Em transe desde o grande levante social de 2019, país elegeu uma Constituinte – presidida por professora mapuche – e terá eleição decisiva em novembro. Roteiro para acompanhar a possível construção, na América Latina, de novo paradigma.
O artigo é de Paulina Astroza Suárez, doutora em Ciências Políticas e Sociais pela Universidade de Lovaina (Bélgica) e professora da Universidade de Concepción (Chile), publicado por Nuso e reproduzido por OutrasPalavras, 29-07-2021. A tradução é de Rôney Rodrigues.
O Chile está passando por um processo histórico. No dia 4 de julho, foi inaugurada a Convenção Constitucional, cuja missão será redigir a proposta de uma nova Carta Magna que enterrará definitivamente aquela herdada da ditadura militar de Augusto Pinochet. O novo texto constitucional, que deverá ser submetido a referendo de ratificação, será elaborado por 155 deputados constituintes eleitos com paridade de gênero e 17 cadeiras para indígenas. Esse processo é observado com atenção especial em vários países, especialmente na América Latina.
Este contexto é o resultado de uma série de situações que nos permitem sustentar, sem medo de errar, que o Chile mudou. O país não é mais o mesmo de antes da rebeldia social de outubro de 2019 e que desencadeou a atual conjuntura. Aquele terremoto político de 10 graus (e olha que no Chile estamos acostumados a terremotos) foi apenas o estopim para um país que vinha acumulando pressões e tensões que aguardavam o momento adequado para explodir. Já era evidente a desconexão da classe política, da velha mídia e do poder econômico com a população que cada vez mais se afogava em dívidas, com serviços como Saúde e Educação caríssimos para a maioria e gratuitos (mas de baixa qualidade e com longas listas de espera) para outros. Um país onde o classismo, a segregação e o racismo cotidiano foram escondidos sob o tapete e ignorados no discurso público. Questões relacionadas ao sistema previdenciário, ao modelo educacional e à falta de uma perspectiva de gênero já davam sinais do descontentamento que existente no país. Mas as vozes que debatiam isso nunca eram ouvidas. Foi o aumento da tarifa de passagem do metrô que, no final de 2019, abriu uma válvula para toda aquela energia acumulada inundar as ruas com milhões de pessoas que, em sua maioria pacificamente, saíram para protestar. As rebeldias, no entanto, trouxeram componentes de violência e vandalismo que colocaram o governo, os partidos políticos e as várias instituições do país em xeque.
Depois dos acontecimentos ocorridos a partir do dia 18 de outubro em Santiago e, a partir do dia seguinte, em diferentes regiões do país, massivas manifestações espontâneas e outras organizadas permitiram que milhões de cidadãos saíssem para expressar suas demandas e frustrações com o modelo político do país. As demandas eram múltiplas, divergentes e até, por vezes, contraditórias entre si e se expressavam sem as bandeiras de partidos políticos, associações, sindicatos ou outras lideranças institucionais. Os cidadãos criticaram o modelo de desigualdade, os abusos de poder, os conluios entre empresas. Exigia dignidade e uma nova Constituição.
Nesse contexto de protestos e tensões, surgiu o Acordo pela Paz Social e uma Nova Constituição. Em 15 de novembro de 2019, a maioria dos partidos políticos chilenos – com a notável exceção do Partido Comunista (nas palavras de seu secretário-geral, Guillermo Tellier, por não ter sido convidado para a primeira negociação dos demais partidos políticos e porque não concordavam com o quórum de 2/3 estabelecido para aprovar as normas do texto da Nova Constituição, em vez de 3/5) – assinaram o acordo que abriu caminho para a reforma constitucional que permitiu o referendo de 25 de outubro de 2020. Era necessário realizar esta reforma porque a Carta Fundamental que rege o Chile limita a participação dos cidadãos na tomada de decisões, um dos aspectos que o novo texto pretende modificar.
Apesar da pandemia, a participação no referendo foi superior a 50% do eleitoral total, quebrando a tendência de queda registrada nas eleições anteriores. 78% foram a favor de uma Nova Constituição e 79% votaram para que o órgão encarregado da redação do texto fosse eleito integralmente pelos cidadãos, sem que o Congresso indicasse a metade dele.
O processo de luta pela nova Constituição foi o prelúdio de 2021, ano em que o país ficou atolado em debates políticos com uma intensidade inusitada. O calendário eleitoral é muito intenso e teve que ser modificado devido aos efeitos da pandemia que, como no resto dos países, foi atingido fortemente. Este ano, o Chile já votou para as eleições dos 155 constituintes, para governadores regionais (a primeira vez que, de acordo com a Constituição, são eleitos diretamente por territórios regionais – e não designados pelo poder central) e para autoridades locais [prefeitos (as) e vereadores (as)]. Uma mega-eleição em que a participação eleitoral caiu para 40%. No segundo turno das eleições para governador, apenas 23% foram às urnas, o que continua sendo um sinal de alerta e preocupação para o sistema político chileno, que estuda restaurar a obrigatoriedade do voto.
Em 18 de julho, ocorreu as primárias. Duas das coalizões que buscam a cadeira presidencial chegaram a um acordo para participar desse processo: quatro homens da coalizão de direita “Chile Vamos” (Joaquín Lavín, Mario Desbordes, Sebastián Sichel e Ignacio Briones) e dois da esquerda, Daniel Jadue do Partido Comunista e Gabriel Boric da Frente Ampla. Os candidatos do Partido Radical, Carlos Maldonado, do Partido Socialista, Paula Narváez e da Democracia Cristã, que, tendo eleito Ximena Rincón nas primárias internas, parecem hoje ter como carta na manga para a disputa presidencial a atual presidenta do Senado, Yasna Provoste (que ainda não se assumiu publicamente como tal). Atualmente, a possibilidade de uma “primária cidadã” ou “convencional” está sendo negociada entre os partidos de centro-esquerda para decidir quem será o candidato da “Unidade Constituinte”, uma primária que não contaria com financiamento público ou publicidade na mídia. [Por fim, pela colisão de direita, venceu Sebastián Sichel; pela de esquerda, Gabriel Boric].
A divisão da centro-esquerda e a falta de acordo quanto às primárias colocaram este setor em desvantagem em relação às demais coalizões por não poder contar com primárias financiadas com recursos públicos e com espaço para publicidade gratuita, dois aspectos fundamentais para fazer chegar ao eleitorado suas ideias programáticas e aumentar o grau de reconhecimento de que precisam para ter adeptos e eleitores.
Além das forças políticas mencionadas, surgiu nos últimos anos um movimento de extrema direita que se separou do partido União Democrática Independente (UDI) pós-Pinochet e se tornou o Partido Republicano, liderado pelo ex-deputado da UDI, José Antonio Kast. As bases deste partido respondem às características do populismo de extrema direita observado na Europa e nos Estados Unidos. O seu discurso baseia-se na retórica “patriótica”, “neosoberanista” e “anti-imigrantes”. Para as eleições constituintes, o Partido Republicano fez parte da lista Chile Vamos, algo que foi muito criticado por setores políticos de centro-esquerda. Kast obteve 8% na última eleição presidencial, dado importante para entender o espectro político contemporâneo.
O calendário político chileno continua com as eleições de 21 de novembro em que metade do Senado e toda a Câmara dos Deputados e Deputados elegerão os presidentes das Casas por um período de quatro anos, embora com restrições à reeleição de parlamentares mais velhos. Também nesta ocasião, serão eleitos os Conselheiros Regionais de cada região. Em caso de segundo turno nas eleições presidenciais, ele ocorrerá no dia 19 de dezembro.
A maratona eleitoral chilena – que inclui o referendo de 25 de outubro de 2020, a eleição dos constituintes em 15 e 16 de maio de 2021, a instalação e início de funcionamento da Convenção Constituinte em 4 de julho e as primárias de 18 de julho – é um marco para o país e para a região. O Chile iniciou um processo constituinte sem paralelos em outros países. É a primeira vez que um texto constitucional será elaborado por meio de um órgão colegiado, totalmente eleito pelos cidadãos, com cadeiras reservadas aos povos indígenas e com alta participação de membros não filiados a partidos políticos.
Os 155 deputados constituintes refletem que a sociedade chilena mudou nas últimas décadas – mas essa mudança não se refletiam na correlação de forças e na representação política nos órgãos constituídos ou nas instituições políticas, especialmente nos partidos. O Congresso Nacional decidiu que a eleição dos constituintes ocorreria no regime distrital e segundo as normas com que os deputados são eleitos. Uma regra de correção foi adicionada ao sistema eleitoral D’Hont para a distribuição das cadeiras – e resultar em uma Convenção paritária. Teoricamente, isso beneficiaria mais as mulheres. Porém, na prática, beneficiou mais aos homens que, embora obtivessem menos votos, aderiram à Convenção porque regra da paridade obrigou mulheres eleitas a cederem cadeiras aos homens, para eles chegassem a 50% dos assentos na Assembleia Constituinte. Também em um processo mais complexo e demorado de discussão política, 17 assentos foram aceitos para os povos dentro das 155 cotas reservadas para a Convenção Constitucional. Ao contrário do que acontece na eleição dos membros da Câmara dos Deputados, foram permitidas listas independentes. O resultado final, que não era previsto por nenhuma pesquisa, foi a eleição de grande parte daqueles chamados de “independentes” – de movimentos sociais, academia e sindicatos. Em última análise, tratava-se da sociedade civil não militante em partidos políticos organizados.
O resultado da eleição dos deputados constituintes também revelou o enfraquecimento da direita chilena. A baixa popularidade do governo e, principalmente, de Sebastián Piñera, afetou o desempenho eleitoral da direita, que não obteve nem mesmo um terço das cadeiras, como planejavam, o que lhe conferiria o poder de veto à mudanças mais radicais na Constituição. Por outro lado, os partidos tradicionais, tanto de direita como de centro-esquerda, também foram severamente punidos nesta eleição. O único deles que conseguiu fazer uma eleição digna foi o Partido Socialista, elegendo 15 deputados constituintes. A Democracia Cristã, partido que na década de 1960 passou a liderar seu próprio governo, conta com apenas um constituinte. A esquerda também foi dividida em duas listas: uma representada pela Frente Ampla e pelo Partido Comunista (Lista Aprova Dignidade) e outra, a Lista do Povo, nascida de vários movimentos sociais ligados ao território, ao feminismo e às causas ambientais. Ambos obtiveram grande número de votos e conseguiram eleger um número significativo de constituintes. Entre os independentes, muito diversos, encontra-se o recente movimento dos Independentes Não Neutros (DCI) que, apesar de não ser um partido político e ter sido constituído apenas para estas eleições constituintes, conseguiu uma representação significativa de 11 cadeiras.
A formulação da Convenção Constitucional reflete, em suma, um Chile mais real, mais representativo quanto à sua diversidade e a de seus territórios. A maioria dos constituintes são advogados, mas também existem muitos professores, artistas, escritores, acadêmicos e pessoas sem trabalho remunerado. Os territórios agora estão mais bem representados, com gente das cidades e das vilas do Chile (o mau hábito de trazer candidatos de Santiago para disputar assentos parlamentares fora da capital é muito minoritário). Era disso que o Chile precisava para legitimar as novas regras que poderiam governá-lo nas próximas décadas. Sem dúvida, abre-se a possibilidade de desenvolver um sistema diferente, abandonando a concepção neoliberal que permeia todos os alicerces do Chile de hoje e buscando um modelo que tenha uma base mínima de proteção social que dignifique cada pessoa e garanta o bem viver.
Em muitos países, o questionamento dos partidos autodefinidos como social-democratas abriu caminho para um amplo debate acadêmico e político. Vários partidos socialistas europeus viram seu eleitorado tradicional abandoná-los e optaram por outras linhas políticas. É o caso do Partido Socialista Francês, que, nas últimas eleições presidenciais, foi reduzido a esquálidos 6,36% dos votos e é também o caso do Partido Social-Democrata Alemão, que nas últimas eleições foi ultrapassado pelos Verdes. No Chile, o uso deste significante já é tão corrente que até Joaquín Lavín, o candidato derrotado da União Democrática Independente (UDI), força claramente localizada na direita conservadora, se definiu como “social-democrata”. No entanto, a pandemia mudou as coisas. A falta de proteção social básica aos cidadãos – incluindo os da classe média – que se escancarou com a covid-19 fez com que diferentes forças propusessem programas que promovessem modelos próximos do que, na Europa, se entende por “social-democrata”. Ou seja, o abandono do princípio da subsidiariedade do Estado (expressão clara do modelo neoliberal imposto como selo na Constituição de 1980) e o estabelecimento de um modelo de Estado de Direito Social e democrático.
Neste ponto, várias das propostas dos candidatos visam estabelecer as bases da social-democracia, mas os partidos tradicionais que se assumiram como social-democratas (aqueles que formaram a Concertación de Partidos por la Democracia, hoje Unidade Constituinte, por exemplo), foram punidos pelo eleitorado, ainda que não totalmente abandonados se olharmos para os resultados das últimas eleições locais e regionais.
Os programas de Daniel Jadue (Partido Comunista) e as ideias e medidas anunciadas por Gabriel Boric (Frente Ampla) não podem ser classificados – como fez parte da direita – como um comunismo doutrinário, no sentido dogmático do termo. Nem mesmo no caso de Jadue, e menos ainda no de Boric, que triunfou nas primárias de esquerda sobre o candidato do PC, são evidentes as características histórico-filosóficas do marxismo-leninismo, salvo algumas questões específicas. São as bandeiras do socialismo democrático que essas candidaturas estão adotando, embora, no caso de Jadue, ele o faça sem nunca usar o termo “social-democracia”. Os partidos tradicionais de centro-esquerda carregam o descontentamento dos cidadãos – o que se reflete na expressão amplamente usada de que “não são 30 pesos, são 30 anos”, em relação à luta pela passagem do metrô e aos anos de democracia. Esse contexto dificulta que opções tradicionais do socialismo democrático alcancem os cidadãos insatisfeitos com o modelo chileno, que, embora tenha avançado muito nos governos pós-ditadura, manteve uma base herdada do pinochetismo e se enveredou por caminhos nos quais as forças políticas, absorvidas pelo poder, cometeram atos intoleráveis de corrupção.
Além de questões associadas à política interna, o debate constituinte deve abordar as relações internacionais do Chile. Uma questão que também estará presente nos programas políticos para as eleições presidenciais. Embora nunca tenha sido um tema de relevância e interesse para os cidadãos, as coisas parecem ter mudado. A agenda internacional transcende a várias esferas e hoje se conecta com as mudanças na política do Chile: direitos humanos, meio ambiente, acordos comerciais ou imigração são temas que o país começa a abordar com outros olhares.
O programa da candidata Paula Narváez, do Partido Socialista, dá atenção especial ao tema. Mostra uma vocação e um compromisso determinado nas relações com a América Latina, ao mesmo tempo que faz dos direitos humanos a marca da presença internacional do Chile. Paralelamente, o programa promove uma política externa feminista e inclusiva e turquesa (verde e azul para os oceanos), bem como a promoção da internacionalização das regiões e uma nova política de desenvolvimento comercial. No mesmo sentido, a candidatura de Gabriel Boric apresenta proposta semelhante para a questão internacional, afirmando que seria feminista, inclusiva e antirracista. Ao mesmo tempo, ele concorda com Narváez em propor uma política externa turquesa, descentralizada e com forte cunho na América Latina, chegando a propor o pedido do Chile de entrada no Mercosul como um Estado-membro pleno. No entanto, difere ao indicar que, em termos de desenvolvimento comercial, o país deve implementar mecanismos de participação cidadã, especialmente no caso de assinatura de Tratados de Livre Comércio.
O que pode ter maior impacto sobre as relações exteriores do Chile é o que a Convenção Constituinte resolver. Já houve debates anteriores nos quais ficou claro que o escopo dos tratados internacionais será abordado, especialmente o comércio e os investimentos, a política ambiental, o multilateralismo e questões associadas à integração regional. As ferramentas internacionais do Poderes Executivo e Legislativo também terão que ser abordadas para que a relação entre essas duas instâncias sejam reequilibradas. O Chile tem uma forma de governo que se caracteriza por ser um presidencialismo reforçado, algo que amplos setores políticos já expressaram sua disposição de moderar.
As expectativas dos trabalhos da Convenção Constitucional são muito altas para grande parte da população chilena. Foi uma válvula de escape para as tensões geradas pela rebeldia social, mas muitas das causas que a levaram foram exacerbadas pela pandemia. Os efeitos negativos da covid-19 aumentaram os abismos já existentes e atingiram de forma particularmente mais forte as mulheres. O contexto político e social continua muito delicado e frágil e o sucesso não é garantido. Dependerá de muitos fatores se o processo constituinte chileno será um sucesso e se tornará um exemplo mundial de como resolver problemas fundamentais por meios democráticos e consensuais. Diálogo, tolerância e vontade política serão fundamentais para termos uma nova Constituição para um novo Chile até 2022.
A instalação da Convenção Constitucional não está isenta de problemas de todos o tipos e índoles. Por outro lado, no dia 4 de julho, dia marcado pela reforma constitucional e posterior decreto do Presidente da República, as instalações não estavam preparadas para a realização de sessões. Apesar de ser responsabilidade do governo através da Subsecretaria da Presidência da República e de ter um responsável nomeado por seis meses, a sessão finalmente teve que ser desenvolvida por outros órgãos do Estado e grupos da sociedade civil. As universidades estaduais se comprometeram em oferecer espaços para a Convenção, se necessário, enquanto a Faculdade de Medicina prestou assessoria sobre protocolos de saúde e controle de para a lotação dos espaços. A Câmara dos Deputados e Deputadas, assim como suas associações de servidores públicos, colaboraram em termos de apoio técnico, programas, sistemas e aplicações tecnológicas para a realização das sessões.
Apesar de todos os problemas e imprevistos ocorridos, a Convenção Constitucional está trabalhando e discutindo seu regulamento. É presidida por uma mulher mapuche, trilíngue e com dois doutorados (no Chile e na Holanda). A composição, que reflete o Chile de hoje, traz ideias que moldarão ações para o futuro. É uma oportunidade única para o país começar a avançar na caminhada de um Estado de Direito Social e Democrático que os cidadãos não só precisam, mas também merecem.