17 Março 2021
O antiprogressismo e a anticorreção política edificam, hoje, um novo senso comum que parece se alimentar de uma dupla deficiência da esquerda: certa dificuldade em encarnar projetos transformadores e também uma incapacidade para imaginá-los, segundo formula o historiador Pablo Stefanoni, em seu livro La rebeldía se volvió de derecha?. Em sua avaliação, “há uma certa superioridade moral do progressismo que o faz acreditar que não é necessário ler a direita”.
Doutor em História e chefe de redação da revista Nueva Sociedad, Stefanoni busca perscrutar por que a esquerda deixou de ler a direita, ao passo que as novas direitas alternativas, localizadas à direita dos partidos liberais-conservadores convencionais, sim, leem e debatem com a esquerda.
“Ler a direita é ler os livros e artigos que publicam, mas também olhar um pouco além do que nós acreditamos ser a direita, identificar correntes, tensões internas e lógicas de ação”, argumenta o autor, que foi buscar esse Outro para investigá-lo e entendê-lo com um minucioso trabalho de mineração que incluiu bibliografia, mas também a deep web, fragmentos na nuvem, postagens efêmeras no 4chan ou no Twitter e memes.
A entrevista é de Ana Clara Pérez Cotten, publicada por Télam, 14-03-2021. A tradução é do Cepat.
Na introdução, alerta sobre a “ilusão keynesiana” no início da pandemia, em 2020, em termos de um retorno do Estado, e também sobre a percepção de que não é a mesma coisa ter ou não um sistema de saúde pública. Em que medida isto pode mudar as margens de manobra da esquerda que, mesmo quando vence as eleições, se vê impossibilitada de fazer mudanças?
Penso que existem ideias muito superficiais sobre o “retorno do Estado” ou, ao menos, existiam no início da pandemia. A saúde pública pode ser um bom ponto de início para debater como desmercantilizar uma parte da vida social colonizada pelo mercado e como construir instituições de bem-estar, na América Latina, que vão além da transferência de renda.
Existe aí um déficit muito grande da era progressista ou da “guinada à esquerda” regional: houve aumento do consumo popular, tudo bem, mas muito pouca discussão e avanços sobre como construir Estados de bem-estar efetivos e instituições que viabilizem as políticas igualitárias para além do voluntarismo dos governos.
A um ano do início da pandemia, avançou-se pouco nesse sentido. É certo que os governos colocaram suas energias no mais imediato, mas talvez deva ser encontrado o momento de pensar um pouco além. Em países como Argentina, a classe média em grande medida deixou de utilizar certos serviços públicos. E quando se deixa de utilizar a saúde e a educação públicas, os impostos vão se tornando cada vez menos legítimos. E a crítica anti-impostos costuma ser uma via de expansão das direitas.
Por que a esquerda deixou de ler a direita? É falta de estoicismo, um problema com a ideia do Outro ou simplesmente a inércia das bolhas sociais e os algoritmos virtuais em que nos movemos?
Há um pouco de tudo. Há uma certa superioridade moral do progressismo que o faz acreditar que não é necessário ler a direita. Para que, se são os neoliberais de sempre ou encarnam novas formas de fascismo? Acredito que as novas direitas expressam inconformismos, insatisfações e raivas de parte da sociedade.
Alguns [desses elementos] se dão frente a avanços progressistas que fragilizaram hierarquias sociais, de gênero ou sexuais. Mas também há uma reação a um centrismo que fez com que, em muitos países, não haja grandes diferenças entre centro-direita e centro-esquerda, e à falta de alternativas e de imagens positivas do futuro. O futuro se tornou cada vez mais sombrio e inclusive distópico. Se como disse Marx a revolução deve extrair sua poesia do futuro, isto é um grande problema.
Frente a isso, ganha êxito o que o sociólogo francês Philippe Corcuff chamou de “um hipercriticismo dissociado da ideia de emancipação”. Um tipo de crítica às “elites” e ao “sistema” atrelado a imaginários políticos conspirativos e fortemente antiprogressistas. Então, ler a direita é ler os livros e artigos que publicam, mas também olhar um pouco mais além do que nós acreditamos ser a direita, identificar correntes, tensões internas e lógicas de ação.
Considera que Trump é, em muitos sentidos, alguém que veio mais para romper do que conservar. A invasão do Capitólio, a cena final de seu mandato, faz justiça à frase. Em quais aspectos avalia que a ruptura foi mais determinante?
Como demonstram Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em Como as democracias morrem, Trump atacou muitas das instituições informais da democracia estadunidense. Mas há um efeito do trumpismo que transcende os Estados Unidos: um Trump que “rompia com tudo” (Organização das Nações Unidas, Organização Mundial da Saúde, Acordo de Paris) levou o progressismo a se localizar em uma posição de defesa do status quo.
Não é ruim defender certas instituições, mas me parece que é preciso estar consciente de que isso pode levar a uma posição excessivamente conservadora, incapaz de canalizar os inconformismos da sociedade e, sobretudo, dos de baixo. Não digo que não se possa constituir uma frente democrática contra as extremas direitas, mas, ao mesmo tempo, é preciso ter presente as consequências. Talvez a maior herança do trumpismo tenha sido fazer com que figuras e discursos marginais ou periféricos tenham ocupado uma inédita centralidade e ampliar as margens do dizível.
A cena das bolsas mortuárias, colocada na porta da Casa Rosada, pareceram adquirir esta direção. Ainda são formações marginais ou muito mais embrionárias?
As direitas ou centro-direitas, como Cambiemos, estão fora do livro. Interessei-me pelas direitas “alternativas”, que se assumem sem complexos e travam uma batalha cultural antiprogressista, a partir de posições contra a política convencional. Hoje, existe na Argentina um setor que quer fazer algo do estilo do Vox, na Espanha, e passa curiosamente pelo fenômeno dos “libertários”, uma tradição inexistente até agora no país.
Em Cambiemos, está a ex-ministra Patricia Bullrich que, sim, quer jogar pela direita e isso lhes dificulta a tarefa. Parece-me que há um setor da sociedade que quer uma oferta de direita mais ideológica e menos culposa, e distante do discurso de gestão e pós-ideológico do larretismo.
Ao longo do livro, aponta como a nova direita alterou a função intelectual, amparada em grande parte em plataformas e dinâmicas típicas da internet. Por que os intelectuais de esquerda ainda não se animam a “ridicularizar os ridicularizadores”?
O que hoje está na moda chamar de “incorreção política” ou “divertido” possui dimensões transgressoras frente ao que aparece como uma moralização do discurso progressista. O problema é que hoje essa “incorreção” é o veículo de todos os tipos de desvios reacionários, racistas, misóginos, homofóbicos.
Nos Estados Unidos, há muitos programas de humor político progressista, na América Latina, não. Há uma batalha a ser travada aí, e pensar como nos desfazemos desse manto moralizador – que em parte vem da cultura protestante estadunidense –, sem cair em discursos hiperbólicos sobre novas inquisições desse estilo.
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“As novas direitas expressam insatisfações e raivas de parte da sociedade”. Entrevista com Pablo Stefanoni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU