16 Julho 2021
O programa político do Exército que elegeu Bolsonaro, elegeu o PT como inimigo público número 1 e se propõe a “erradicar” o partido de Lula.
A reportagem é de Maria Inês Nassif, publicada por Jornal GGN, 14-07-2021.
Duas semanas após o dia 28 de outubro de 2018, dia em que Jair Bolsonaro foi eleito em segundo turno com 55,13% dos votos válidos, contra 44,87% obtidos pelo petista Fernando Haddad, uma “alta autoridade das Forças Armadas” recebeu o jornalista argentino Marcelo Falak no seu gabinete, em Brasília, e contou a ele como “um grupo de militares” tinha cooptado, enquadrado e feito o ex-capitão do Exército – colega de turma de vários deles – presidente da República.
O GGN reportou a matéria do site NoÁmbito.com no dia 14/10/2018 (“Jornalista argentino revela como as Forças Armadas construíram a candidatura de Bolsonaro para chegar ao poder”).
A fonte militar de Falak comemorava a vitória das conspirações do generalato que se arrastavam desde o governo da presidenta Dilma Rousseff (2011-2016). Haviam, enfim, chegado ao poder sem dar nenhum tiro. Não precisavam disso, afirmou o general. Num mundo com mídia social, as armas são outras.
Ao longo da matéria, a fonte militar deixa vária pistas de sua identidade e a do grupo que ele diz representar. Em primeiro lugar, é do Exército – aliás, em várias passagens da matéria o jornalista argentino define como sujeito da trama política o próprio Exército. É “da mais alta patente”, uma “alta autoridade militar das Forças Armadas que desempenha um papel institucional importante”, uma “fonte sênior”. O jornalista relata que foi atendido na antessala do gabinete do general, em Brasília.
Na época, o comandante do Exército no governo Temer era o general Eduardo Villas Bôas que, sob o silêncio do presidente da República, Michel Temer, tuitou ameaças ao Supremo Tribunal Federal (STF) na véspera da votação de habeas corpus que permitiria ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva candidatar-se à Presidência. O general Sérgio Etchegoyen era, então, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). O ministro da Defesa, o general Joaquim Silva e Luna. O general Braga Netto, interventor do Rio de Janeiro. Em 2018, o general Fernando Azevedo e Silva, na reserva a partir de agosto daquele ano, quando se tornou assessor do então presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli.
Pela jactância da fonte, minha aposta sobre a sua identidade recai sobre um único nome.
O jornalista argentino ouviu do militar o relato da trama urdida por essa geração de generais na “missão” de “extirpar” a esquerda brasileira (expressão usada na entrevista) e tomar o poder elegendo Bolsonaro presidente da República. Somadas essas informações às confessadas nas memórias do general Eduardo Villas Bôas e do ex-vice de Dilma que virou presidente devido a um golpe, o quadro fica completo: a eleição de Bolsonaro era, de fato, parte de uma conspiração militar contra a democracia.
A fonte militar contou uma história que envolve “um grupo de generais” – e quando se trata de “generais” na ativa ou recém colocados na reserva, fala-se de militares que se formaram e ascenderam juntos na carreira. No caso, trata-se da geração da Guerra Fria, formada nos anos 70 num clima de caserna forjado no anticomunismo extremado e no ódio a qualquer ideologia que não a sua própria, de extrema-direita; treinada para combater a guerrilha de esquerda até a sua extinção – objetivo conquistado no final daquela década, período onde que se concentrou o maior número de desaparecidos políticos da ditadura; e, fundamentalmente, educada num caldo de cultura de profundo desprezo à democracia e à população civil. Esses militares são a geração que chegou ao generalato nos governos Lula e Dilma. O capitão Bolsonaro é da mesma turma e foi colega e permaneceu amigo de vários deles. Certamente Bolsonaro, da “turma”, seria general se não tivesse sido expulso da corporação por planejar atos de terrorismo e insubordinação contra o primeiro ministro do Exército pós-redemocratização, Leônidas Pires Gonçalves.
Segundo a fonte, que na entrevista ao site argentino se coloca como o porta-voz de “um grupo de militares de alto escalão”, desde 2014, depois da reeleição de Dilma Rousseff, o generalato do Exército conspirava e propalava uma nova doutrina, a “nova democracia”. Na explicação de Falak: “O que dizer de Jair Bolsonaro é pura ideologia? Não, por trás disso tudo está a estratégia da liderança das Forças Armadas de construir seu próprio presidente, encarregado de impor o que ele [a fonte] chama de ‘nova democracia’. Isso constituirá em um programa político ultraconservador e um programa econômico ultraliberal, com (…) uma participação ativa dos militares na vida política e a missão de erradicar a esquerda ‘que engana a sociedade’.”
Nesse projeto, Bolsonaro deveria ser um títere. Segundo o jornalista, a fonte militar disse que Bolsonaro “abriu o diálogo e aceitou nossas [dos generais] sugestões e mudou muitas de suas posições. Por exemplo, passou do nacionalismo econômico ao liberalismo. Isso (…) foi o resultado do diálogo que o Exército abriu com ele, sem nenhuma dúvida”. O ministro da Economia, Paulo Guedes, o “Posto Ipiranga” exibido por Bolsonaro durante sua campanha eleitoral, é uma peça fundamental no projeto de poder dos atuais generais que ocupam a vice-presidência da República, ministérios, estatais, agências reguladoras etc etc. É duvidoso que Guedes seja tão fundamental num projeto de poder exclusivamente de Bolsonaro.
O projeto da “Nova Democracia” começou a ser articulado, na verdade, no final do primeiro mandato de Dilma, quando se leva em conta os relatos feitos pela fonte do site argentino. Bolsonaro já desempenhava a função de zelar pelos interesses militares e estava sendo preparado pelos militares desde 2013, mas a definição dele como candidato dos militares ocorreu um ano antes das eleições. “O Exército analisou que haveria polarização e que Bolsonaro seria aquele que enfrentaria o conflito contra o PT. Por quê? Como a história do Brasil mostra, sua elite nunca se importou com a nação e só pensou em si mesma. Ficou claro para nós que os partidos de centro não se uniriam para enfrentar a esquerda. Foi certo apostar em Bolsonaro”, disse o militar de alta patente.
Além de forçarem a adesão ideológica de Bolsonaro ao liberalismo de Guedes, os militares deram um trato na imagem pessoal dele. “Ele se casou com sua terceira esposa, teve uma filha [a filha, na verdade, nasceu em 2011] e fez psicanálise por dois anos”, disse o militar ao jornalista argentino. Vivendo junto com Michelle desde 2007, o deputado oficializaria o casamento apenas em 2017, numa cerimônia religiosa oficiada pelo pastor Silas Malafaia.
A ideologia da direita militar elaborada pelo generalato e por ele chamada de “nova democracia” (segundo a qual os militares mandam e os demais poderes obedecem) precede a opção pela candidatura de Bolsonaro. O nacionalismo econômico, que era hegemônico nos quartéis, foi substituído por um liberalismo radical porque esse grupo considera que isso define o PT – e para ser radicalmente contra o partido de Lula, era necessário que o partido militar fosse ultraliberal. Ou seja, os generais querem se apresentar como antítese absoluta do PT. Foi o PT o eleito por eles como o inimigo número 1 da Nação. “O nacionalismo econômico não é mais nosso programa, deixamos isso para o Partido dos Trabalhadores, agora é liberalismo, foi o que dissemos a Bolsonaro, queremos um país o mais livre possível, o que nos coloca radicalmente contra o que o PT”, disse a fonte do jornalista. Os outros “pilares” da “nova democracia” recitados pelo militar de alto escalão de Michel Temer, sob cujo governo ocorreram as eleições de 2018, são: “a luta contra a corrupção, a segurança, o ajuste fiscal, a reforma previdenciária, a melhoria dos transportes e, por que não, a questão das mulheres”.
O programa político elaborado pelo “grupo de militares de alto escalão” não apenas justifica, mas define como objetivo a ocupação militar do aparelho estatal. A “doutrina” elaborada por eles diz que os militares devem assumir uma “participação hegemônica” no aparelho de Estado e reivindica a ascendência sobre os civis recitando um suposto direito à igualdade, como se fosse absolutamente democrático assumirem o Estado e manterem a sociedade civil refém de seu poder bélico. “Queremos ser aceitos como cidadãos plenos, não como cidadãos de segunda classe, e é por isso que estamos falando de uma nova democracia (…) Os oficiais militares são pessoas muito qualificadas, conhecemos idiomas, temos pós-graduados, temos que acabar com isso de não podermos ser ministros”, disse a “fonte sênior” de Falak.
A tal doutrina se reserva ao direito de escolher que esquerda os militares vão suportar na “nova democracia” militar. “Há uma esquerda que é boa, mesmo dentro do PT e do Partido Comunista, e que o Brasil deve aproveitar. Mas há outro que incomodou a sociedade com excessivo discurso de correção política, que buscava impor o casamento homossexual no Congresso, questões de gênero… A sociedade não quer isso. Não vamos permitir as propostas que se enganam e se disfarçam de socialismo.”
O general disse que a possibilidade de golpe estaria afastada porque “em 64 não havia Facebook, o mundo era diferente, um golpe não ia acontecer em nenhum caso, a imprensa ainda não entende isso, e na campanha foi muito parcial, com análise muito infantil. O primeiro derrotado nas eleições é a Rede Globo”.
Os militares brasileiros não apenas formularam essa tal “nova política”, como têm a pretensão de que os demais países sul-americanos façam o mesmo. “Queremos mostrar à América do Sul e ao mundo que somos brasileiros, militares, brancos, negros ou índios, isso não importa, porque o nosso discurso é a unidade”, disse a fonte sênior. Continua o site argentino: “De acordo com o comandante sênior, ‘discutimos essas questões (a doutrina da ‘nova democracia’) com os nossos colegas do Uruguai, mas infelizmente não com os da Argentina, que ainda percebem como muito deprimido. Eles têm treinamento que é muito bom, mas a falta de apoio da sociedade significa que eles ainda não desenvolveram uma perspectiva política.’ No Brasil é diferente: ‘Nossa imagem positiva é de 80%’ (…) ‘A Argentina merece respeito e hoje estamos preocupados com as consequências da crise econômica’, disse ele. ‘Precisamos que as Forças Armadas de seu país sejam fortalecidas e consideradas forças permanentes do Estado, como no Brasil, para serem parceiros em projetos bilaterais e internacionais ‘ (…) ‘Ficamos muito felizes quando Cristina Kirchner saiu e Mauricio Macri entrou. Macri é um homem preparado, educado, que tem todas as condições para melhorar a Argentina.’
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A “doutrina” inventada pelos militares para assumir o poder - Instituto Humanitas Unisinos - IHU