A Convenção do Chile e o árduo desafio de ser constituinte e reinvenção, não ilusão. Artigo de Salvador Schavelzon

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03 Agosto 2021

 

"Um processo constituinte pode dar origem a um texto fraco e às vezes é isso que é priorizado por um neoliberalismo que se estabelece com sua própria força e racionalidade, além de qualquer código, como consenso que está além do que é levado em consideração pelo sistema político, mais do que de forma evocada, na linguagem. Um texto constitucional pode ser também rígido e pesado, meticuloso e impraticável. Além da sua letra, também pode ser um grande dispositivo de desvio e neutralização de forças insurgentes, através da desativação da força perigosa para a ordem social que foi ativada no estallido".

O artigo é de Salvador Schavelzon, professor na Universidade Federal de São Paulo, doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e mestre em Sociologia e Antropologia pela UFRJ, publicado por DesInformémonos e reproduzido por UniNômade Brasil, 26-07-2021.

 

Eis o artigo. 

 

O cenário constituinte constrói um discurso que implanta e performa a institucionalidade republicana. É o momento em que o sistema jurídico atual discute e estabelece sua regulamentação formal. No caso do Chile, uma nova constituição tentará substituir a aprovada durante a ditadura de Pinochet, que também tem reformas posteriores realizadas na democracia.

 

Como nas regras de uma cooperativa ou de uma escola, a constituição pode estabelecer parâmetros de funcionamento, mas também pode ser ignorada se o funcionamento real, em qualquer sentido, for poderoso o suficiente para superá-lo. O processo constituinte atual promete mudanças, mas não está claro de onde elas virão. Não há muita profundidade do real acessível em um processo como o atual, como aconteceu em outros países.

 

É difícil imaginar um processo de mudança que é inaugurado por uma constituição em vez de consagrado ou seguido por ela, depois de criar condições para isso. A questão para o caso do Chile, então, não é qual país virá ou emergirá com a nova constituição, mas o que o Chile reconhece ou inclui formalmente na constituição atual; um Chile de levantes sociais? ou de um neoliberalismo que permanece, independentemente de estarem no governo progressistas, liberais ou conservadores?

 

Nas primeiras sessões, a esquerda se propõe a “refundar” o país. Setores conservadores afirmam que a constituinte não tem mandato para isso. Em qualquer caso, e apesar do excesso de ritual e pompa, alinhar com as forças insurgentes uma convenção constituinte pode mostrar o conflito que perpassa a vida social. O Chile que a constituição refletiria não seria o do modelo social em curso, mas a mensagem das ruas, dos povos em luta, dos que o modelo exclui e das sensibilidades opositoras que teriam alcançado uma certa coesão e força política a ponto de ter permitido abrir uma fenda, um ponto de inflexão, pelo menos em termos de consenso político.

 

No entanto, as normas vigentes e as correlações de forças entre capital e trabalho, poderosos e povo em geral, acompanham e protegem um sistema. A Constituinte pode ser um momento em que esta ligação seja apontada. O modelo pode permanecer intocado, mas suas lealdades e compromissos podem ser iluminados, questionando a sua legitimidade.

 

Se esperamos ver a Assembleia Constituinte como um espaço para apontar contradições ou mesmo para inventar normas que melhorem a vida das pessoas, vale a pena questionar de quais processos, lutas e discussões coletivas essas normas ou declarações constituintes surgirão, pois certamente não se trata de representantes individuais que decidirão a forma que o país terá, com o risco sempre latente de que a constitucionalização seja fictícia, utópica e longe de um constitucionalismo material e efetivo, dado pela estruturação do mundo e que não passa por convenções nem se detém em simbolismos.

 

A relação entre uma Constituição formal, marco jurídico aprovado, e outra informal, realmente existente, das relações de poder, trabalho, organização social é algo a ser construído politicamente, não é dada e pode ser tênue, se a Convenção permanecer em declarações e politicagem. Considerando o lugar da esquerda de governo na América Latina, não seria uma surpresa encontrar um investimento político voltado para a manutenção de uma ilusão, a construção de uma ilusão que fale de um novo Chile, enquanto o que ocorre de fato é a substituição interna às elites do poder.

 

Se os constituintes construírem uma Constituição cheia de declarações e intenções, a mesma poderá levitar distante, ou mesmo não ser aprovada, se não chegar ao referendo por falta de dois terços. Ela pode ser instrumento de uma elite progressista que poderá ter sucesso, construir uma mística que a ajude eleitoralmente aproveitando um apoio popular a imaginários antineoliberais, ou poderá ser derrotada após uma guerra cultural de comunicação, assimilada ao jogo de polarizações da política de mídia, mas em nenhum dos dois casos se discutirão necessariamente mudanças profundas. A política hoje costuma circular nesse lugar, sem ousadia nem verdadeira força imaginativa.

 

Um processo constituinte pode dar origem a um texto fraco e às vezes é isso que é priorizado por um neoliberalismo que se estabelece com sua própria força e racionalidade, além de qualquer código, como consenso que está além do que é levado em consideração pelo sistema político, mais do que de forma evocada, na linguagem. Um texto constitucional pode ser também rígido e pesado, meticuloso e impraticável. Além da sua letra, também pode ser um grande dispositivo de desvio e neutralização de forças insurgentes, através da desativação da força perigosa para a ordem social que foi ativada no estallido.

 

A partir da lógica partidária dos principais acordos, a política já está procurando controlar o processo e uma eleição presidencial que ocorrerá em novembro também será uma interferência. Se o processo que está sendo celebrado vai realmente ativar um poder constituinte que questiona o constituído e, portanto, alimenta sua força desde fora das instituições, vale a pena perguntar: Que projetos da sociedade ou da vida coletiva estão em jogo hoje no Chile, e na América Latina? Será que esses projetos poderão ser traduzidos em artigos constitucionais? Será que eles terão força para impor mudanças? É uma questão aberta ao que está por vir, e deve ser pensada sem esquecer que qualquer mudança política só pode ser realizada como parte de um movimento político mais amplo.

 

Os tempos em que vivemos tornam muito difícil a organização de um movimento com força constituinte. As normas fragmentam a ação sindical; a luta mapuche em grande parte não passa pela integração na institucionalidade chilena; não há consenso sobre que tipo de política revolucionária, destituinte ou contrapoder é possível hoje; e o estallido foi uma forte mensagem de oposição que impede traduções fáceis, como aquelas que o progressismo tenta delinear sem realmente ir além de suas formas de fazer política conhecidas no Chile – onde fez parte do governo da Concertação e de outros governos locais – ou em forças similares em outros países.

 

O que veremos no Chile é se há horizontes e caminhos abertos, e que esse possível lugar dialoga com a mobilização de 2019, como parte de um movimento latino-americano que ainda não é de mudança, mas sim de revolta, como também poderia ser sentido no Equador e na Colômbia, e que em outros países não teve uma expressão de rua, mas pode ser visto na falta de expectativa diante da inviabilidade do arranjo que organiza a vida, e mesmo na obsolescência dos pactos do período pós-ditadura que governou durante décadas e hoje estão em farrapos, em uma crise política sem horizonte para a sua superação.

 

O atual processo constituinte chileno nasceu de um estallido social e essa é sua força. Mas resta saber se será um caminho fiel a essa origem. Não foi a bandeira que levou o povo para as ruas, com manifestantes inicialmente indignados com a repressão dos secundaristas que lutavam pelo custo das tarifas, em outubro de 2019. Mas tornou-se o caminho proposto pelas instituições para canalizar um descontentamento social que não deixava de encher ruas, formar barricadas, assembleias, interromper a circulação, o trabalho, a obediência do cotidiano, pelo menos nos primeiros dias do protesto. Como na greve colombiana de 50 dias, em junho de 2013 no Brasil, e após dezembro de 2001 na Argentina, durante algumas semanas, o modelo social que governa a sociedade foi suspenso, uma grande interrogação se abriu, enquanto a cidade era pintada de luta e o Estado ficou paralisado, apenas reagindo com repressão dos jovens ao redor da Plaza de la Dignidad, ou nas poblaciones.

 

A proposta da Convenção Constituinte nasce de um acordo entre setores políticos institucionais e foi vista com desconfiança por muitos manifestantes que em novembro de 2019 receberam a notícia deste acordo enquanto a crescente mobilização nacional ainda não havia cessado. A Constituinte pode ter essa função de ampliar a ilusão, a esperança, e fechar o grande interrogante, que podia não dar pé a algo como uma revolução, mas que mantinha em aberto um vazio.

 

Mais uma vez algumas pessoas de terno e gravata, e também a “nova esquerda” que nasceu da mobilização estudantil de 2006 e 2011, decidiram à portas fechadas, sem um mandato, as regras básicas da assembleia constituinte. O acordo implicava que o presidente não cairia e que o protesto não buscaria uma resposta a demandas concretas, tais como o preço das tarifas, ou o sistema de pensão, cujo repúdio é consenso geral, mas a abertura de discussões constituintes em outro nível, como se o destino de qualquer mobilização só levantasse questões a serem tratadas a partir de cima.

 

Uma mobilização e um processo de luta podem enfrentar um poder injusto, desfazendo os canais pelos quais uma minoria governa e se enriquece às custas das maiorias, mas também podem estabelecer um caminho pelo qual políticos desacreditados ou oportunistas se transformam magicamente em intérpretes, tradutores-traidores e administradores de uma voz política que chegou a um ponto de não poder mais ser ignorada, mesmo do ponto de vista dos interesses capitalistas. O pacto social teve que ser atualizado mesmo para o bom andamento dos negócios. A força social, inominável, indomável que funcionou durante semanas evitando líderes e porta-vozes, seria agora concebida como “exigências” constitucionalizáveis.

 

Um processo constituinte não é necessariamente um processo de luta, ele pode refletir um processo de luta ou capturá-lo virando-se contra o mesmo. Há um excesso, que não se encaixa nessa resolução institucional, e teremos notícias sobre sua força no que está por vir, quando os constituintes interpretarem algo que o processo e o movimento real tornam ou não possível.

 

O caminho constituinte foi aceito eleitoralmente. O “eu aprovo” se impôs no referendo de consulta sobre a realização da convenção por 78,28% dos votos, com 50% de participação. A votação para eleger constituintes, em maio de 2021, teve uma participação de 43,3% e elegeu 155 representantes, 17 deles indígenas eleitos em representações especiais indígenas. Se o protesto permaneceu sem rostos e nomes próprios, com símbolos e emblemas distantes da representação – como o cão negro matapacos, a coreografia feminista e as bandeiras mapuches – o mesmo não se pode dizer do processo de eleição dos constituintes, onde precisamente o oposto é colocado e o marketing, os jogos partidários, a mediatização foi personalizando e partidarizando um processo gerado por milhares nas ruas.

 

No caso de uma Convenção Constituinte, com a eleição direta de seus membros (a direita propunha uma fórmula mista, derrotada em referendo) há de fato novas vozes, novos rostos, novos agrupamentos. Mas já estamos de volta à institucionalidade republicana, com sua permeabilidade às agendas do poder, sua lealdade com a sociedade criada historicamente pela burguesia e as elites locais, e como uma forma política que funciona tão bem para a ordem social atual. As pessoas que representam setores chegam à instância deliberativa e uma multidão numerosa ou desorganizada, mas ativa e dirigida contra o poder, se transforma em problemas a serem resolvidos por aqueles que governam, por aqueles que negociam e legislam, ou por aqueles que darão as cartas no processo ainda incerto que está começando.

 

O aspecto mais controverso do acordo com os partidos políticos foi a imposição dos dois terços, que parecia que daria poder de veto aos setores de direita - assim foi arquitetado no acordo do 15 de novembro de 2019 - e que foi o mecanismo que bloqueou a assembleia constituinte na Bolívia, levando à revisão da Constituição pela oposição liberal, uma vez aprovado o texto constitucional e concluída a Assembleia Constituinte onde o MAS - partido de governo - era majoritário. Essa revisão eliminou todo elemento que ainda pudesse conflitar, na versão aprovada, com a institucionalidade atual e com os interesses dos grupos de poder.

 

No Chile, o acordo de novembro de 2019 devolve a iniciativa perdida aos partidos, tradicionais ou novos e informais. A votação em maio de 2021 trouxe uma surpresa, com uma ala direita – que em parte tinha feito campanha contra a convenção constituinte – que não chegou a um terço, e dois terços dos constituintes para setores declarados antineoliberais. Uma das surpresas foi a ampla votação para a lista de candidatos independentes, que obteve a primeira minoria, com 48 constituintes. Uma possibilidade de uma Constituição inovadora que avance na direção da mudança terá que lidar com os limites internos da maioria que escreve a Constituição, uma maioria que não é desconhecida. Já governou cidades e fez parte de coalizões governamentais, com Bachelet, vem atuando na política chilena há décadas.

 

É uma incógnita como constitucionalizar contra o neoliberalismo. Um caminho fracassado é o dos governos latino-americanos que se declararam “pós-neoliberais” entendendo isto como um Estado com políticas que podem ser implementadas sem alterar a estrutura constitucional e de organização do poder econômico. O Estado pode ser chamado de assistencialista, plurinacional ou socialista, mas continuar favorecendo um modelo de abertura ao investimento estrangeiro em uma situação de preços elevados de commodities, reduzindo a pobreza extrema com políticas de transferência de renda que estimulem o consumo, mas sem alterar a matriz de poder, desenvolvimento e desigualdade estrutural com concentração de riqueza, não é pós-neoliberalismo.

 

A complexidade de um processo que deve encontrar consenso e traduzi-lo constitucionalmente alimenta o risco de fechar-se em si mesmo e não dialogar com o processo que o originou. Não é fácil em um cenário onde as carreiras pessoais já estão tomando forma e onde o velho consenso é representado pelos partidos, abrir uma deliberação democrática, no sentido de uma participação ampliada, além do poder governamental.

 

Uma nova Assembleia Constituinte postula uma refundação. Ela o faz na voz de uma mulher Mapuche fluente em Mapudungún. Uma refundação constitucional entra nos livros de história, mas como ser mais do que uma refundação escrita, refundando um país com um poder oligárquico bem estabelecido, com classes populares deixadas para trás e um Pinochetismo implantado na vida cotidiana? Como podemos passar de uma refundação simbólica que postula plurinacionalidade, feminismo ou antineoliberalismo, e chegar mais perto de entender a possibilidade de uma refundação que realmente questione a ordem atual?

 

No processo chileno, as forças tradicionais estão dentro da Convenção. A velha Concertação, do socialismo e da democracia cristã, arquitetos de um governo já em democracia que com uma face progressista manteve a forma neoliberal de governar, poderá formar mais de um terço junto com a direita, ou com setores independentes que se ofereçam em troca de incorporar demandas específicas, impedindo uma constituição de mudança radical.

 

A Convenção é soberana apenas de uma forma relativa. É o produto de uma institucionalidade, da lógica do sistema político, do financiamento de campanhas, do poder político de cada região e dos limites de uma época com o desafio de pensar além do que existe e do que é possível em uma sociedade colonial, capitalista, estratificada e produto das décadas neoliberais.

 

As constituições da Bolívia e do Equador, aprovadas em 2009 e 2008 respectivamente, são um precedente importante [1]. Plurinacionalidade, Bem Viver, Direitos da Natureza, Autonomia e Interculturalidade foram postulados, mas definidos de forma declarativa e aberta, mesmo em contradição com outras normas que os limitavam e circunscreviam ao que já existia. Eram declarações, que rapidamente mostraram sua fraqueza nos governos que mantinham a institucionalidade liberal, não construíram uma plurinacionalidade entendida como autodeterminação das nações indígenas, com presença estrutural na organização política do Estado, e se concentraram em expandir a exploração extrativista, sem qualquer cuidado com a carta constitucional e os direitos coletivos, a democracia comunitária e a alternativa ao desenvolvimento que foi proposta ao invocar a Pachamama e o Vivir Bien (Bem Viver). No caso da Bolívia, a crise de 2019 derivou diretamente do não cumprimento dos limites de reeleição incluídos na Constituição - e no resultado de um referendo sobre o assunto em 2016 - não respeitados pela candidatura de Evo Morales.

 

No Chile fala-se em desmantelar o Estado Subsidiário, uma concepção neoliberal no espírito da Constituição de 1980. Que modelo poderia sucedê-lo? Um novo keynesianismo? Uma nova institucionalidade do Comum? Até que ponto essa discussão consegue se instalar de fato como um debate constituinte? Como qualquer mudança constitucionalmente postulada será capaz de enfrentar os interesses capitalistas e ter efeitos reais sobre a organização social?

 

Como imaginar mudanças em um país onde reina o neoliberalismo e as fraturas de um modelo que nunca procurou mais do que o benefício de uma oligarquia que atua como dona do país? Embora o estallido tenha gerado um clima crítico que poderia beneficiar o retorno de um progressismo que sabe governar sem perturbar as regras do sistema, ainda não vemos um caminho de emancipação ou melhoria diante de uma alta informalidade, precariedade e pobreza. Em relação às nações indígenas, o que está surgindo é uma plurinacionalidade declarativa que, como na Bolívia e no Equador, não leva em conta as nações, mas apenas um multiculturalismo que mantém a criminalização quando projetos comunitários de autodeterminação são organizados. Os prisioneiros políticos do estallido são a expressão da rejeição de um sistema sem espaço para diferenças, oposição radical e dissidência.

 

Embora o progressismo possa vir a governar novamente, o caminho parece ser o mesmo que o percorrido por uma boa parte da região latino-americana. É possível governar, mas não questionar as regras do jogo. Uma constituição poderá ocupar espaços simbólicos que são permitidos, aceitos por uma direita disposta a fazer concessões para manter a viabilidade de um modelo violento. Se for mais do que isso, e for articulado com projetos coletivos e um movimento político, a constituinte poderá falhar, mas se abrirão novamente as alamedas, e as ruas que os poderosos temem se tornarão caminho inevitável.

 

 

Notas: 

[1] Ver Schavelzon, S. 2012 El Nacimiento del Estado Plurinacional. La Paz: Plural, IWGIA, CLACSO. e Schavelzon, S. 2015 Plurinacionalidade e Vivir Bien/Buen Vivir. Dois conceitos lidos do pós-constituinte Bolívia e Equador. Quito: Abya Yala, CLACSO. 

 

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