23 Novembro 2021
Após a explosão social no Chile que deu a volta ao mundo, em 2019, após um grito de milhares nas ruas reivindicando justiça social, dos mortos pela repressão, das mutilações oculares; após o início de um processo constituinte para mudar a Carta Magna de Pinochet, parece uma contradição que no país andino brote uma alarmante proposta de extrema direita e nostálgica da ditadura.
A reportagem é de Mercedes López San Miguel, publicada por Página/12, 22-11-2021. A tradução é do Cepat.
“Se Pinochet estivesse vivo, votaria em mim”, disse José Antonio Kast, que reivindica o legado do ditador e promete que buscará fazer com que a nova Constituição não seja aprovada no Plebiscito de Saída, para que seja mantido o texto redigido nos anos de chumbo. É que Kast foi deputado de 2002 a 2018 pela União Democrática Independente (UDI), partido de direita de raiz pinochetista. O candidato do Partido Republicano é membro do movimento católico conservador Schoenstatt e conta com o apoio de grupos evangélicos.
Entre suas promessas estão “um renovado estado de emergência”, com amplas atribuições presidenciais para invadir casas e interceptar comunicações, o fechamento do Instituto Nacional de Direitos Humanos, a revogação da lei do aborto, a eliminação do Ministério da Mulher, a privatização da mineira Codelco e a drástica redução de impostos.
A explosão de 2019 permitiu começar a questionar e reverter as bases do tantas vezes ponderado “modelo chileno”, abrindo passagem para uma maior participação social, como a Convenção Constituinte, em meio ao desgaste das duas grandes coalizões de direita e centro-esquerda que governaram os últimos 30 anos, mas que hoje não geram confiança.
O cenário ficou polarizado entre uma esquerda nova liderada por Gabriel Boric, herdeira da indignação nas ruas, e o ressurgimento de Kast, que nas eleições presidenciais de 2017 havia ficado em um distante quarto lugar. No último debate pela televisão, Boric investiu contra o programa do ultradireitista. “Quando falamos em discriminação, José Antonio, subsídio apenas para famílias casadas, página 172 de seu programa; quanto aos aposentados, se deseja aumentar a pensão só para os que são das Forças Armadas, página 51; coordenação para perseguir ativistas de esquerda, página 27; proibição do matrimônio igualitário, página 81; eliminação do Ministério da Mulher e a obrigação de uma garota estuprada ser mãe, página 171”.
Por que após o clamor nas ruas por maior justiça social e igualdade, surge esse político, uma mistura de Bolsonaro e Milei?
O analista Camilo Feres, diretor de estudos sociopolíticos da consultora Azerta, ensaia uma resposta. “Uma parte da penetração do discurso de Kast está em sua agenda propriamente conservadora sobre temas que estão na preocupação de amplos setores da população e frente aos quais a oferta política tradicional carece de propostas. É o caso dos temas migratórios, muito fortes no norte do Chile, mas com alta presença nos setores populares; como [também] aqueles que têm a ver com os temas da religiosidade e das tradições”.
Feres aponta outro fator, o declínio do candidato de Sebastián Piñera. “Os erros de Sebastián Sichel fizeram com que um de seus atributos, a competitividade, se enfraquecesse, gerando uma migração de seus eleitores para uma opção mais nitidamente de direita”.
Entre os erros próprios de Sichel, estão sua contraditória posição em relação a retirada dos 10% dos fundos de pensões, bem como a saída de um de seus porta-vozes por suspeitas de financiamento indevido de sua campanha em 2009. Junto a isso é preciso somar a imagem em queda livre de Piñera, desde a explosão social, que em outubro teve um novo capítulo com os Pandora Papers.
Piñera foi apontado nessa investigação internacional por supostas irregularidades e conflitos de interesse na venda nas Ilhas Virgens de um megaprojeto mineiro, durante seu primeiro mandato (2010-2014). O escândalo forçou a Promotoria chilena a abrir uma investigação por supostos crimes tributários e suborno – que ainda segue em curso – e o julgamento político avançou com os deputados como nunca antes contra um presidente, embora depois uma maioria no Senado evitou sua destituição, na última terça-feira.
Contudo, Feres acrescenta outro aspecto a ser levado em conta na ascensão do Partido Republicano. “Relaciona-se à reação silenciosa na contraposição à explosão [social] e seus efeitos sobre a segurança e a ordem pública, na qual Kast foi o mais nítido representante da crítica à extensão da desordem nas ruas e a sensação de insegurança”.
Em mais de uma ocasião, Kast demonstrou sua admiração por Trump e Bolsonaro e comemorou a irrupção no Congresso argentino do ultradireitista Milei. “Sou um democrata”, diz quem se propõe a construir uma vala no norte para frear a migração ilegal, ao mais puro estilo trumpista.
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Chile. O ultradireitista Kast: o pesadelo dos indignados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU