A Campanha da Legalidade impediu a terceira tentativa de um golpe militar, entre 1945 e 1964. 60 anos depois, "muito tardiamente, há um esforço de algumas autoridades no âmbito judiciário de frear manifestações antidemocráticas", adverte o historiador
Em 7 de setembro de 1961, o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, conseguiu evitar o início de uma guerra civil e um golpe militar, garantindo a posse do então vice-presidente, João Goulart. À época, lembra o historiador André de Souza Pereira, a Campanha da Legalidade, "essa grande mobilização popular, foi o principal fator que ajudou a sensibilizar as instituições, em especial o Congresso. A possibilidade de uma guerra civil intimidava o Congresso a encontrar uma solução para a crise, afastando a possibilidade de um apoio ao golpe". Apesar do apoio popular ao governador e a Jango, pontua, "todos os manifestantes que estavam do lado da legalidade foram taxados de comunistas".
Hoje, 60 anos depois, constata, "esse pensamento simplista do anticomunismo e golpista" permanece, a tal ponto que mobilizou a eleição do atual presidente e tem sido assumido na retórica de Jair Bolsonaro. "Digamos que na atualidade o anticomunismo ganhou novos significados, novos códigos e muito mais poder de expressão por conta das redes sociais. O que é contraditório, pois com a informação e o conhecimento científico praticamente batendo na porta das casas das pessoas, elas ainda optam por criar uma realidade paralela que posteriormente moldará e ditará as regras do 'mundo real'. Digo isso porque o Brasil nunca esteve perto de ser comunista, nem mesmo socialista. E assistimos na atualidade às pessoas usando deste factoide para justificar suas escolhas", lamenta.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Pereira também avalia as consequências históricas das decisões institucionais tomadas nas últimas décadas. "Nós temos agora, muito tardiamente, um esforço de algumas autoridades no âmbito judiciário de frear manifestações antidemocráticas. Dado o apurado da hora em que passaram a reagir, causam uma estranheza na população, facilitando ainda mais os argumentos golpistas. Uma parcela da população, que não se vê representada por essas instituições, irá brigar por elas? É assustador se pensarmos no fator consequência", conclui.
André Pereira (Foto: Aqrquivo pessoal)
André de Souza Pereira é graduado em História pela Universidade de Passo Fundo - UPF. É professor da rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul, no Município de Marau, atuando no Instituto Estadual Santo Tomás de Aquino - Iesta.
IHU - O que foi a Legalidade e em que essa experiência pode nos inspirar em leituras da política nacional de nosso tempo?
André de Souza Pereira - A Campanha da Legalidade foi um grande movimento popular ocasionado pela tentativa de golpe contra a posse do então vice-presidente João Goulart, em agosto de 1961. Com a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 25 de agosto, Goulart, conforme a constituição de 1946, deveria assumir a presidência da República.
Aproveitando o fato de Goulart estar fora do país, em viagem à China, os ministros militares de Jânio Quadros, general Odílio Denys (Ministro da Guerra), Almirante Sylvio Heck (Ministro da Marinha) e o Brigadeiro Grum Moss (Ministro da Aeronáutica) tentaram impedir a posse de Goulart, provocando uma reação popular completamente inesperada.
Conforme explica Argelina Figueiredo (1993), os ministros esperavam obter apoio imediato do Congresso pela rejeição de Jango por parte dos setores conservadores, dando um golpe de baixo custo. Mas, não foi isso que aconteceu.
Da capital gaúcha, o então governador e cunhado de João Goulart, Leonel Brizola, mobilizou a população através da Cadeia Radiofônica da Legalidade. Brizola primeiro quis se certificar de que a renúncia de Quadros era voluntária ou se ele havia sido deposto. Com a confirmação da primeira alternativa, vieram as informações sobre o impedimento da posse de Jango.
Apelando à população diretamente do Palácio Piratini, Brizola clamava para que todos se juntassem em prol da posse de Goulart. Pelas ondas da Rádio Guaíba, encampada por Brizola e instalada no Palácio, a mensagem chegava em todo o país por ondas curtas, repercutindo na imprensa e nos demais setores da sociedade. Em poucos instantes, uma multidão se encontrava em frente ao Palácio Piratini e diversos setores da sociedade se mobilizavam em comitês pró-Legalidade para além da capital gaúcha.
Essa grande mobilização popular foi o principal fator que ajudou a sensibilizar as instituições, em especial o Congresso. A possibilidade de uma guerra civil – que não ocorreu, mais por desobediência de militares, como o general José Machado Lopes, comandante do III Exército, e dos soldados da base Aérea de Canoas, do que pela ordem dos ministros militares – intimidava o Congresso a encontrar uma solução para a crise, afastando a possibilidade de um apoio ao golpe.
Somente por conta dessa mobilização popular, liderada por Leonel Brizola, que João Goulart conseguiu tomar posse como presidente da República, em 7 de setembro de 1961. Mas não da forma como se desejava, pois precisou assumir por meio de uma emenda parlamentarista, frustrando a base de apoio da Campanha da Legalidade.
O nome Campanha da Legalidade é uma resposta aos termos da Constituição de 1946, que previa que em casos de vacância ou renúncia do presidente, o vice tomasse posse. A emenda parlamentarista por si só também foi questionada neste sentido, já que quando Quadros e Goulart foram eleitos e tomaram posse isso não constava na Constituição, sendo um “remendo”.
IHU - Qual sua análise quanto à crise política do Brasil de 1961?
André de Souza Pereira - Quanto à crise gerada através de uma tentativa de golpe militar, ela é colocada como a última das três que ocorreram no tempo da experiência democrática (1945-1964), como definem Jorge Ferreira e Lucília de Almeida Neves Delgado. O próprio Ferreira (2003) apresenta um importante panorama, destacando a Legalidade junto com o episódio do suicídio de Getúlio Vargas (1954) e a Novembrada (1955), chamado de “golpe preventivo”, liderado pelo Ministro da guerra Marechal Henrique Teixeira Lott em favor da posse de Juscelino Kubitschek de Oliveira. Como tentativa ela é a última, pois a seguinte se consolidou, resultando no golpe civil-militar de 1964.
Porém, temos outros aspectos para analisar. Nesse sentido, penso ser interessante o recorte que Rodrigo Patto Sá Motta (2000) traz em sua pesquisa. O período em questão é compreendido pelo autor como o “Segundo Grande Surto anticomunista”. Esse surto é enfrentado por Jânio Quadros e por João Goulart, até o golpe.
Quadros fundara junto com seu Ministro das Relações Exteriores, Afonso Arinos de Mello Franco, a Política Externa Independente - PEI. Tal política previa uma aproximação do Brasil com a União Soviética, com países da Europa Oriental, com o continente africano e com os vizinhos da América Latina. Essa política foi construída através de princípios como a autodeterminação dos povos e o não alinhamento ideológico a um dos lados da Guerra Fria (EUA X União Soviética). Tal tendência demonstrava independência política e econômica diante dos conflitos externos e o não alinhamento automático com os Estados Unidos ou qualquer outra nação.
Ocorre que, nesse projeto, Quadros perde sua principal base de apoio, que era a União Democrática Nacional - UDN e os setores mais conservadores, além de ganhar um inimigo em potencial: Carlos Lacerda, o governador da Guanabara.
Em meio a tantas oposições, Jânio Quadros responde com a renúncia. Essa renúncia, que durante muito tempo foi um mistério, atualmente é interpretada como uma tentativa de golpe do presidente demissionário, que esperava ser reconduzido pelas massas ao poder, governando com poderes supremos.
Vale destacar a lendária e aleatória condecoração oferecida por Jânio Quadros a Che Guevara, poucos dias antes da renúncia, despertando a ira dos setores conservadores.
IHU - Que associações e dissociações podemos fazer da crise brasileira de 1961 e do estado de crises que temos vivido?
André de Souza Pereira - Permita-me retroceder um pouco. Especificamente às eleições presidenciais de 1960.
Jânio Quadros elegeu-se presidente da República num momento em que se passava a desmoralizar o trato da política com a “coisa pública”. Ou seja, a desmoralização da política e das instituições, pautada por uma campanha contra “a bandalheira”. Isso estava presente inclusive em seu jingle de campanha, sendo simbolizado pela vassoura que viria a varrer com todos os males da república. Esse clima de denúncias, trazido na eleição, onde Jânio Quadros concorreu contra o candidato de Juscelino, Marechal Lott (PSD), foi mantido durante seus poucos meses de governo.
Maria Victória Benevides (1982), ao descrever a forma como Jânio Quadros desejava governar, coloca como fatores dominantes em suas ações “o personalismo autoritário de Jânio, o bonapartismo, o moralismo que desemboca no golpismo”. Para a autora, esse tipo de atuação contribuiu para o clima que desencadeou no golpe de 1964. Em outras palavras, atentam contra o estado democrático de direito.
Jânio Quadros era um candidato que despertava grande apelo popular e era conhecido por ser um candidato “bom de voto”. Eleito com a maior votação de um candidato à presidência até então, Quadros provou isso. Os setores que se juntaram a ele, como a UDN, entraram apenas na onda eleitoreira achando que depois poderiam regular suas ações. Isso não ocorreu e esses apoiadores foram retirando-se aos poucos. A renúncia de Quadros, hoje entendida como um desejo de golpe, foi percebida por um bom tempo como mais um dos atos voluntariosos e intempestivos tomados pelo presidente, afeito a impulsos.
Mas, para que é importante ressaltar isso?
Porque Quadros muitas vezes não era levado a sério ou ainda é visto apenas como a caricatura. Isso por conta de ações popularescas como comer sanduíche em público, não pentear o cabelo, enviar cartinhas como forma de governo e, por fim, ser considerado alcoólatra. Mas, independente de qualquer um desses estereótipos, ele ocupava o principal cargo executivo dentro do presidencialismo e dessa forma que deve ser medido e assim também serem medidas suas ações enquanto governante.
A caricatura e a piada só são engraçadas até o momento em que elas não começam a rir de nós. Muito semelhante, em doses bem menores, aos atos a que estamos assistindo diariamente. Não são engraçados. Não são inofensivos. Devem sim ser responsabilizados e ser medidos como atos de alguém que tem responsabilidade por eles. Por isso é fundamental que a população fique atenta a discursos e a períodos históricos que pregam a desmoralização da política. Por mais despolitizados que queiram parecer, ou desprendidos de interesse, eles são, sim, politizados.
Pensando no movimento da Legalidade e refletindo nos caminhos que as massas seguiram naquele momento, vemos uma grande diferença da atualidade quanto a sua politização e objetivos. Mesmo com tudo que acontece, que demonstra abertamente até as ideias de “falência de sistemas” e outras tantas questões já pensadas pela Sociologia, continua-se seguindo da mesma forma. Vemos tudo a “olho nu”. Utilizando do ditado popular, até “o rei está nu”. Assistimos a coisas inaceitáveis, mas ainda permanecemos.
IHU - Como podemos compreender o pensamento de ministros militares e órgãos conservadores daquela época que impediram a posse de João Goulart?
André de Souza Pereira - Havia no período, entre outros aspectos, uma crença por parte dos setores militares de que cada vez mais eles necessitavam se politizar e tomar posse de conhecimentos como geopolítica e economia. Isso se refletia na criação da Escola Superior de Guerra - ESG, ainda em 1948. Assim, cada vez mais esse setor passou a compreender que havia necessidade de se fazer uma intervenção mais orgânica na política.
Internamente, no âmbito do Clube Militar, esse setor estava dividido. Os debates eram acirrados acerca das posições a serem tomadas. José Roberto Martins Filho (2003) define essa divisão em dois blocos: os nacionalistas e os anticomunistas. Portanto, não havia um consenso, pois os posicionamentos ideológicos de ambos os blocos estavam divididos e o debate encontrava-se democratizado nessa divisão interna, o que se expressava nas eleições da diretoria do clube.
Mas, mais do que isso, o contexto histórico era a Guerra Fria, tendo sido a Revolução Cubana (1959) um verdadeiro sinal de alerta para a América Latina (e dos Estados Unidos para a América Latina). A teoria geopolítica gestada na ESG atrelava o destino do Brasil ao Ocidente, elegendo a União Soviética como principal ameaça. A segurança nacional do Brasil vinculava-se aos objetivos da Segurança Nacional dos Estados Unidos.
No âmbito ideológico, a doutrina da Segurança Nacional representava a luta contra o comunismo, sendo o anticomunismo o principal motor para justificar atos golpistas como a tentativa de 1961. O anticomunismo era a ideia que unia o pensamento dos ministros militares aos demais órgãos conservadores.
As pesquisas da professora Carla Simone Rodeghero melhor definem esse conceito de anticomunismo. Tal conceito não somente dá conta de ações voltadas a comunistas de fato. Desse modo, lideranças populares, estudantis, entre outros, passavam a ser compreendidas como comunistas. Para além de Luís Carlos Prestes, Jango e Brizola passavam a ser denunciados como comunistas. Durante a Campanha da Legalidade, até o general Machado Lopes, que se declarava um liberal e democrata, era acusado de comunista. Todos os manifestantes que estavam do lado da legalidade foram taxados de comunistas.
Era essa a grande ideia que motivava os ministros a publicamente se manifestarem contra Goulart e impedirem sua posse. A lista de declarações abertas dadas por eles durante o movimento é vasta. Em seus discursos, a principal justificativa para essa ação ocorria em nome da preservação dos princípios cristãos da sociedade brasileira, devido ao “perigo” que Goulart representaria. Goulart, além da aproximação com a esquerda, representava para tais setores uma espécie de volta do getulismo.
Por fim, os ministros militares, além dessa ideologia, pensavam que conseguiriam dar um golpe de baixo custo e que teriam o apoio do Congresso. Porém, diante da grande mobilização popular e da divisão militar, que foi ocasionada após o apoio do general Machado Lopes e do III Exército à posse de Goulart, essas expectativas foram por água abaixo.
A solução parlamentarista, muito criticada por Brizola e pelos populares que estiveram mobilizados, acabou servindo também como uma “saída honrosa” para os ministros. E, pela terceira vez seguida, neste tempo da experiência democrática (1945-1964), um golpe militar é impedido. Infelizmente isso não foi possível em 1964.
IHU - O que ainda reside desse pensamento no Brasil de hoje, especialmente entre militares?
André de Souza Pereira - Esse pensamento simplista do anticomunismo e golpista reside bastante. Digamos que na atualidade o anticomunismo ganhou novos significados, novos códigos e muito mais poder de expressão por conta das redes sociais. O que é contraditório, pois com a informação e o conhecimento científico praticamente batendo na porta das casas das pessoas, elas ainda optam por criar uma realidade paralela que posteriormente moldará e ditará as regras do “mundo real”. Digo isso porque o Brasil nunca esteve perto de ser comunista, nem mesmo socialista. E assistimos na atualidade às pessoas usando deste factoide para justificar suas escolhas.
Um outro fator determinante está no fato deste país ter o hábito de não acertar as contas com o seu passado. Neste caso específico, me remeto à ditadura civil-militar implantada no Brasil de 1964 a 1985.
Não poderia esperar que um processo de abertura, como se dizia, “lenta, gradual e segura”, coordenado pelas mãos daqueles que mantiveram a ditadura por 21 anos, tivesse avanços nesta parte. A anistia também os absolveu.
Mas acontece que isso se tornou algo tão banal e deixado de lado, que algo tão lento, gradual e nada seguro passou a ser despertado. Enaltecer torturadores escondidos atrás do direito de liberdade de expressão, por exemplo. Agora algumas autoridades estão acordando para isso e tentando concertar o erro. Tentando “educar” essas pessoas pelas penalidades da lei. Mas quantas vezes isso foi acontecendo sem punição alguma? Agora esses pensamentos estão muito orgânicos numa parte da sociedade.
IHU - E, no meio dessa crise desencadeada com a renúncia de Jânio Quadros, surge Leonel Brizola como sua resistência. Como descreve essa figura e seu papel para adiar a instalação de um regime ditatorial no Brasil?
André de Souza Pereira - A coragem e a determinação de Brizola foram fundamentais. Cito ainda a rapidez, neste caso. Elenco a coragem por conta de ter pisado num terreno tão incerto como foi este.
Vejamos. Brizola estava ao vivo ecoando para a população que o Palácio Piratini seria bombardeado. O III Exército, do general Machado Lopes, até aquele momento estava contra a legalidade e havia recebido ordens para o bombardeio do Palácio. Mesmo assim, ele conclamou a população, que foi em peso para a frente do Palácio, na intenção de resistir. E se Lopes não tivesse cometido a indisciplina de desobedecer seus superiores? Claro, não nos cabem suposições.
O fato é que Machado Lopes, mesmo tendo todas as ressalvas com Brizola, apoiou a Legalidade após tão absurda ordem de seu superior general Odilio Denys. E com as discussões sobre o parlamentarismo, Brizola contra e ele a favor, ambos se dissociaram novamente.
Mas a figura de Brizola como liderança foi imprescindível. Realmente, o golpe foi adiado em três anos. E em 1964 eles estavam muito mais preparados para reações como essa, inclusive com apoio externo dos EUA, como mostra o brilhante trabalho de Carlos Fico sobre a Operação Brother Sam.
Brizola sai da Legalidade projetado como um político de relevância nacional para além do âmbito partidário. Exercerá essa nova força durante esse período até o exílio. Durante vários momentos será uma oposição interna e aberta a concessões de Goulart às classes dominantes.
IHU - Como a memória de Brizola é ressignificada no cenário político de hoje? Aliás, quem seria capaz de instaurar uma resistência a um possível golpe? Governadores? Ou outras instituições?
André de Souza Pereira - Acho que esse lugar está vago. Da forma como ocorreu na legalidade, como uma liderança quase natural, não há. Falta ainda uma legitimidade e confiança da população para emprestar essa liderança a alguém. Se, por um lado, pode haver carisma, do outro, grita o moralismo e uma série de fatores ditados pelas receitas da ciência política e do próprio realismo político.
Como salientei anteriormente, nós temos agora, muito tardiamente, um esforço de algumas autoridades no âmbito judiciário de frear manifestações antidemocráticas. Dado o apurado da hora em que passaram a reagir, causam uma estranheza na população, facilitando ainda mais os argumentos golpistas. Uma parcela da população, que não se vê representada por essas instituições, irá brigar por elas? É assustador se pensarmos no fator consequência.
Já sobre a memória de Leonel Brizola em específico, igualmente olho de forma pessimista. À luz da História, para nós que debatemos, pesquisamos, estudamos, ele está bastante presente. Mas se pensar na memória dele no imaginário coletivo, já temos um problema. Claro, no Rio Grande do Sul ainda temos pessoas que estudaram nas brizoletas e comentam sobre elas. E no resto do país?
Além deste país ter memória curta, estamos falando de um personagem que nos últimos anos de vida teve que brigar para ser levado a sério, diante de um sistema que buscava desmoralizá-lo, taxá-lo como louco. Em especial após as eleições de 1989. Setores e atores dentro da própria esquerda trabalharam para seu esquecimento naqueles anos derradeiros.
Pensando em projeto, em afinidade do que o velho PTB, Vargas, Jango e o próprio Brizola defendiam num denominador comum, também temos um trabalho para o esquecimento. Todos os caminhos seguidos pelos governos na redemocratização passaram longe da gênese dessas ideias trabalhistas, nacional-desenvolvimentistas.
Mas isso não é um problema que ocorre só com Brizola. Outros sujeitos do seu tempo, como Arraes e o próprio Prestes, têm esse silenciamento. Fora do âmbito dos partidos que disputam seus legados e do ambiente acadêmico, esses nomes e seus projetos acabam abafados. Esses tempos, os quais Hobsbawm não alcançou para dar uma denominação precisa e certeira, são demasiadamente imediatistas, num curso de história irrefreável.
Essa atual polarização, que apenas retroalimenta seus protagonistas, é um reflexo disso. De, infelizmente, um país sem projeto de futuro. Como se não houvesse vida inteligente além disso. Mesmo sendo uma polarização incomparável nas ideias mínimas de cidadania ao pensar o paralelo de civilização e barbárie. Ela existe apenas no sentido político-eleitoral, porque ao pensar em direitos civis, individuais, cidadania, não dá para ser irresponsável em comparar. Darcy Ribeiro tem cada vez mais razão na sua célebre citação sobre a crise educacional brasileira.
IHU - Em suas pesquisas, o senhor trabalhou com o jornal O Nacional, de Passo Fundo. O que mais o impressionou sobre a narrativa acerca da Legalidade nesse periódico?
André de Souza Pereira - Os jornais O Nacional e Diário da Manhã [1] são os dois periódicos mais antigos de Passo Fundo ainda em circulação. Ambos pertenciam a pessoas diretamente ligadas à política partidária local, sendo muitas vezes veículos que agitavam as ações dos atores políticos.
Neste cenário, se encontravam em ligação com as correntes trabalhistas, por vezes em oposição, outra na situação. À frente do Executivo Municipal encontrava-se o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) de Getúlio, Jango, Pasqualini, Brizola. Desde o final do Estado Novo até 1963, o PTB esteve no Executivo Municipal de Passo Fundo.
Ocorre que esses dois jornais possuíam posições antagônicas. A historiografia local sempre ressalta essa rivalidade. O trabalho que melhor explica tal rivalidade é o de Sandra Mara Benvegnú (2006). Então, pesquisei a Campanha da Legalidade nesses dois periódicos. Eu esperava, ingenuamente, encontrar posições antagônicas entre ambos nesse movimento.
O Nacional pertencia ao jornalista e ex-deputado Múcio de Castro, que havia feito parte das fileiras do PTB, mas que em 1961 encontrava-se no MTR (Movimento Trabalhista Renovador) de Fernando Ferrari, migrando junto com um grupo de políticos locais que foram expulsos do PTB com a anuência direta de Brizola. Já o Diário da Manhã pertencia ao jornalista e dirigente do PSD (Partido Social Democrático) Túlio Fontoura, sendo, neste período da cisão trabalhista, amigo pessoal de dirigentes do PTB, como César Santos. Sendo assim, PTB e MTR eram rivais.
Eu esperava encontrar no mínimo alguma omissão ou silenciamento por parte de algum deles. Pelo contrário! Os dois periódicos se expressaram abertamente a favor da Legalidade. Desde colunas de opinião e editoriais a reportagens que enalteciam o movimento e as figuras de Jango e Brizola. Da mesma forma que diariamente denunciavam os três ministros militares.
Ao acessarmos os dois periódicos, na atualidade conseguimos ter em mãos informações valiosas a nível local sobre o movimento. Setores da sociedade civil publicavam notas favoráveis. Houve uma mobilização significativa de sindicatos e estudantes. A população fez da Câmara de Vereadores um veículo de informações, pois se direcionava até lá para saber os próximos passos, se mobilizar. Destaco, em especial, uma grande mobilização de mulheres na cidade, formando comitês femininos e liderando o movimento que foi dividido em bairros.
O fato de a Campanha da Legalidade ter sido um movimento que surge no Rio Grande do Sul é um dos grandes fatores para explicar a adesão quase automática desses jornais ao movimento e da população sul-rio-grandense no geral. A Campanha passava a ser interpretada como um movimento dos gaúchos, sendo a justificativa desta união.
Centros de Tradições Gaúchas - CTGs também afiançavam o movimento. Uma série de apelos regionalistas são encontrados no periódico para endossar o apoio à Legalidade.
IHU - Curiosamente, essa mesma Passo Fundo hoje é uma das regiões do estado em que o presidente Jair Bolsonaro tem amplo apoio (inclusive com uma estátua sua em tamanho original). Como compreender essa aparente contradição?
André de Souza Pereira - Sim. Numa das minhas pesquisas, eu começava com uma pergunta semelhante. Como uma cidade que apoiou a Campanha da Legalidade, dali a três anos seria escolhida como a capital estratégica do estado na fuga do governador?
Em 1964, quando ocorreu o golpe, o governador Ildo Meneghetti (PSD), um dos governadores que apoiaram o golpe, transferiu a sede do governo para Passo Fundo. Murilo Zardo tem um ótimo trabalho sobre esse episódio. Isso ocorreu pelo temor de Meneghetti de que se repetisse uma segunda Campanha da Legalidade em Passo Fundo. Brizola, entre outros, tinha um plano para isso. Mas Jango optou por não resistir, tendo informações seguras de que apenas traria derramamento de sangue.
É curioso que, falando da cidade como palco, há pouquíssimas linhas: descrevemos uma cidade mobilizada pela legalidade e que vinha de uma tradição de quase 20 anos de administrações vinculadas ao trabalhismo.
[1] Ampliamos esta pesquisa em 2019, diversificando as fontes consultadas. Além de O Nacional, acrescentamos o jornal local Diário da Manhã, que era rival direto do primeiro. Ambos estavam ligados a figuras políticas locais. A pesquisa encontra-se publicada em: PEREIRA, Andre de Souza. Passo Fundo na Campanha da Legalidade: A mobilização popular através da imprensa. In: Alex Antônio Vanin; Djiovan Vinícius Carvalho. (Org.). Passo Fundo: Estudos Históricos. 1ed.Passo Fundo/RS: Acervus, 2019, v. 1, p. 303-330. Disponível em e-book aqui.