemão Bento XVI. E, até certo ponto, é justo dizer que também foi graças ao seu pontificado.
A história alemã é instrutiva para nos ajudar a entender a trajetória do acerto de contas da Igreja com a crise dos abusos.
As maneiras pelas quais os católicos lidaram com o Holocausto são distintamente diferentes das maneiras pelas quais estão lidando com a crise dos abusos, dada a singularidade da Shoá. Mas há paralelos que podem nos ensinar algumas lições importantes.
A primeira é que o processo de elaboração da responsabilidade coletiva em tragédias envolvendo a Igreja é longo, com diferentes fases e com retrocessos temporários devido às tendências da instituição em se defender.
Um caso em questão é a principal declaração que a Comissão da Santa Sé para as Relações Religiosas com o Judaísmo emitiu sobre o Holocausto em 1998.
O texto, intitulado “Nós Recordamos. Uma Reflexão sobre a Shoá”, incluía algumas declarações problemáticas que minavam uma afirmação clara da responsabilidade da Igreja por parte do que ocorreu durante a era nazista.
O cardeal Edward Idris Cassidy, presidente da comissão, estava bem ciente de que algumas das adições que a Congregação para a Doutrina da Fé – então liderada pelo cardeal Ratzinger – insistia em adicionar ao seu texto como condição para sua publicação eram imprecisas, se não totalmente falsas.
Cassidy decidiu sabiamente que o valor daquele documento superava a inclusão do que ele sabia serem afirmações enganosas.
O processo da Igreja Católica lidando com suas responsabilidades no antissemitismo nazista continuou. Há retrocessos na Igreja ao lidar com o escândalo dos abusos, mas não é mais possível voltar ao negacionismo que era típico até alguns anos atrás.
A segunda lição é que a Igreja que lida com a crise dos abusos deve levar em conta as diferentes dimensões da culpa.
Para o catolicismo de hoje, o mais difícil é a culpa moral, que deve ser traduzida em mudanças na teologia e na doutrina. É o mais difícil porque não é algo que pode ser terceirizado para os meios de comunicação de massa, a polícia e o sistema de justiça, ou o poder dos estados e governos.
É algo que os católicos devem fazer eles mesmos, escutando as vítimas e sobreviventes, suas famílias, especialistas externos (historiadores, psicólogos, cientistas sociais, médicos etc.).
Esse ar de especialista é necessário para desenvolver uma compreensão teológica mais profunda do fenômeno dos abusos na Igreja como algo que é comum para toda a comunidade humana, mas com marcas distintas em termos de falhas institucionais e consequências espirituais.
Isso leva tempo, mas é o caminho correto.
A terceira lição é uma diferença perturbadora com o período pós-Segunda Guerra Mundial.
Agora a questão da culpa não é apenas sobre o que aconteceu no passado.
É também algo como uma culpa proléptica pelo que tememos ou sabemos que está prestes a acontecer: mais escândalos e revelações de abusos no contexto do clima apocalíptico da cultura contemporânea – especialmente o desastre ambiental iminente.
Agora, a disposição dominante é a ansiedade existencial sobre o futuro – não apenas o futuro da Igreja, mas também o futuro do mundo. O Vaticano II pretendia ler os “sinais dos tempos”, mas agora estamos empenhados em ler os sinais do fim dos tempos.
Os católicos devem rejeitar o otimismo superficial e, em vez disso, buscar esperança.
A esperança cristã recupera a dimensão trágica da história, numa apreciação mais profunda do passado – olhando o passado como sofrimento em busca de redenção.
Mal começamos a reconhecer que a tragédia dos abusos na Igreja é um locus theologicus, uma fonte chave para o desenvolvimento da tradição cristã.
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A carta penitencial de Bento XVI e a “questão de culpa” na crise de abusos. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU