06 Setembro 2021
Uma luta pelo cumprimento da Constituição Brasileira. Dessa forma pode ser resumida em somente uma frase o que foi a Campanha da Legalidade, realizada em 1961 e que completa 60 anos neste ano. Mas nenhum acontecimento político, seja ele no Brasil ou em qualquer lugar do mundo, pode ser resumido à uma frase.
A reportagem é de André Cardoso, estagiário e aluno do curso de Jornalismo da Unisinos.
Muito mais que um movimento em busca da posse do vice-presidente João Goulart, a Campanha da Legalidade foi uma mobilização popular inédita que impediu um golpe militar no país. “Foi a única vez, no Brasil, e umas das poucas no mundo, em que um movimento civil conseguiu impedir o golpe militar que tinha a adesão dos três Ministros Militares e 70% da força militar do país”, afirma o jornalista Paulo Markun em entrevista concedida à edição da Revista IHU On-line n° 107, dedicada à Leonel Brizola.
O cenário era desfavorável. Jânio Quadros, presidente do Brasil, havia renunciado e seu vice, João Goulart (Jango), estava em uma viagem diplomática à União Soviética e depois à China. Para garantir a posse de Jango, entra em cena o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que mobiliza a população e a Brigada Militar. “Brizola ainda é a grande figura brasileira da resistência da segunda metade do século XX. O governador que desafia o poder militar sabendo que o golpe seria apenas adiado e mesmo assim vai em frente. Não há outra figura semelhante hoje, mesmo porque as circunstâncias são outras”, diz Moisés Mendes, jornalista entrevistado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Muito mais que uma grande figura, Brizola realizou o impensável: derrotar um golpe militar. “Ele foi a única liderança civil na história contemporânea brasileira a resistir a um golpe militar, dividir as Forças Armadas e derrotar os golpistas. Ele convocou a população para a resistência e, inclusive, distribuiu armas ao povo. A causa era justa e legítima: defender o regime democrático”, pontua o professor Jorge Ferreira, da Universidade Federal Fluminense – UFF, em entrevista concedida por e-mail ao IHU.
Mas nem todos veem a atuação política de Brizola nesse momento anterior ao golpe de 1964 como um exemplo a ser seguido. Para o cientista social José Trajano, houve um erro estratégico do político gaúcho. “Radicalização no momento imediatamente anterior ao golpe de 1964. Naquele momento a sua sagacidade política falhou, ele não se deu conta de que uma das possibilidades daquele projeto, do qual ele fazia parte, era a de nos levar para o abismo, para onde acabamos indo.”
Mesmo com erros e acertos ao longo de sua carreira, Brizola ainda ocupa o imaginário brasileiro e, principalmente, gaúcho. Também em entrevista à Revista IHU On-Line, o historiador Gunter Axt disse que “Brizola foi uma síntese da política brasileira no século XX, uma síntese das aspirações, dos limites e dos medos dessa política. Acho que Brizola, e isso é uma visão muito pessoal minha, era uma espécie de celebridade pop.”
Muito mais que um mobilizador popular, um populista, como muitos chamam Brizola, o então governador do RS tinha uma capacidade oratória invejável, segundo Markun. “Ele era muito experiente, fazia desde que tinha sido eleito Prefeito de Porto Alegre e depois como Governador, programas de rádio toda a semana em que ele, durante mais de uma hora ou às vezes duas horas seguidas, ficava contando o que estava acontecendo, fazendo uma pregação radiofônica.”
Essa oratória serviu para aumentar ainda mais a sua voz durante o movimento da Legalidade. O uso do rádio e do jornal – da imprensa – foi fundamental naquele momento. Flávio Tavares, na época integrante da equipe do Jornal Última Hora, comenta, em entrevista ao IHU, quais foram os primeiros passos da Campanha. “Brizola sugere, então, que a Última Hora de Porto Alegre faça uma reedição especial, lançando a campanha pela posse de João Goulart... E num domingo nós lançamos uma edição extra da Última Hora, cuja manchete era mais ou menos a seguinte ‘Rio Grande diz não ao Golpe: Jango na Presidência’, e foi a primeira e única vez na história talvez que uma edição de jornal sai protegida pela Brigada Militar, pela polícia, porque nós achávamos que o Exército ia impedir a circulação do jornal.”
Como forma de acordo entre as duas forças que travavam as batalhas da Legalidade, Jango aceitou o parlamentarismo como forma de governar e poder assumir o cargo de presidente do país. Para Flávio Tavares, isso, na época, foi um erro. “Naquela época nós ficamos furiosos com o Jango. A tal ponto que rasgamos, (eu e o secretário de imprensa do Brizola) na frente dos microfones da rádio da legalidade, um manifesto do Jango, que era a aceitação prática do parlamentarismo”, diz.
Até porque a expectativa da Campanha da Legalidade não era o parlamentarismo aceito por Jango, mas sim “Marchar sobre Brasília”, como dizia Brizola na época. O aceite, em partes, também veio por conta da diferença de ideologia entre os cunhados Brizola e Jango: enquanto o primeiro era um “revolucionário”, o segundo era, para Tavares, um conservador reformista.
Mas, analisando o contexto político da época com benefício da retrospectiva, o jornalista entendeu que a decisão de Jango foi a correta para o momento. “Vendo hoje, o parlamentarismo, naquele momento, foi uma boa solução. Só que era um parlamentarismo capenga, mas até que deu certo.”
Foi acertada, também, porque, embora grande, a Campanha da Legalidade e aquele pensamento não era maioria no país. “Não tínhamos maioria de pensamento, o país era muito atrasado. Se a Reforma Agrária fosse feita em 1964 teria impedido a concentração de marginais nas cidades, que hoje estão dedicados ao crime e ao banditismo, pois são frutos da exclusão rural. Mas não tínhamos maioria, tínhamos menos da metade dos votos. Nesse aspecto, acho que o Jango, na sua capacidade de negociar (que era muito maior que sua capacidade de decidir), tinha razão naquele momento”, finaliza Tavares.
É inegável a importância de todo movimento da Legalidade e do seu papel no imaginário popular dos gaúchos. Mas o que realmente ficou de legado daquele levante popular? Para José Trajano, o episódio contribuiu muito pouco para a consolidação na democracia no Brasil. “Afinal, menos de três anos depois o Brasil foi cenário de um golpe que rasgou a Constituição e lançou o país num regime brutal de autoritarismo”. No entanto, o cientista político afirma que “sua lembrança, porém, deve ser cultivada, já que foi um momento em que a pusilanimidade das elites da época, a prepotência militar e o desprezo pela ordem legal foram confrontadas corajosamente. Não temos, infelizmente, muitos episódios semelhantes em nossa história republicana.”
Já Jorge Ferreira acha curioso “que a sociedade brasileira, tão ciosa da democracia e da legalidade em agosto/setembro de 1961, tenha assistido, praticamente de braços cruzados, à marcha de recrutas do general Mourão em março de 1964”.
Mas muito mais que o legado do movimento, o episódio foi importante para marcar a carreira de Leonel Brizola e alçar seu nome para o front da política brasileira até sua morte, em 2004. “Eu vejo muita gente dizendo: ‘Ahhh, se o Brizola estivesse vivo’ Eu acredito que neste momento da vida brasileira, tão fraca de atitudes, de compromissos com a palavra, a influência do Brizola é a sua atitude em vida. É o que ele fez pela profissão de político. Ele era um político profissional, como hoje têm tantos por aí. Mas ele foi um dos poucos que, de fato, dignificaram os cargos recebidos da população”, pontua o escritor e cineasta Tabajara Ruas.
O IHU seguiu as celebrações dos 60 anos da Campanha da Legalidade com o evento virtual O contexto da Legalidade e seus legados para a democracia brasileira, com a participação do historiador Jorge Ferreira. O evento foi transmitido diretamente na página eletrônica do IHU, no Canal do IHU no YouTube, IHU Comunica, e nas redes sociais, na última quinta-feira, 02-09-2021, às 17h30.
Na palestra, Ferreira destacou inicialmente que embora tivesse uma imagem de louco e de que não tinha rumo, Jânio Quadros fazia um governo dentro dos padrões conservadores, mas cometeu um grande pecado. "O grande pecado de Jânio foi tentar dar um golpe de Estado. Foi desacreditar o sistema eleitoral. Foi desmoralizar a política partidária no Brasil e jogar o país à beira de uma guerra civil."
O historiador ainda tentou desmistificar certos estereótipos relacionados ao Exército Brasileiro, ao dizer que "dentro do Exército há diversas divisões. Eram plurais. Nem todos eram golpistas. Havia toda uma esquerda militar que foi expurgada do Exército depois do golpe de 64". Essa divisão foi vista no episódio da Legalidade, quando o 3° Exército, formado pelos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, se aliou à Brizola e defendeu o cumprimento da Constituição Brasileira.
Para Ferreira, a Campanha da Legalidade é um "momento que permite o historiador conhecer a sociedade brasileira daquela época com maior profundidade do que nos períodos de normalidade''. Ainda assim, o episódio carece de maiores estudos, que, em sua maioria, são feitos por poucos jornalistas, pessoas que participaram ativamente do movimento e historiadores gaúchos. "O evento, Campanha da Legalidade, é um tema historiográfico da sociedade brasileira. Da história política da sociedade brasileira. Esse evento não pertence a nenhum partido político", finaliza.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Campanha da Legalidade: 60 anos de uma luta pelo cumprimento da Constituição Brasileira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU