28 Agosto 2021
“Em algum momento, devemos assumir que é preferível criar o novo a nos dedicar a reformar o existe. Que não é possível descolonizar o Estado, nem despatriarcalizar o patriarcado; nem democratizar as Forças Armadas e o Poder Judiciário, núcleos duros das opressões. É o que nos diz a experiência das últimas décadas”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 27-08-2021. A tradução é do Cepat.
Embora estejamos acostumados ao papel devastador dos dispositivos armados, legais e ilegais, contra os povos e setores sociais, costuma passar desapercebido o caráter depredador das instituições estatais e das organizações de cima. Em não poucas ocasiões, elas desarticulam as comunidades em resistência de uma forma ainda mais duradoura do que a repressão violenta.
Algo assim acontece no Chile da revolta e agora da Convenção Constituinte. Ainda temos esquerda, cidadãos é o título que Manuel Cabieses, veterano lutador e jornalista, diretor da publicação Punto Final até o seu fechamento em 2018 e ex-militante do Movimento de Esquerda Revolucionária, dá ao seu último artigo.
Com dor e raiva, menciona a dispersão do povo e a desorientação ideológica, já que setores importantes daqueles que lutaram na revolta lançada em outubro de 2019 foram subordinados à cultura excludente da oligarquia.
Destaca que os dois principais candidatos à presidência, Sebastián Sichel, pela direita, e Gabriel Boric, pela esquerda, são duas faces da mesma moeda, pois ambos recebem a bênção da Bolsa de Comércio em demonstração eloquente de confiança do capital financeiro no resultado das próximas eleições.
A Lista do Povo, que havia conquistado 27 cadeiras das 155 em jogo na Constituinte, sendo o grupo que encarnava os movimentos nascidos na revolta, perdeu um terço dos constituintes pelas disputas internas de poder, manobras e acordos secretos que resultam uma cópia da velha cultura política.
Uma das renunciantes, a constituinte Claudia Pérez, afastou-se da Lista do Povo devido às intimidações, contínuos atritos, más práticas, atitudes brutas e a evidente falta de probidade de alguns dirigentes. Refere-se à denúncia feita pelo Centro de Investigação Jornalística (CIPER, em espanhol) de casos de comprovada corrupção nos gastos de campanha que levaram à expulsão de vários ativistas.
Meios de comunicação de esquerda e independentes, como El Clarín e El Ciudadano, estão tentando analisar e compreender as razões da crise neste grupo que surgia como o porta-voz natural dos movimentos populares.
Um deles considera que a torrente inicial da Constituinte foi se acalmando até se tornar um tranquilo canal constitucional, em meio ao qual aparecem as manobras e acordos políticos, nos bastidores, entre os diferentes grupos da Constituinte.
A conclusão do jornalista Guillermo Correa é que a energia desse setor começou a se voltar para as eleições de novembro, com a ideia de poder conquistar novos espaços de poder na institucionalidade capitalista que rejeitavam com vigor e decisão nas ruas, assembleias e territórios.
De fato, o poderoso movimento popular chileno se envolveu primeiro na eleição da Assembleia Constituinte, comparecendo às urnas em 15 e 16 de maio, mas imediatamente suas energias se voltaram para as eleições presidenciais e parlamentares de 21 de novembro, que se sobrepõem à elaboração de uma nova Constituição.
Nesse processo, que pretende transferir a potência das ruas para as instituições estatais, foram sendo abandonadas partes dos princípios e rebeldias, que acabaram desfigurando e fragilizando as organizações de base. Pior ainda, participando nas instituições, a velha cultura política se renova e ganha vigor, encarnando-se nos jovens e militantes dos setores populares.
É necessário aprender dos processos em curso, pois se repetem de país em país com notável precisão. O levante de outubro no Equador foi tragado pela disputa eleitoral, situação que pode se repetir na Colômbia com as eleições de 2022, com o agravante de que foi a mais profunda e extensa revolta das várias que sacudiram o continente, nos últimos anos.
Um primeiro aprendizado diz que não é possível participar das instituições estatais sem praticar a cultura política tradicional. É profundamente equivocado pensar que, a partir desses espaços, é possível fazer algo diferente do já estabelecido. Repetidamente, observamos que as melhores vontades colidem com os muros institucionais.
O segundo aprendizado é que o maior erro consiste em dispersar as organizações de base, que são as que geram os grandes eventos e as que podem dar continuidade aos movimentos. Sem elas, ficam prisioneiros das dinâmicas institucionais que os neutralizam.
Em algum momento, devemos assumir que é preferível criar o novo a nos dedicar a reformar o existe. Que não é possível descolonizar o Estado, nem despatriarcalizar o patriarcado; nem democratizar as Forças Armadas e o Poder Judiciário, núcleos duros das opressões. É o que nos diz a experiência das últimas décadas.
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Instituições depredadoras. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU