19 Dezembro 2006
O jornalista e escritor Flávio Tavares concedeu uma entrevista exclusiva, por telefone, à IHU On-Line. Durante a conversa, ele relatou sua convivência com o ex-presidente João Goulart, a situação política quando Jango foi deposto e suas opiniões sobre o governo quando esteve junto à Campanha da Legalidade.
Tavares é autor de O dia em que Getúlio matou Allende (Editora Record / 2004), livro que conta as profundezas do que viveu como jornalista político durante as décadas de 1950 e 1960.
Confira, também, a entrevista com a historiadora, Marieta de Moraes Ferreira, sobre o personagem político de Jango, e a entrevista com o economista Theotonio dos Santos, que fala sobre seu artigo “O Brasil de João Goulart – um projeto de nação”.
Confira a entrevista de Flávio Tavares.
IHU On-Line - Como foi acompanhar ativamente a Campanha da Legalidade? A forma como Jango tomou posse decepcionou o movimento?
Flávio Tavares – Decepcionou parcialmente. Naquele momento, nos decepcionou porque acreditávamos na mobilização que movimentou o Rio Grande inteiro e, por si, mobilizou o resto do país. Com isso, nós abortamos o Golpe de Estado que foi deflagrado em Brasília e no Rio de Janeiro pelos três ministros militares. Por isso, nós já queríamos ir além, queríamos “Marchar sobre Brasília”, como dizia o Brizola na época, porque naquele momento houve de fato uma rebelião popular como nunca houve na história brasileira. Foram sete dias radiosos; o Rio Grande do Sul inteiro unido, até o pessoal da direita, que tinha restrições ao Jango, apoiou. Então, nesse aspecto, nos decepcionou na época o fato de Jango aceitar o corte de seus poderes e aceitar o regime parlamentarista. Hoje, anos depois, me dei conta de que quem tinha razão, naquele momento, era o Jango. Eu até explico isso no meu livro O dia em que Getúlio matou Allende.
IHU On-Line - Em seu livro “O dia em que Getúlio matou Allende”, o senhor revê conceitos que tinha sobre Jango, de quem foi amigo durante o exílio e criticava quando jornalista. A que conclusão chegou sobre Jango?
Flávio Tavares – Exatamente. Eu conheci o Jango quando ele era Secretário do Interior de Justiça no Governo Ernesto Dornelles e eu era dirigente estudantil. Naquela época, o Jango, que sempre foi um homem muito afável, muito educado, nos pareceu muito conciliador e muito tímido. Assumiu o governo e, para nós, essa conciliação e timidez era um detalhe negativo, porque nós estávamos acostumados com o Brizola, que era um revolucionário. E muito tempo depois do Golpe de Estado eu me dei conta de que o Jango é quem tinha razão. Não tínhamos maioria de pensamento, o país era muito atrasado. Se a Reforma Agrária fosse feita em 1964 teria impedido a concentração de marginais nas cidades, que hoje estão dedicados ao crime e ao banditismo, pois são frutos da exclusão rural. Mas não tínhamos maioria, tínhamos menos da metade dos votos. Nesse aspecto, acho que o Jango, na sua capacidade de negociar (que era muito maior que sua capacidade de decidir), tinha razão naquele momento.
IHU On-Line – E como o senhor vê essas propostas de reforma que Jango gostaria de ter realizado, mas não pôde, e que na política adotada pós-ditadura foram retomadas?
Flávio Tavares – Eu vejo como isso tudo significa que o Golpe de Estado foi uma imposição não só errônea, mas estúpida. Uma imposição de regresso ao passado, porque o Jango foi derrubado pelas suas virtudes e não pelos seus defeitos. O governo de Jango, como todos os governos da América Latina, estava cheio de defeitos, tinha até corrupção; não como a de hoje, no governo Lula, não como no governo de FHC, nem como no governo de Sarney ou como nos governos militares, mas já havia quem botava o “troco” no bolso. Mas o Jango foi derrubado porque o plano de alfabetização do Paulo Freire, que depois foi imitado na Europa e até nos EUA, atemorizou a direita brasileira, que era muito mais atrasada do que é hoje. Ela teve medo desse plano que ia incorporar 20 milhões de eleitores analfabetos naquela época, e achavam, então, que a esquerda ia ganhar a eleição e “comunizar” o país.
IHU On-Line – Como o senhor vê a ligação de Jango com a esquerda brasileira?
Flávio Tavares – Jango não era comunista, muito pelo contrário. Ele era um conservador reformista. Era um homem muito rico. Ele admirava a URSS e a justiça social, mas não era um comunista. Então, a história deu razão às teses de João Goulart e demonstrou que o Golpe de Estado foi algo urdido de fora, preparado nos EUA em função da posição independente da política externa brasileira. Nessa época, os EUA já começavam a asfixiar Cuba e queriam o apoio brasileiro. Mas enquanto o Brasil dissesse não, eles não podiam atacar Cuba. Houve uma lavagem cerebral do exército e do empresariado brasileiro. Era o momento da Guerra Fria, da guerra entre comunismo e capitalismo e para impedir que algumas coisas avançassem, dizia-se que era comunista. A história deu razões às Reformas de Base e mostrou que o golpe foi feito nos EUA e que os militares e empresários foram apenas fantoches dos interesses das multinacionais norte-americanas.
IHU On-Line - Como foi a sua convivência com Jango durante o exílio?
Flávio Tavares – Foi muito íntima, ainda que por poucos anos, porque eu me exilei no México e ele se exilou no Uruguai. Mas em 1974 nós nos encontramos em Buenos Aires, pois os peronistas tinham ganhado a eleição e lá era a “terra da liberdade”. Então, lá eu reencontrei o Jango e aí houve a intimidade do dia-a-dia. Nós morávamos perto e trabalhávamos na mesma rua. Nossa convivência foi tão íntima que um dia ele me telefonou de Punta del Este, no Uruguai, pois tinha lido num jornal argentino que a polícia tinha descoberto um grupo que queria seqüestrar o filho dele. Jango acreditava que era uma intenção ligada à política e eu disse: “não presidente, isso é um grupo de marginais que queria realizar o seqüestro por dinheiro”. Só então ele se aquietou. Mesmo assim ele ficou numa situação muito insegura, pois em 1976 houve o Golpe Militar na Argentina e começaram a acontecer seqüestros de pessoas estrangeiras que viviam em Buenos Aires. Foram mortos dois amigos uruguaios de Jango e ele ficou muito atemorizado. Foi para Paris, para tratar seu problema no coração. Quando voltou, passou em Montevidéu para resolver negócios. No dia 5 de dezembro de 1976 ele sai de Montevidéu pela estrada, atravessa de canoa a fronteira entre o Uruguai e a Argentina e passa por Passo de los Libres, em frente a Uruguaiana. Jango olhou a cidade de longe e disse à esposa: “Qualquer dia eu saio correndo e atravesso essa ponte e ninguém vai se dar conta que sou eu”. No que ela retrucou: “Com essa perna manca ninguém vai notar que és tu”. Era um dia muito quente e Jango chega a sua estância. À noite, ele inspeciona o gado e durante a madrugada, teve um infarte fulminante e morreu.
IHU On-Line - O personagem Jango é muito criticado até hoje, sendo apontado como o responsável pelos militares instituírem a ditadura. O senhor viveu uma tentativa de golpe antes de Jango tomar posse. Como vê essa imagem de Jango?
Flávio Tavares – Essa imagem que se faz do Jango é totalmente injusta, porque as pessoas não levam em conta um detalhe: quando ele assumiu a Presidência da República, o país estava passando por uma crise brutal derivada da política econômica de Jânio Quadros. Jango assumiu numa situação muito difícil, com um regime novo (parlamentarismo) que não servia para um país que tem um Congresso como o nosso. Ele conseguiu dar estabilidade ao Brasil, mas desde o início teve que enfrentar uma oposição militar terrível. Ele não fez o governo que nós queríamos. Jango estava muito mais próximo do partido comunista pela situação conciliadora e nós, da esquerda não comunista, não queríamos isso, queríamos fazer a revolução logo.
IHU On-Line - Além de ser tão próximo a Jango, o senhor era próximo de Brizola. A relação entre eles era conturbada, apesar de o movimento Legalista ter favorecido a posse de Jango. Como o senhor avalia a relação dos dois?
Flávio Tavares – Fui mais próximo de Brizola do que de Jango. A relação entre eles era muito conturbada, ainda que fosse uma relação muito forte. Eles eram amigos desde 1947, quando foram deputados estaduais, e eram cunhados. Mas a relação era conturbada por várias razões: dizia-se que por rivalidade, mas o certo é que seus estilos eram diferentes. Jango era um negociador, um conservador, e Brizola era um sujeito de uma franqueza enorme, a tal ponto que fez inimigos por todos os lados. Eram dois estilos diferentes de fazer política, e isso explica o fato de ficarem 17 anos sem se falar. Só três meses antes de o Jango morrer é que se reencontraram e se reconciliaram, pois a irmã de Jango (mulher de Brizola) adoeceu e ele foi visitá-la.
IHU On-Line - Essa relação pode ter contribuído com os movimentos contra Jango e que motivaram a segunda tentativa do golpe militar?
Flávio Tavares – Acho que essa relação contribuiu para o golpe porque se tivesse havido uma unidade nas forças progressistas e de esquerda, o golpe não teria ocorrido.
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"Jango era um conservador reformista". Entrevista especial com Flavio Tavares - Instituto Humanitas Unisinos - IHU