10 Novembro 2021
“Sob as ondas do oceano, sem que percebamos, há uma imensa rede, poderosa e bem financiada. Se não queremos que o mundo progressista acabe como o Titanic, ao descobrir a existência real desta rede, é preciso fazer duas coisas: pesquisar mais sobre como a nova extrema direita se movimenta em nível internacional e se rearmar melhor para frear seu avanço e vencê-los”, escreve Steven Forti, professor associado de História Contemporânea, na Universidade Autônoma de Barcelona, e pesquisador do Instituto de História Contemporânea, da Universidade Nova de Lisboa, em artigo publicado por Ctxt, 02-11-2021. A tradução é do Cepat.
Os que continuam pensando que a nova ultradireita é um fenômeno nacional ou limitado a apenas alguns países estão muito enganados. Vale a pena esclarecer mais uma vez: a extrema direita 2.0 é uma grande família global com laços transatlânticos e uma infinidade de think tanks, fundações, institutos e associações que, nas últimas duas décadas, foram tecendo uma densa rede que promove uma agenda compartilhada, além de movimentar grandes somas de dinheiro.
De Washington a Budapeste, de Moscou a Bruxelas, de Brasília a Lisboa, de Roma a Paris, de Madrid a Lima, de Varsóvia a Liubliana. Existe uma espécie de Internacional reacionária que reúne a nata das formações do conservadorismo radical e do ultradireitismo em escala global.
Sim, há divergências entre vários de seus membros, não faltam discórdias e fricções, às vezes, batem de frente e alguns inclusive não podem nem se ver, mas ao final colaboram, trocam informações, discursos, práticas e conhecimentos, pois há mais coisas que compartilham do que os diferenciam.
Não é nada fácil traçar um mapa dessas redes em nível internacional, também por sua obscuridade, mas podemos tentar apontar um primeiro esboço. Comecemos pelo âmbito europeu, porque é em Bruxelas onde há muitos encontros.
As conexões, facilitadas pela presença dos deputados das formações de extrema direita de praticamente todos os países da União Europeia na capital comunitária, permitiram, paulatinamente, desde o fim dos anos 1980, a construção de algumas relações que hoje em dia são mais do que estáveis. A existência dos grupos parlamentares Identidade e Democracia (ID) e Reformistas e Conservadores Europeus (ECR) oferece alguns espaços para compartilhar ideias e experiências, além da elaboração de uma agenda comum. Sem contar o financiamento que possuem.
O ID é liderado pela Liga – o presidente é o salviniano Marco Zanni – e conta, entre outros, com o Agrupamento Nacional, de Le Pen, Alternativa para Alemanha e os Partidos da Liberdade austríaco e holandês, ao passo que o ECR é liderado pelos poloneses do Lei e Justiça e tem entre seus membros muitas formações do leste, além do Vox, os Democratas da Suécia e Irmãos da Itália, cuja líder, Giorgia Meloni, atualmente ocupa a presidência do grupo.
É verdade que nem no passado e nem atualmente a extrema direita conseguiu se unificar em apenas um grupo no Parlamento Europeu, nem em só um partido em nível comunitário, mas, embora difícil, não podemos descartar a hipótese no futuro. A recente expulsão do Fidesz do Partido Popular Europeu, somada à saída dos eurodeputados britânicos, tanto os do Brexit Party, de Nigel Farage, como dos Tories de ultradireita de Boris Johnson, agitou as águas.
Há meses, alguns mais do que outros – começando pelo líder da Liga, Matteo Salvini – tentam chegar a um acordo para tornar os eurocéticos o terceiro grupo da Eurocâmara, ficando atrás apenas dos social-democratas. Em julho passado, boa parte dessas formações, com Orbán, Le Pen, Abascal e Salvini na liderança, assinou um manifesto em defesa de uma Europa cristã, na qual a soberania nacional deve prevalecer sobre a comunitária, que apontava medidas.
Contudo, para além das relações entre os diferentes partidos da galáxia ultradireitista em Bruxelas ou de forma bilateral - Abascal visitou Orbán, em maio, Meloni esteve na festa do Vox, em Madrid, há algumas semanas, Salvini participou do congresso dos portugueses do Chega, na primavera -, ganham mais importância as redes globais tecidas por fundações e think tanks que se apresentam, em muitos casos, como independentes.
Uma delas é a renomada Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC), que reúne o Gotha do mundo conservador norte-americano e que, além de convidar todos os anos algum líder europeu (Marion Maréchal-Le Pen, em 2018, Giorgia Meloni, em 2020), possui tentáculos na Austrália, Japão e Brasil. No país latino-americano, por exemplo, desde 2019, graças ao apoio oferecido pelo presidente Jair Bolsonaro, organiza-se uma conferência anual.
Na que foi realizada em Brasília, no início de setembro, além das elites bolsonaristas, havia também uma delegação estadunidense. Era liderada por Donald Trump Jr., Jason Miller, ex-porta-voz de Trump e atual CEO da Gettr, a nova plataforma social lançada pelo ex-presidente norte-americano após sua exclusão das redes sociais tradicionais, e Matthew Tyrmand que, após seus primeiros passos no Breitbart News, por intermédio de Steve Bannon, é uma das figuras cruciais do Projeto Veritas, uma ONG ultradireitista que assedia jornalistas e professores, espalhando vídeos falsos gravados com câmeras escondidas.
Além disso, encontramos a Fundação Edmund Burke, fundada em 2019 e ligada a setores ultraconservadores israelenses, estadunidenses e europeus. Uma das figuras centrais é o filósofo israelense Yoram Hazony, autor do livro A virtude do nacionalismo e presidente do Instituto Herzl. Em um dos primeiros encontros organizados pela fundação – a Conferência Nacional do Conservadorismo, realizada em Roma, em fevereiro de 2020 e dedicada, não percam isso, a João Paulo II e Ronald Reagan -, Hazony conseguiu reunir, entre outros, Meloni, Orbán, Abascal e Marion Maréchal.
Atenção, aqui, não se trata apenas de tirar uma foto como pede o ritual, nem de estreitar laços, isso também, mas em elaborar uma proposta ideológica compartilhada e construir hegemonia. Citado ou não, a extrema direita aprendeu a lição de Gramsci, conforme Alain de Benoist explicou e colocou em prática com sucesso, há décadas, para revitalizar e transformar o neofascismo francês e, enfim, europeu.
E nisso a esquerda deveria, agora, aprender com a ultradireita. Evitemos mal-entendidos: não deveria aprender no sentido de copiar suas ideias, como defendem os "rojipardos" ou algum esquerdista distraído, mas no sentido de se reforçar ideologicamente e entender que a batalha cultural, agora, é mais crucial do que nunca.
É possível dizer o mesmo sobre as escolas de formação. Já se sabe, os partidos não são o que eram. Correto. Mas a ultradireita parece ter entendido que sem algumas escolas onde se formam quadros – ou, como chamam, líderes do futuro – não se vai muito longe na política. E a extrema direita 2.0 já está fazendo isso em escala nacional e também global.
Este é, por exemplo, o objetivo do Instituto Superior de Sociologia, Economia e Política, fundado por Marion Maréchal, em 2018. Após sua sede francesa, localizada em Lyon, há alguns anos, também foi inaugurada uma sede em Madrid, presidida por Miguel Ángel Quintana Pérez e estreitamente ligada, por mais que desmintam, ao entorno do Vox, por meio de figuras como Kiko Méndez-Monasterio e Gabriel Ariza, filho do presidente do grupo Intereconomía.
No entanto, já antes, nos tempos do governo nacional-populista italiano formado pela Liga e o Movimento 5 Estrelas, o ex-conselheiro de Donald Trump, Steve Bannon, havia tentado algo semelhante no Mosteiro de Trisulti, nas redondezas de Roma. Com a colaboração do Instituto Católico Dignitatis Humanae, presidido por Benjamin Harnwell, Bannon almejava criar uma escola populista que tinha como objetivo formar alguns “guerreiros culturais” e alguns “gladiadores” para defender a cultura ocidental judaico-cristã.
O caso de Trisulti, por mais que tenha fracassado, demonstra a porosidade desses ambientes: obstinados ultradireitistas, membros da Alt-Right estadunidense, conservadores pós-reaganianos, católicos integristas, etc., colaboram superando suas divergências em projetos transatlânticos, neste caso, na formação de novos quadros.
Bannon, muitas vezes apresentado como uma espécie de gênio do mal, esteve muitas vezes ligado a muitos desses projetos. Deixando de lado a capacidade de se vender aos meios de comunicação, como um titereiro que mexe os fios da marionete, algo longe de ser verdade, o ex-diretor do Breitbart News também havia lançado, lá por 2018, The Movement, uma plataforma que almejava unificar a extrema direita do velho continente frente às eleições europeias do ano seguinte. Ou, no mínimo, oferecer apoios e auxílios em análises, estudos e propagandas.
É verdade que a maioria fechou a porta na cara de Bannon, com exceção de Salvini, Meloni, Bolsonaro e o partido de oposição de Montenegro, mas não resta dúvida de que para “Sloppy Steve”, como o definiu Trump, em um memorável tuíte, não faltou recursos, nem know-how. De fato, mais nas sombras do que há alguns anos, Bannon viajou recentemente para Madrid – não sabemos se para se reunir com Vox – e se mobilizou para alcançar o sucesso da CPAC-Brasil (Conservative Political Action Conference).
Parece que no último ano Bannon vem reorientando suas desavenças com Trump que, de fato, o anistiou horas antes de deixar a Casa Branca, acusado por fraudar doações para a construção do muro na fronteira do México. Além disso, Bannon, seguindo a vontade do ex-presidente, negou-se a comparecer perante o comitê legislativo que está investigando o assalto ao Capitólio, no último 6 de janeiro, forçando a Câmara dos Representantes estadunidense a declará-lo em desacato, com a possibilidade – remota, mas existente – de que seja condenado a um ano de prisão.
Frente às eleições do final de 2022, nas quais Bolsonaro se lançará à reeleição, o Brasil se tornou uma das principais preocupações da extrema direita, que quer conservar um de seus mais importantes bastiões em nível mundial. Além disso, o interesse na América Latina aumentou com o avanço de uma nova ultradireita na região, com a guinada de Keiko Fujimori, no Peru, o surgimento de um libertarianismo de extrema direita na Argentina, com Javier Milei, e a candidatura de José Antonio Kast para as eleições presidenciais chilenas, deste mês de novembro.
Não é por acaso que o Vox, através da Fundação Disenso, lançou o Foro de Madrid, uma comunidade que chama de Iberosfera e propõe como alternativa de ultradireita aos progressistas Foro de São Paulo e Foro de Puebla. Daí o ativismo de Santiago Abascal e Hermann Tertsch, que visitaram o México e o Peru para estabelecer contatos que também atraíram políticos ligados ao PP, como o ex-mandatário colombiano Andrés Pastrana.
O caso latino-americano nos leva a falar em uma das mais poderosas redes globais que servem à extrema direita 2.0 para estabelecer relações, elaborar uma agenda comum e encontrar financiamento: o fundamentalismo cristão. Falamos, neste caso, de um verdadeiro lobby, comparável ao das armas, representado nos Estados Unidos pela Associação Nacional do Rifle e também com tentáculos na Europa.
O mundo integrista cristão foi criando foros de debate, fundações, think tanks e associações, no mínimo, desde fins dos anos 1990. Além disso, supera as fronteiras das diferentes igrejas existentes, englobando ou, ao menos, relacionando tanto católicos quanto ortodoxos e evangélicos.
Um dos mais conhecidos exemplos é o Congresso Mundial das Famílias (WCF), organização fundada nos Estados Unidos em 1997. O último congresso, há dois anos, foi realizado em Verona – quando Salvini era ministro do Interior -, ao passo que em 2012 foi realizado em Madrid. O WCF defende uma agenda pró-vida e pró-família tradicional e se opõe ao aborto e aos direitos do coletivo LGBT, tanto que o Southern Poverty Law Center o incluiu em sua lista de grupos de ódio antigay.
E não se trata apenas dos setores críticos a Bergoglio dentro da Igreja católica. Existe uma parte do mundo ortodoxo, especialmente próxima a Vladimir Putin, como o oligarca russo Konstantin Malofeev, promotor da fundação São Basílio, o Grande, que é parte integrante desta rede.
Estamos falando de um labirinto infinito de dezenas e dezenas de pequenas e grandes associações, às vezes ligadas diretamente com outras, às vezes, só indiretamente, como a espanhola HazteOír, fundada em 2001 por Ignacio Arsuaga, e muito próxima ao Vox, que em 2013 lançou seu lobby internacional CitizenGo.
Nessa, como em outras questões, o mundo ultraconservador russo e da Europa oriental esteve muito ativo desde o primeiro minuto. Por um lado, Putin se tornou uma referência para muitos ultradireitistas europeus, começando por Marine Le Pen e Matteo Salvini, que inclusive receberam ou, no mínimo, buscaram financiamento do Kremlin. Por outro, a existência de dois governos ultradireitistas em Varsóvia e Budapeste permitiu ter duas bases de onde atuar.
Para mencionar apenas duas das iniciativas mais recentes, em maio, inaugurou-se em Varsóvia a nova universidade dos ultradireitistas poloneses, o Colégio Intermarium, promovida pelo think tank católico Ordo Iuris. No ato da inauguração, participaram uma grande delegação húngara, outra estadunidense – com o já citado Matthew Tyrmand, o diretor do Instituto Acton, Alejandro Chafuen, e o escritor católico ultraconservador Rod Dreher – e o jovem meloniano Francesco Giubilei, presidente da Federação Tatarella e do think tank Nazione Futura, ligados a Irmãos da Itália.
Em fins de setembro, também aconteceu em Budapeste a Cúpula da Demografia, organizada pelo governo de Viktor Orbán, que reuniu o ex-vice-presidente norte-americano Mike Pence, os presidentes de diferentes países da Europa do leste, que olham com interesse para o modelo húngaro – o esloveno Janša, o checo Babiš, o sérvio Vučić, o sérvio-bósnio Dodik -, os franceses Éric Zemmour e Marion Maréchal, o salviniano Lorenzo Fontana e Jaime Mayor Oreja, presidente da Federação Europeia Antiaborto One of Us e ligado, atualmente, ao instituto fundado pela neta de Jean-Marie Le Pen, em Madrid.
O tema da demografia, que a ultradireita e o mundo cristão conservador relacionam com a imigração e as políticas favoráveis aos direitos civis, é justamente uma das estratégias que permite à extrema direita sair de suas fronteiras ideológicas e estabelecer relações com setores em si não tão radicais.
A extrema direita 2.0, há tempo, vem se rearmando em nível discursivo e ideológico. E para isso foi criando uma infinidade de associações, fundações, organizações, think tanks e revistas. O que apontei neste artigo é apenas a ponta do iceberg. Sob as ondas do oceano, sem que percebamos, há uma imensa rede, poderosa e bem financiada. Se não queremos que o mundo progressista acabe como o Titanic, ao descobrir a existência real desta rede, é preciso fazer duas coisas: pesquisar mais sobre como a nova extrema direita se movimenta em nível internacional e se rearmar melhor para frear seu avanço e vencê-los. O tempo urge. Recarreguemos as baterias.
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As redes globais da extrema direita 2.0 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU