19 Agosto 2014
Em 1972, em meio aos festejos do Sesquicentenário da Independência e do otimismo propagado pela ditadura, uma carta de João Goulart, presidente deposto pelos militares em 1964, foi apreendida pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) e nunca foi publicada. O documento inédito fala sobre as dificuldades que o governo Jango teve, tratados como “improvisados obstáculos”, faz uma seleção otimista de acontecimentos do período e indiretamente critica o regime da época.
A reportagem é de Raphael Kapa, publicada pelo jornal O Globo, 17-08-2014.
“Exilado de minha Pátria e acolhido generosamente pela Nação Uruguaia, não irei opinar, nesta oportunidade, sobre o que ocorreu no país desde que o deixei, há 8 anos e 5 meses, na manhã de 4 de abril de 1964. Falarei apenas a respeito das diretrizes gerais adotadas por meu governo, nos dias que exerci a Presidência da República”, inicia a carta.
O historiador e autor do livro “João Goulart – Uma Biografia”, Jorge Ferreira, afirma que o documento deve ser visto como uma análise a partir de uma seleção de fatos que enaltecem seu governo.
- Temos que analisar esta carta do ponto de vista da memória. Oito anos depois de sair do país ele relembra seu governo enaltecendo pontos positivos e não citando os problemas como o Plano Trienal e a falta de controle da inflação. Apesar de afirmar que não comentará o regime vigente, ele faz críticas de forma indireta – afirma o historiador.
A crítica é feita relacionando o seu tempo em frente da Presidência com o dos militares. A perseguição com aqueles que o auxiliaram, por exemplo, é formulada indiretamente.
“Recordo, com viva emoção e respeito, aqueles que, ao longo das jornadas em que nos empenhamos juntos, pagaram alto preço de sacrifícios na luta pela emancipação econômica – segunda etapa da nossa Independência, desafio histórico de nosso tempo e de nossa geração”.
Para o professor de História da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Marcus Dezemone, existiu uma percepção, desde o seu tempo como ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, de que Jango iria implementar uma “república sindicalista” parecida com a feita por Juan Domingo Perón, na Argentina.
- Durante a carta ele responde a crítica de uma república sindicalista e afirma que os sindicatos são um componente próprio das democracias. Ele estimula a sindicalização oral até para conter a radicalização de movimentos como as Ligas Camponeses e para formar uma base entre os trabalhadores do campo – afirma Dezemone.
Incompreensões da esquerda e da direita
João Goulart, ao mesmo tempo que enaltece seletivamente episódios de seu governo, apresenta o tom mais incisivo ao classificar a conjuntura em que assumiu o governo. A instalação de um parlamentarismo, inviabilizando a plenitude constitucional de seus poderes, é criticada como uma medida emergencial que foi votada “às pressas”. Esse com outros episódios não identificados são categorizados como “improvisados obstáculos” para que ele governasse.
- Quando João Goulart estava voltando para o Brasil para assumir a Presidência após a renúncia de Jânio (Quadros), um grupo da Aeronáutica fez a chamada 'Operação Mosquito' para derrubar o avião do novo presidente. O interessante deste episódio é que este movimento foi desarticulado pelo (Ernesto) Geisel, que viria se tornar um dos presidentes da ditadura que derrubou Jango – afirma Dezemone.
A memória de um gestor incompetente é combatida em toda uma análise que coloca o desenvolvimento como a primeira preocupação do seu governo. Ao contrário do que pregavam os militares, este crescimento, para Goulart, deveria estar associado ao bem-estar social.
- Jango está apontando que o governo dele também teve desenvolvimento mas evidencia que, ao contrário da ditadura, o dele teria ocorrido com liberdades democráticas. Existia uma memória muito negativa dele neste aspecto, ele era visto como um gestor incompetente – afirma Ferreira.
A instabilidade de seu governo também é apontada durante a carta. As Reformas de Base, principal bandeira levantada na época, é defendida como a mudança necessária para o desenvolvimento do Brasil, porém, Jango aponta que o radicalismo da sociedade a inviabilizaram.
“A segunda preocupação fundamental do meu Governo foram as Reformas de Base, que tantas e tamanhas incompreensões provocaram nos setores mais radicais, da esquerda e da direita”, escreveu.
A incapacidade dos setores mais extremos da ditadura em dialogarem para viabilizarem as reformas é apontado por Ferreira.
- Eles eram incapazes de chegar a um acordo sobre as reformas. Os setores de direita não as queriam e os de esquerda as queriam em seu programa máximo. Somente os setores de centro estavam dispostos a negociar.
Uma das nove páginas da carta é destinada a explicitar a reforma agrária.
- A ênfase que ele dá para a reforma agrária evidencia seu projeto político. Jango vincula a emancipação econômica com o desenvolvimento do mercado interno mas incorporando a população neste processo – analisa Dezemone.
O fato da carta ter sido apreendida pelo SNI e ter sido mantida em proteção pessoal do presidente Médici, mostra a relevância que Jango despertava durante o regime.
- A permanência do documento com Médici mostra que Jango era visto como uma ameaça e que era necessário dar atenção ao que ele fazia – afirma Ferreira.
Na carta, que está no acervo pessoal do Médici, disponível no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, a crítica mais contundente ao regime se dá exatamente ao avaliar seu tempo no poder.
“A História não acusará o meu Governo de haver faltado ao respeito das liberdades fundamentais”
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Documento inédito mostra visão de Jango sobre seu governo e ditadura - Instituto Humanitas Unisinos - IHU