Para o professor, não se trata de abandonar ou rasgar a Carta Magna de 88, mas sim de aprimorar ela e corrigir distorções que surgiram desde o próprio sistema
O sociólogo Roberto Dutra é direto ao apontar o que tem gerado as chamadas crises institucionais entre os poderes da República, quando Executivo, Legislativo e Judiciário extrapolam suas funções constitucionais e quando o que passa a valer é a disputa entre eles. “Não é apenas o ímpeto golpista e destruidor de Bolsonaro que explica a frequência e a intensidade dessas disputas. Há claramente um arranjo disfuncional entre os poderes e uma das causas desta disfuncionalidade é a própria Constituição de 1988 que não estabelece mecanismos para resolução efetiva de crises entre o Executivo e o Legislativo”, observa. Para ele, “no nosso presidencialismo, a relação entre estes dois poderes eleitos não encontra caminhos formais capazes de resolver impasses”. Isso, seguindo com seu raciocínio, permite o uso de medidas provisórias como forma de enquadrar o Legislativo pelo Executivo, enquanto, de tempos em tempos, o Legislativo se volta contra o Executivo com as ameaças de impeachment.
Por isso, Dutra constata que “as disputas indicam que a Constituição já não vincula a atuação dos poderes como deveria, fazendo surgir um mundo informal de arranjos entre eles, mais forte e importante que o mundo formal que a Constituição deveria garantir”. Assim, conclui: “a conjuntura atual indica a falência quase irreversível da ordem constitucional de 1988”. Mas é preciso cuidado. O professor não coloca tudo como terra arrasada ou que tenhamos que rasgar a Carta Magna de 88. “A reconstrução institucional que precisamos para disciplinar as relações e disputas entre os poderes exige obra simultânea de reconstrução constitucional. Não precisamos necessariamente de uma assembleia constituinte, mas, pelo menos, de um processo amplo e profundo de reforma do Estado e das relações entre os poderes”, indica.
Na entrevista, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Dutra também analisa outros vértices dessa crise institucional envolvendo o Judiciário. E ainda revela suas impressões sobre demais aspectos da conjuntura, no que chama de clara tentativa de Jair Bolsonaro e seus seguidores de tentarem promover um golpe, embora ainda sem sucesso. Aliás, tentativa que pode ser relacionada com o discurso do presidente na Assembleia Geral das Nações Unidas, completamente desconectado com a realidade brasileira. “Do ponto de vista político, foi um discurso de guerra cultural para sua própria base minoritária”, aponta Dutra. “Do ponto de vista moral, foi a maior vergonha que um presidente da República impôs ao país em toda nossa história. Seguramente, se estivessem vivos, os militares autocratas da ditadura sentiriam esta mesma vergonha que sentimos”, provoca.
Roberto Dutra (Foto: arquivo pessoal)
Roberto Dutra Torres Junior é doutor em Sociologia pela Humboldt Universität zu Berlin e mestre em Políticas Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro - UENF. É professor da UENF e ex-diretor do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas - Ipea. É autor de, entre outros, Funktionale Differenzierung, soziale Ungleichheit und Exklusion (Konstanz: UVK Verlag, 2013).
IHU – Vivemos tempos de disputas entre poderes constitucionais. Como e por que tem se dado essas disputas?
Roberto Dutra – Não é apenas o ímpeto golpista e destruidor de Bolsonaro que explica a frequência e a intensidade dessas disputas. Há claramente um arranjo disfuncional entre os poderes e uma das causas desta disfuncionalidade é a própria Constituição de 1988 que não estabelece mecanismos para resolução efetiva de crises entre o Executivo e o Legislativo. No nosso presidencialismo, a relação entre estes dois poderes eleitos não encontra caminhos formais capazes de resolver impasses. De um lado, o uso de medidas provisórias acaba sendo, na prática, um caminho extraconstitucional para o presidente influenciar o processo legislativo. De outro, o Legislativo pode ameaçar unilateralmente o presidente com o instrumento do impeachment.
Esse instrumento, como seu uso tem indicado, é uma falsa solução para as crises: seu caráter pretensamente duplo, enquanto um processo que se apresenta simultaneamente como político e jurídico, não consegue disfarçar que se trata de uma prática puramente política. O suposto caráter jurídico não engana ninguém e por isso não serve para compensar a falta de legitimidade do processo de deposição conduzido exclusivamente pelo parlamento.
Boa parte das tensões e disfuncionalidades envolvendo o Judiciário e os poderes políticos eleitos ocorrem por causa desta relação extraconstitucional entre estes poderes eleitos. O parlamentarismo proposto pelas oligarquias do poder e do dinheiro não pode resolver este problema. O parlamento não vai adquirir e legitimidade que lhe falta apenas pela elevação formal de seus poderes. O povo precisa ser envolvido no processo de resolução das crises.
Deveríamos mudar a Constituição, criar e normatizar instrumento político de resolução acelerada das crises, não abrindo mão do presidencialismo, mas introduzindo nele um mecanismo parlamentarista de solução de impasses entre o Executivo e o Congresso. Um exemplo concreto é a proposta do ex-ministro Roberto Mangabeira Unger [aqui] de flexibilizar o presidencialismo, tornando-o capaz de resolver suas crises sem violar a Constituição. Trata-se de permitir, por emenda constitucional, que o chefe do poder Executivo ou o chefe do poder Legislativo convoquem unilateralmente eleições gerais antecipadas. Como todo mundo perderia seus mandatos, o comportamento golpista como o de Eduardo Cunha contra Dilma Rousseff seria fortemente inibido. Seria introduzir um componente do parlamentarismo no presidencialismo sem atacar a grande virtude do presidencialismo que é permitir o acesso direto das maiorias desorganizadas, pelo voto, ao centro do poder estatal.
Adotar este mecanismo de eleições antecipadas fortaleceria esta virtude do presidencialismo, pois ampliaria o poder dos eleitores, que é o mais democrático de todos. Não haveria nenhum risco de fortalecer a ideia oligárquica de parlamentarismo em um país cindido entre o poder organizado de minorias e o poder desorganizado de maiorias. Haveria fortalecimento do presidente e diminuição da chantagem golpista do parlamento sobre o Executivo. Mas também fortaleceria o poder do parlamento, já que o presidente do Congresso também pode convocar eleições antecipadas para presidente da República e assim inibir eventuais estratégias golpistas do Executivo.
IHU – Ao longo da história do Brasil, sempre houve certa igualdade no protagonismo de Executivo e Legislativo. Mas, hoje, se vive uma ascensão do Judiciário. Como se deu essa ascensão? E que distorções ela acabou produzindo?
Roberto Dutra – Como disse acima, boa parte deste protagonismo do Judiciário se deve aos impasses e à crise de legitimidade dos poderes políticos eleitos. Com isso, o Poder Judiciário acaba desempenhando, muitas vezes, tarefas legislativas que evidentemente não lhe cabem. Mas esta não é a única razão.
Houve uma politização moralizante do judiciário promovida especialmente em torno da Operação Lava Jato que também é responsável por esta ascensão de atores do sistema jurídico na vida política. Trata-se de um processo informal e simultâneo de usurpação da opinião pública e corrupção do Direito (vazamentos ilegais, conluios entre juízes e procuradores).
Duas distorções principais foram produzidas com isso:
1) a corrupção política do Direito;
2) a corrupção midiática e moralizante da política democrática, tanto pela manipulação deliberada do processo de formação da opinião pública como pela usurpação do processo eleitoral como ficou claro nas ilegalidades e violações cometidas por Sérgio Moro para favorecer o candidato Jair Bolsonaro em 2018. Além disso, as violações cometidas pela lava jato afetaram também a economia e a soberania nacional.
IHU – Em que medida essas disputas entre poderes são inauguradas a partir da ascensão do Judiciário, numa espécie de ‘judiciarismo’, ou ‘judicialização’ da vida?
Roberto Dutra – Isso que você chama de ascensão do Judiciário não me parece um processo de expansão do sistema jurídico sobre as outras esferas da vida social, ou seja, um processo de ampliação do próprio Direito enquanto sistema funcional da sociedade com o fortalecimento de sua capacidade de assegurar a estabilidade de expectativas normativas congruentes de comportamento. Na verdade, é um processo no sentido oposto: o enfraquecimento do Direito por meio de sua politização informal.
IHU – A partir da realidade da conjuntura atual, quais os riscos que corremos quando Executivo, Legislativo e Judiciário entram em disputa?
Roberto Dutra – O problema não é a disputa em si, mas o caráter disfuncional que ela pode assumir. Neste caso, a disfuncionalidade é efetivamente o maior risco. As disputas indicam que a Constituição já não vincula a atuação dos poderes como deveria, fazendo surgir um mundo informal de arranjos entre eles, mais forte e importante que o mundo formal que a Constituição deveria garantir.
A conjuntura atual indica a falência quase irreversível da ordem constitucional de 1988. Não vejo isso nem como um risco, mas sim como uma realidade. A reconstrução institucional que precisamos para disciplinar as relações e disputas entre os poderes exige obra simultânea de reconstrução constitucional. Não precisamos necessariamente de uma assembleia constituinte, mas, pelo menos, de um processo amplo e profundo de reforma do Estado e das relações entre os poderes.
IHU – Jair Bolsonaro e a extrema-direita brasileira dizem agir dentro da Constituição, mas, a partir de suas ações, que leitura o senhor faz da forma como compreendem os papeis constitucionais dos três poderes?
Roberto Dutra – Evidentemente Bolsonaro e a extrema-direita desejam sepultar a Constituição com um golpe de Estado. Mas não tiveram competência pra isso. Na compreensão bolsonarista, não há divisão de poderes. É um plebiscitarismo tosco e sem nenhum filtro. Mas isto não significa que a própria Constituição não tenha problemas sobre a divisão e a relação entre os poderes. Como eu disse anteriormente, a disfuncionalidade entre os poderes não foi criada por Bolsonaro.
Para que os governos funcionassem, todos os presidentes anteriores a Bolsonaro tiveram que agir apesar da Constituição, especialmente com medidas provisórias. Não porque fossem autoritários como é o caso de Bolsonaro, mas sim porque a Constituição não garante relação construtiva entre os poderes executivo e legislativo, especialmente não garante mecanismos de solução de impasses entre eles. E, a meu ver, estes mecanismos não devem buscar a anulação dos elementos plebiscitários do presidencialismo, mas sim seu uso disciplinado e frequente como forma de envolver o povo na superação de crises entre o Executivo e o Legislativo.
IHU – No Brasil do presidencialismo de coalizão, vemos seguidamente o Executivo enquadrado por lógicas de parte do Legislativo, como o Centrão. Em que medida essa relação pode ser compreendida como uma interferência entre poderes?
Roberto Dutra – Os poderes sempre interferem um no outro. O problema é quanto esta intervenção não é disciplinada por normais constitucionais. As chantagens parlamentares sobre o Executivo decorrem da falta de implicação política do próprio parlamento nos governos e nas crises. Precisamos constitucionalizar efetivamente esta interferência, permitindo que os dois poderes políticos sejam formalmente envolvidos e afetados na solução de impasses. Precisamos equipar os dois lados do impasse com dispositivos constitucionais de dissolução e reconstituição dos dois poderes a partir do voto popular, e com isso desestimular ataques golpistas e incentivar a solução política dos impasses.
IHU – Até que ponto essa relação entre alas de uma certa elite política corrompem as regras constitucionais?
Roberto Dutra – A corrupção das regras constitucionais não decorre apenas dá má qualidade dos políticos. Precisamos recuperar aquele sentido profundo de revisão constitucional preconizado por Oliveira Vianna em relação a primeira constituição republicana de nosso país (a Constituição de 1891): o bom funcionamento de nossa vida política não pode depender da virtude excepcional de poucos políticos, mas deve ser ancorada nas qualidades do próprio arranjo constitucional e institucional de modo que a política cumpra sua função de produzir decisões coletivamente vinculantes mesmo contando com maioria de políticos medianos e de virtudes incertas.
IHU – Que leitura o senhor faz do discurso de Jair Bolsonaro na sede da Organização das Nações Unidas – ONU?
Roberto Dutra – Do ponto de vista político, foi um discurso de guerra cultural para sua própria base minoritária, com o objetivo de estancar uma sangria lenta, mas firme, de sua popularidade. Mostra fraqueza e falta de alternativa tática.
Do ponto de vista moral, foi a maior vergonha que um presidente da república impôs ao país em toda nossa história. Seguramente, se estivessem vivos, os militares autocratas da ditadura sentiriam esta mesma vergonha que sentimos.
IHU – Jair Bolsonaro e o bolsonarismo podem ser compreendidos como uma das faces do neoliberalismo? Como enfrentar esse neoliberalismo, inclusive num cenário pós-Bolsonaro?
Roberto Dutra – A ascensão de Bolsonaro se alimentou da crise do desenvolvimento econômico brasileiro produzida pela adesão aos dogmas neoliberais em quase todo o período inaugurado pela constituição de 1988. Mas a política econômica de Bolsonaro é a radicalização do próprio neoliberalismo. Como bem definiu Fernando Haddad, candidato derrotado em 2018 por Bolsonaro: trata-se de um “neoliberalismo desalmado”. O que Haddad, no entanto, não disse é que, naquele segundo turno, o povo brasileiro estava novamente sendo obrigado a escolher entre este neoliberalismo desalmado de Bolsonaro e o neoliberalismo humanizado que o próprio Haddad e o PT representam. Esta ditadura da falta de alternativas foi reforçada pelo PT, que durante a década de 2000, mesmo com todas as condições políticas e fiscais favoráveis, foi incapaz de apresentar uma alternativa de desenvolvimento econômico para o país e assim superar efetivamente os marcos neoliberais.
Para enfrentar o neoliberalismo precisamos de um projeto nacional de desenvolvimento capaz de enfrentar também a hegemonia moral e cultural que essa ideologia conseguiu. De um lado, precisamos crescer e enriquecer com o desenvolvimento de nossas forças produtivas, o aumento da produtividade do trabalho e a complexificação da economia. De outro, precisamos construir uma nova hegemonia moral e cultural capaz de recuperar a força da solidariedade social e do pertencimento coletivo sem as quais a política não consegue legitimar medidas redistributivas e a oferta universal de bens públicos.
O neoliberalismo, como muitos já disseram, não é apenas uma política econômica. É uma política totalizante que propõe que todas as esferas da vida social sejam comandadas pela racionalidade econômica e pelo ideal distópico do ser humano como mônada egoísta que desconhece qualquer forma de vínculo social que não seja pautado pelo autointeresse de cada um.
Superar o neoliberalismo requer combater a colonização econômica da política, do Direito, da educação e da cultura, da saúde etc. Ao colonizar a política e o Direito, o neoliberalismo destrói os anteparos que impedem a colonização econômica das demais esferas sociais. Portanto, a tarefa maior é recuperar o espaço da política junto com os valores da solidariedade e do pertencimento coletivo que lhe são inerentes.
IHU – Como o senhor tem visto o cenário para o Brasil de 2022? Ainda há espaço para uma terceira via?
Roberto Dutra – Apesar de faltar muito tempo para o processo eleitoral, acredito que algumas coisas podem ser afirmadas. Primeiro, Lula, sendo candidato, tem vaga garantida no segundo turno. As chances de vencer no primeiro turno são muito remotas. Ele parece ter atingido seu teto e tende a se desgastar no processo eleitoral.
Segundo, Bolsonaro, caso seja candidato a reeleição, corre risco de não ir ao segundo turno. Há sim espaço para uma terceira candidatura, assim como houve em 2014 com Marina Silva. Este terceiro pode ser um candidato da direita liberal, como quer a mídia tradicional. Mas me parece que Ciro Gomes, um candidato de centro-esquerda com um programa nacionaldesenvolvimentista é quem tem as melhores condições de ocupar este lugar. Ciro tem duas grandes vantagens: ter se descolado dos pré-candidatos da direita liberal nas pesquisas de intenção de voto e possuir uma mensagem forte que hoje conta com um trabalho de comunicação da melhor qualidade. Em 2018, mesmo sem esse trabalho de comunicação, Ciro conseguiu superar a direita liberal. Para 2022 as perspectivas são muito melhores.
IHU – O Nacional Desenvolvimentismo ainda pode ser o caminho para a unificação do Brasil? Como esse projeto tem abarcado novas problemáticas como a questão ambiental?
Roberto Dutra – A unificação do país só possível com nacionaldesenvolvimentismo. Somente a perspectiva concreta de um futuro nacional, o que somente um projeto nacional de desenvolvimento pode construir, tem força para se contrapor efetivamente ao processo de fragmentação nacional. A falta de futuro é uma ameaça real à unidade de qualquer nação. Para isso, no entanto, este projeto não pode ser o de recuperar o industrialismo fordista que caracterizou o nacionaldesenvolvimentismo do passado. Além de impossível, isto não é desejável, pois a vanguarda econômica atual é a economia do conhecimento e não o fordismo industrial.
O desafio de reindustrializar o país passa pela construção de uma economia do conhecimento associada a setores industriais novos, como a economia digital, e economia da saúde e o complexo industrial de defesa. E é exatamente o foco na economia do conhecimento que permite abarcar problemáticas como a questão ambiental e tratá-la não como obstáculo, mas como oportunidade para a reconstrução econômica do país.