Agosto: três trágicos eventos da história brasileira

Imagem: Wikimedia Commons

Por: Ricardo Machado | 23 Agosto 2021

 

Agosto é o nome do romance histórico de Rubem Fonseca, que narra - misturando fatos e ficção - o pano de fundo que culminou no suicídio de Vargas. Contudo, a realidade brasileira, às vezes, é mais subversiva que a ficção. Eventos históricos ocorridos nos últimos dez dias deste fatídico mês também marcam o percurso polítco do Brasil, especialmente àqueles ligados ao poder central: em 1954, o suicídio de Getúlio Vargas; em 1961 a Campanha da Legalidade garantindo a posse de João Goulart e, em 1976, a morte de Juscelino Kubitscheck.

 

Às vezes pode até parecer que o “roteirista” pesou a mão, mas no caso brasileiro a história parece sempre se repetir em um eterno e trágico retorno, cujos farsantes verde-oliva sempre tentam se mostrar sob vernizes republicanos. De ameaça em ameaça o Brasil tropeça geração pós-geração sobre os próprios pés, num caminhar trôpego em direção ao futuro, atrasando e dificultando continuamente qualquer possibilidade de um projeto de país que seja capaz de ultrapassar a desigualdade estrutural que narra nossa história.

 

No dia 2 de setembro o Instituto Humanitas Unisinos - IHU apresenta a conferência O contexto da Legalidade e seus legados para a democracia brasileira, com o professor e pesquisador Jorge Ferreira, da Universidade Federal Fluminense. Nesta reportagem, apresentamos alguns eventos históricos ocorridos no mês de agosto e que têm relação direta e indireta com fatos políticos que convergiram à Campanha da Legalidade e que se desdobraram após o golpe de 1964.

 

Vargas, Jango, Brizola e JK (Arte: IHU)

 

 

“Saio da vida, para entrar na história”

 

Não é de hoje que os militares brasileiros, apesar de tentarem manter uma certa aparência republicana, agem e interferem de modo direto na política brasileira. Qual um tutor paternalista que se dirige aos outros como se crianças fossem, fazendo ameaças mas dizendo que são “alertas”, os homens de terno verde-oliva tentam ditar os rumos da história política do país (não raras vezes com sucesso, apesar das consequências).

 

Não, não estamos falando do tuíte do General Villas Bôas, em 3 de abril de 2018, ameaçando o Supremo Tribunal Federal – STF em relação ao julgamento sobre o habeas corpus de Lula, quando a investigação da Lava-Jato ainda não havia sido colocada em suspeição. Estamos tratando do O Manifesto dos Generais, de 22 de agosto de 1954, assinado entre outros por Henrique Teixeira Lott e Castelo Branco, que sugeriam a renúncia de Getúlio Vargas: "O melhor caminho para tranquilizar o povo e manter unidas as Forças Armadas é a renúncia do atual presidente da República".

 

 

 

No dia 23 de agosto de 1954, em uma reunião ministerial realizada por Getúlio Vargas ele fora aconselhado ao mesmo gesto, a renúncia. Reticente, o então presidente concordou em se licenciar se os poderes constitucionais fossem preservados e respeitados. Mas aquela seria a última noite da vida de Vargas, que na manhã seguinte se suicidaria com um tiro contra o próprio peito. Sua breve carta, algo como um testamento político, foi um dos fatores determinantes que atrasou em dez anos o golpe civil-militar que mergulharia o Brasil em mais de duas décadas de sombras.

 

Reprodução da carta de Getúlio Vargas a próprio punho

 

E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.

Trecho final da Carta de Getúlio Vargas.

 

Um quarto, um tiro, um marco histórico

 

Por volta das sete e meia, oito horas da manhã, ouviu-se o estampido seco. Desceu o elevador, às pressas, o Coronel Dornelles, um dos oficiais de serviço na presidência. Nós subimos apressadamente para o quarto onde o presidente se achava. Os primeiros a entrar foram o General Caiado, Dona Darci, Alzira, Lutero e eu. Encontramos o presidente de pijama, como meio corpo para fora da cama, o coração ferido e dele saindo sangue aos borbotões. Alzira de um lado, eu do outro, ajeitamos o presidente no leito, procuramos estancar o sangue, sem conseguir. Ele ainda estava vivo. Havia mais pessoas no quarto quando ele lançou um olhar circunvagante e deteve os olhos na Alzira. Parou, deu a impressão de experimentar uma grande emoção. Neste momento, ele morre. Foi uma cena desoladora. Todos nós ficamos profundamente compungidos; esse desfecho não estava na nossa previsão. O presidente em momento nenhum demonstrou qualquer traço de emoção, nunca perdeu o seu autodomínio, jamais perdeu sua imperturbável dignidade, de maneira que foi um trágico desfecho, que surpreendeu a todos e nos deixou arrasados.”

Tancredo Neves, ministro da Justiça de Getúlio Vargas em 1954, em depoimento à Revista Manchete, em 1º de setembro de 1984.

 

Campanha de legalidade

 

Passados sete anos, precisamente no dia 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros, presidente eleito e empossado em janeiro daquele mesmo ano, renunciou ao cargo, enquanto João Goulart – o Jango – estava em uma missão comercial na China. Ranieri Mazilli, presidente da Câmara dos Deputados, assumiu o comando do país com o respaldo de uma junta militar, que, no fundo, era quem detinha o poder. Contudo, desde Porto Alegre, o governador Leonel Brizola liderou a rede da legalidade, em uma articulação que envolveu o apoio do comando do Terceiro Exército, o Comando Regional da Aeronáutica, a Brigada Militar (polícia militar do Rio Grande do Sul) e uma emissora de Rádio, a Guaíba.

 

 

“A Campanha da Legalidade foi um período de exceção e não de normalidade, só tendo sido possível porque a sociedade civil se organizou em favor da democracia e da legalidade”, afirma o professor Jorge Ferreira, da Universidade Federal Fluminense – UFF, em reportagem publicada pelo IHU. A campanha surtiu efeito e dias depois Jango voltaria ao Brasil para tomar posse, mas não como presidente, senão como Primeiro Ministro, com poderes limitados. Dois anos mais tarde haveria um plebiscito para decidir o regime político brasileiro, se parlamentarismo ou presidencialismo, cujo resultado foi a manutenção do último.

 

O retorno de Jango, contudo, não seria tão simples. Sem garantias de segurança, Jango que estava no Uruguai negociando seu retorno, enquanto Brizola mobilizava com sucesso a opinião pública em torno da defesa da constituição, não voou direto para Brasília. Quando o “armistício” político foi fechado – aceitando o parlamentarismo – ele foi primeiro para Porto Alegre, no começo de setembro de 1961. Sua viagem para Brasília, juntamente com Leonel Brizola, para a posse enfim realizada no dia 7 de setembro, foi marcada por muita tensão. Havia o risco de sua aeronave, um Caravelle da extinta companhia Varig, ser abatida pela Força Aérea brasileira, na chamada de Operação Mosquito.

 

Apesar do sucesso inicial da Campanha da Legalidade, menos de três anos mais tarde, o ovo da serpente, que desde meados da década de 1950 estava sendo chocado, teria sua casca rompida. No dia 1º de abril de 1964, as forças políticas conservadoras do Brasil e os militares finalmente dariam o golpe civil-militar, cujo regime ditatorial só seria encerrado em 1985.

 

Morte de JK: acidente ou assassinato?

 

Em 1976, no dia 22 de agosto, o Brasil seria novamente impactado pela morte de um ex-presidente: Juscelino Kubitschek. No quilômetro 165 da Via Dutra, estrada que liga São Paulo ao Rio de Janeiro, cidade para onde JK se dirigia, seu carro, um Opala chamado por ele de “Platão”, colidiria frontalmente contra um caminhão Scânia na mão oposta da rodovia depois de perder o controle ao se chocar com um ônibus.

 

Em 2013 a Comissão Municipal da Verdade de São Paulo concluiu que o acidente fora, na verdade, um assassinato. JK seria mais uma vítima da Operação Condor, uma espécie de consórcio da morte perpetrado por um acordo de cooperação da alta cúpula dos regimes militares na América Latina contra os inimigos políticos das ditaduras no Brasil, Argentina, Paraguai e Chile. A suspeita de que a morte de JK fora encomendada decorreu da uma correspondência trocada entre o então chefe do Serviço Nacional de Inteligência – SNI, general João Figueiredo (que mais tarde seria o último presidente da ditadura), e Manuel Contreras, chefe do serviço secreto chileno. Na mensagem JK e Orlando Letelier (ex-ministro de Salvador Allende), segundo relata reportagem da Super Interessante, foram descritos como perigosos por Contreras, que, conforme escreveu no comunicado, “poderiam influenciar seriamente a estabilidade do Cone Sul”.

 

Imagem do carro de JK após o acidente (Imagem: reproduçaõ YouTube)



À época a Rede Globo, em um noticiário extra de três minutos sobre a morte de JK, recebeu a orientação dos censores de que deveria “retirar o tom emocional” da matéria produzida e que não poderiam informar no texto que JK havia perdido seus direitos políticos com o golpe de 1964.

 

Apesar de todos os indícios sugerirem que JK era um alvo dos militares, os laudos oficiais, contudo, apontam para um acidente, de fato. Mesmo a Comissão Nacional da Verdade, que comprovou por meio de documentos uma série de crimes perpetrados pelo regime militar, concluiu, em 2014, que os militares brasileiros não tiveram envolvimento na morte do ex-presidente. Não foi encontrado rastros de explosivos no carro de JK; o fragmento de metal encontrado no crânio de seu motorista, em uma exumação realizada em 1996, não era um projétil, mas um prego do caixão; e as marcas de pneu na estrada, contradizem os depoimentos de que o motorista estava desacordado quando colidiu com a carreta.

 

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