Por: Vitor Necchi | Tradução: Vanise Dresch | 14 Novembro 2018
O jurista francês Dominique Rousseau, ao refletir sobre a democracia, afirma que não é ela que está em crise, mas “a forma representativa da democracia, precisamente porque esquece, negligencia e/ou ataca os direitos humanos”. Citando Chantal Mouffe, explica que “a atual crise das democracias se deve ao surgimento de uma oligarquia neoliberal desconectada do povo que impõe sua dominação em todas as esferas da sociedade, inclusive na esfera política”.
Haveria uma saída simples para a crise: “Construir uma fronteira entre os que estão no topo e os que estão abaixo, entre as elites e o povo, e ‘declinar’ as primeiras para afirmar o poder do segundo”. Conforme Rousseau, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, “esse é o postulado básico do populismo que, seja qual for sua forma, constitui um pensamento ademocrático”.
O populista não acredita na capacidade política autônoma dos cidadãos ou na capacidade de os seres humanos se libertarem de suas emoções. Ele baseia sua política numa representação pessimista do homem que leva a justificar a emergência de um líder que diga quem somos “nós” e quem são “eles”, quem é o amigo e quem é o inimigo. “O populismo é a doença senil da democracia. Não pode ser o seu remédio.”
Conforme Rousseau, “o problema é que a democracia está doente, e o populismo é o seu sintoma”. Ele entende que “o populismo emerge do atual momento democrático que é de crise generalizada: crise da família, que se desagrega; crise da escola, que deixa de ser um santuário; crise do trabalho, que se desloca; crise da cidade, que se desumaniza; crise do Estado-nação, que se torna obsoleto”.
O jurista diz que “a figura do povo introduzida no caos provocado pela globalização dá às sociedades a chave para a compreensão do que lhes acontece e do que elas têm que fazer; é um poder de ordem e ação; é uma ideia-força que permite que as sociedades se tornem visíveis para si mesmas”. Isso dá elementos para se entender por que “o populismo está se espalhando pelo mundo inteiro”.
Ao negar os antagonismos e os conflitos, o populismo “coloca o Povo como uma figura que os absorve, como uma figura que dissipa as incertezas, como uma figura da vontade comum”. Se o Povo senta no lugar do poder, a sociedade se organiza sem divisão. “O Poder é confundido com o Povo, o Povo com o partido e o partido com seu líder. Assim desaparece a democracia.”
Dominique Rousseau | Foto: TRT4
Dominique Rousseau é um jurista francês. Doutor em Direito, é professor da Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne, onde atualmente dirige o Instituto de Ciências Jurídicas e Filosóficas da Sorbonne. Foi membro do Conselho Superior da Magistratura da França de 2002 a 2006 e integra o Tribunal Constitucional de Andorra desde abril de 2016. É autor de, entre outros, La Démocratie Continue (Paris: LGDJ, 1995), Droit du Contentieux Constitutionnel (Paris: Montchrestien, 2010), La Question Prioritaire de Constitutionnalité (Paris: Gazzette du Palais, 2012), Les Grandes Décisions de la Question Prioritaire de Constitutionnalite (Paris: LGDJ, 2013) e Radicaliser la Démocratie. Propositions pour une Refondation (Paris: SEUIL, 2015).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em um processo que se iniciou após a Segunda Guerra, houve um movimento para implementação de democracias constitucionais e defesa dos direitos humanos. Mais recentemente, questiona-se a democracia por conta de seus limites, e os direitos humanos sofrem ataques. O que houve com os ideais humanistas?
Dominique Rousseau – Não é a democracia que está sendo questionada hoje. O que está sendo questionado é a forma representativa da democracia, precisamente porque esquece, negligencia e/ou ataca os direitos humanos.
De acordo com alguns autores, como Chantal Mouffe [1], a atual crise das democracias se deve ao surgimento de uma oligarquia neoliberal desconectada do povo que impõe sua dominação em todas as esferas da sociedade, inclusive na esfera política. Portanto, a saída da crise seria simples: construir uma fronteira entre os que estão no topo e os que estão abaixo, entre as elites e o povo, e "declinar" as primeiras para afirmar o poder do segundo. Esse é o postulado básico do populismo que, seja qual for sua forma, constitui um pensamento ademocrático. Ademocrático porque o populismo não toma como referência o demos, mas “a gente”. O professor ressalta que essa passagem semântica de “povo” para “gente” não é inofensiva: “ela revela a impossibilidade teórica de fundar um populismo de esquerda”.
Essa passagem semântica de “povo” para “gente” não é inofensiva; ela revela a impossibilidade teórica de fundar um populismo de esquerda. A gente é um dado imediato e indistinto das pessoas, um número indeterminado e anônimo, uma série sem qualquer relação. Inversamente, o povo é uma associação política de cidadãos, um coletivo ligado por interesses comuns e valores compartilhados, resultado de uma construção na qual a lei cria e nomeia o sujeito de direitos. Filósofos, sociólogos e historiadores desprezam demasiadamente essa magia da lei ou, para usar uma linguagem mais erudita, essa qualidade performativa da lei que faz com que aconteça “na realidade” aquilo que ela enuncia. Sem dúvida, na construção política do povo, a longa história de lutas sociais pelo direito ao voto, direito à saúde, direito de dispor livremente do próprio corpo ocupa um lugar eminente. Mas todas essas lutas buscam num dado momento o direito, porque só ele tem, nas sociedades de hoje, a capacidade de transformar uma reivindicação social em lei. O povo, assim, é um coletivo de cidadãos-sujeitos de direitos, ligados por esses direitos e conscientes de compartilhar a mesma experiência de direitos.
O populista não acredita na capacidade política autônoma dos cidadãos ou na capacidade de os seres humanos se libertarem de suas emoções. Ele baseia sua política numa representação pessimista do homem que leva a justificar a emergência de um líder que diga quem somos “nós” e quem são “eles”, quem é o amigo e quem é o inimigo, citando aqui a famosa distinção de Schmitt [2]. O populismo é a doença senil da democracia. Não pode ser o seu remédio.
IHU On-Line – Qual a situação dos regimes democráticos do Ocidente na atualidade?
Dominique Rousseau – O problema é que a democracia está doente, e o populismo é o seu sintoma. Para confirmarmos isso, podemos recorrer à literatura política que, por séculos, tem afirmado regularmente poder observar uma “crise da democracia” e tem feito, com a mesma regularidade, o prognóstico do fim dela. O risco é de que, como na fábula de Esopo, de tanto denunciar à toa a crise da democracia, ninguém se mova quando ela realmente acontecer! Ora, tudo converge hoje, principalmente o desenvolvimento do populismo, para levar a sério o estado crítico das democracias.
Uma “boa expressão” pode resumir o espírito da época: “A ditadura é fechar a boca; a democracia é continuar a falar sempre”. Essa expressão só é “boa” se for feita uma interpretação adequada. Um primeiro sentido pode levar a pensar que a distinção entre a ditadura e a democracia é muito relativa, uma vez que, em ambos os sistemas, a voz dos cidadãos nunca é ouvida e nunca determina as escolhas políticas. Um segundo sentido leva a destacar, ao contrário, que a palavra é o sinal distintivo da democracia e que, por poder “falar sempre”, o povo acaba, um dia, sendo ouvido. É para evitar esse “risco” que a ditadura exige que se cale a boca, tornando visível a distinção radical com a democracia.
Há um ponto em comum nessas interpretações concorrentes: a palavra, o verbo, a expressão. Se “calar a boca” é a ditadura, “abri-la” é a democracia. Ou mais exatamente, a possibilidade de democracia. Porque tudo depende de quem abre a boca. Nas formas políticas atuais, quem sempre abre a boca porque a constituição lhe dá o direito de fazê-lo é aquele que deriva, direta ou indiretamente, do sufrágio universal: o representante. Quem abre a boca intermitentemente é o povo, a quem a Constituição dá o direito de se expressar a cada cinco anos para eleger aqueles que abrirão a boca no seu lugar. Essa forma política não é democracia, mas o sistema representativo que tem seu princípio na famosa formulação de Sieyès [3]: “o povo só pode falar, querer e agir por intermédio de seus representantes”. É essa forma política, a forma representativa, que está em crise, e dessa crise vem uma nova forma política, rompendo com a anterior, a que chamei de “democracia contínua”.
O seu princípio é o oposto do que diz Sieyès e o seu enunciado é simples: o direito que a Constituição dá a todo cidadão de “abrir a boca” permanentemente, de falar continuamente, isto é, entre dois momentos eleitorais e fora das eleições, para formular as regras da vida comum. A democracia contínua, portanto, não se reduz à esfera estatal, porque, se o poder está em toda parte, como disse Alain [4], a palavra do cidadão, isto é, o pensamento também deve estar em toda parte. Ela não termina na porta das empresas, segundo uma expressão antiga, ela adentra nelas como adentra em todas as outras esferas sociais para dar à sociedade, não ao Estado somente, sua qualidade democrática.
Ela também não para na porta da cabine de votação. Um presidente, um governo ou uma assembleia resultante do sufrágio universal dispõem de uma legitimidade eleitoral, não necessariamente de legitimidade democrática. Só adquirem essa legitimidade se – e somente se – exercerem o poder em condições que respeitem os direitos e as liberdades dos cidadãos e, em particular, o direito de criticar. Esquece-se com muita frequência que os direitos constitucionais enunciados na Declaração de 1789 foram escritos, como afirmam os revolucionários, com o “objetivo” de fazer com que cada cidadão comparasse “em cada momento” os atos dos poderes Executivo e Legislativo com os direitos declarados e reivindicasse seu respeito. “Comparar”, “reivindicar”, “cada cidadão”, “em cada momento”, “respeito pelos direitos constitucionais”, todas as características da democracia contínua estão aqui, suspensas por dois séculos!
IHU On-Line – Como entender o crescimento e a chegada ao poder de governos mais autoritários?
Dominique Rousseau – O populismo é uma representação do político que não é externa à representação democrática. O populismo e a democracia mantêm uma relação trágica, pois o populismo surge da democracia que ele destrói. Daí a importância de ter uma definição clara de “populismo”. Talvez um de seus principais teóricos contemporâneos seja o argentino Ernesto Laclau [5], que considera que “o populismo é tanto um conceito elusivo quanto recorrente; sabemos intuitivamente ao que nos referimos quando chamamos de populista um movimento, mas temos a maior dificuldade em traduzir essa intuição em um conceito. O termo continua sendo empregado de maneira puramente alusiva, e qualquer tentativa de verificar seu teor é abandonada”.
Modéstia do filósofo? É mais uma preocupação em manter vaga uma noção, desencorajar o esclarecimento de seu significado e desacreditar antecipadamente qualquer esforço de compreensão, a fim de permanecer dono do uso da palavra e impedir a identificação do inimigo da democracia. Por que qualificar um movimento como “populista” se esse adjetivo não tem qualquer consistência teórica e depende unicamente da intuição e da subjetividade de quem o utiliza? Essa substancial aniquilação das palavras já é um marcador da retórica destrutiva do populismo. Quando um partido de extrema direita, racista e homofóbico leva o nome de “Democratas” na Suécia ou “Partido da Liberdade” na Holanda e na Áustria, as palavras perdem seu significado, a confusão se instala e a possibilidade de deliberação democrática desaparece.
No entanto, ao contrário de Ernesto Laclau, devemos afirmar o “teor” do significado do conceito de “populismo”. É uma representação do político como um lugar pleno, um lugar ocupado por uma substância homogênea – o povo – capaz de reduzir todas as incertezas, todas as questões que preocupam uma sociedade e cada indivíduo que a compõe. Assim, entende-se que o populismo emerge do atual momento democrático que é de crise generalizada: crise da família, que se desagrega; crise da escola, que deixa de ser um santuário; crise do trabalho, que se desloca; crise da cidade, que se desumaniza; crise do Estado-nação, que se torna obsoleto. Em suma, trata-se de uma época em que tudo o que era óbvio deixa de sê-lo, tudo o que estruturava, guiava, explicava nossas vidas pessoais e coletivas desmoronou, tudo se torna “fluido”, para empregarmos o termo do sociólogo Zygmunt Bauman [6].
As sociedades democráticas contemporâneas têm se tornado irreconhecíveis porque perderam a representação que lhes dava sua identidade social. Nesse contexto histórico de incertezas, o populismo oferece uma representação que produz a certeza, que dá novas referências, que ajuda as sociedades a se reconhecerem, a saberem sobre seu ser, sua identidade, seu lugar. Toda a desordem concentra-se na figura unificadora do Povo. Assim como o cristal introduzido em um magma disforme cristalizará gradualmente a substância que entra em contato com ele e lhe dará forma e significado [7], a figura do povo introduzida no caos provocado pela globalização dá às sociedades a chave para a compreensão do que lhes acontece e do que elas têm que fazer; é um poder de ordem e ação; é uma ideia-força que permite que as sociedades se tornem visíveis para si mesmas.
Isso explica o fato de que o populismo está se espalhando pelo mundo inteiro. Quando todas as sociedades são “afetadas” pelo caos, todas elas acolhem essa figura unificadora do Povo que ordena e dá sentido à desordem. Tudo se torna simples e fácil de ler: o Povo serve como um critério para definir políticas de migração, para descartar os elementos que poderiam desfazê-lo – esta ou aquela religião, esta ou aquela língua etc. –, para designar os responsáveis pelo “mal” – as elites apartadas do Povo –, para reposicionar as fronteiras. De repente, tudo adquire sentido de novo, o povo sabe o que é e seus representantes sabem o que devem fazer.
Se, por um lado, essa representação do político emerge do momento democrático, por outro, ela o destrói e, além disso, fecha qualquer horizonte democrático. Primeiro, porque toma emprestado do passado muitos elementos de seu discurso, gerando um pensamento ansioso do presente que acaba alimentando o desejo de um retorno – retorno às fronteiras, ao Estado-nação, à família heterossexual, à escola dos mestres etc. – ao que é apresentado não como a ordem antiga das coisas, mas como a ordem “verdadeira”, “natural” e autêntica da realidade humana. O passado é transformado em mito, o trabalho do significado é interrompido e as coisas se fixam em algum período da história. No entanto, esse pensamento – como diz Cassirer [8] com razão, contrariando Heidegger [9] – nunca abriu caminhos democráticos. Acima de tudo, ao afirmar uma representação do político como lugar pleno de uma substância homogênea – o Povo –, o populismo se opõe radicalmente à forma democrática em que o poder se apresenta como um “lugar vazio”, nas palavras de Claude Lefort [10].
Toda sociedade é atravessada por conflitos, antagonismos e interesses opostos, de modo que a vontade comum de uma sociedade não é espontânea. Ela se constrói com a condução dos antagonismos, com o confronto e a discussão, e é precisamente esse manejo deliberativo de antagonismos que define a forma democrática como um lugar vazio: a sociedade estando dividida, nenhuma das partes conflitantes que a compõe tem a priori legitimidade para ocupar o poder que estabelecerá a norma. Todas têm legitimidade, ou, colocando de outra maneira, nenhuma tem legitimidade [exclusiva]; consequentemente, todas as partes são igualmente legítimas para construir por deliberação a vontade comum do momento. Ao contrário, o populismo nega os antagonismos e os conflitos e coloca o Povo como uma figura que os absorve, como uma figura que dissipa as incertezas, como uma figura da vontade comum. Com o Povo sentado no lugar do poder, a sociedade se organiza sem divisão. O Poder é confundido com o Povo, o Povo com o partido e o partido com seu líder. Assim desaparece a democracia.
IHU On-Line – O senhor escreveu o livro Radicaliser la démocratie: propositions pour une refondation (Paris: Le Seuil, 2015). O que significa radicalizar a democracia, qual a importância disso e como fazer?
Dominique Rousseau – Os Direitos Humanos alicerçam o espaço das relações humanas. Em todos os lugares, afirma-se que os Direitos Humanos valorizam ou mesmo santificam o indivíduo, destroem qualquer possibilidade de bem comum e rompem todos os coletivos sociais: a família deixa de ser uma entidade e passa a ser uma associação de indivíduos que dispõem cada um de direitos; a classe operária se dissolve na individualização dos contratos de trabalho; os partidos políticos são arrastados pela entrada em cena dos egos, da escola, da imprensa, do viver juntos...
Contrariamente a esse infeliz pensamento, tudo leva a considerar que os direitos humanos são, na realidade, o princípio do individualismo relacional, de um espaço público – “público” significa “comum” – que liga os indivíduos uns aos outros. A questão política, hoje, não é a do indivíduo, nem mesmo a de uma sociedade que seria feita de indivíduos fluidos, para usar a expressão de Zygmunt Bauman [11], tampouco uma questão nova ou recente provocada pelo espírito maligno de Maio de 68. O indivíduo tem sido, há muito tempo, o princípio do político.
O capitalismo, com sua mística do interesse individual, seus mecanismos de individualização dos contratos de trabalho e seu direito de propriedade, moldou indubitavelmente esse processo de individuação, mas o socialismo não o contrariou, pois, de acordo com o próprio Marx [12], a sociedade concreta por vir seria aquela “em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos”. Todas as tragédias políticas, especialmente as do século 20, são causadas pelo esquecimento, pela ignorância ou pela destruição da autoconsciência quando os homens abdicam ou são forçados a abdicar de sua individualidade em um grande todo: o partido. O Estado, a religião, a raça...
Portanto, se o processo social e histórico é o de uma sociedade de indivíduos, a questão política se desloca; ela passa a ser a da organização da fluidez social, da harmonização dessa fluidez para que não produza uma sociedade caótica; a questão é a do instrumento para a construção do comum, da generalidade nessa sociedade fluida. Porque as respostas de “antigamente” já não funcionam. Deus, a Nação, o Estado, as classes sociais que deram aos indivíduos um sentimento de pertencimento comum – “Eu pertenço ao povo cristão, à nação francesa, à classe operária...” – já não são operadores eficazes do senso comum dos indivíduos.
Nesse momento histórico e nessa configuração, a Constituição, entendida como um conjunto de direitos e liberdades do homem, pode ser o instrumento comum aos indivíduos no qual eles se reconhecem em sua particularidade, seu próprio ritmo, mas também em valores compartilhados; aqueles valores constitucionais comuns que Habermas [13] chama de “patriotismo constitucional”. Um verdadeiro espelho mágico, a Constituição se apresenta como um conjunto de princípios compartilhados, como um lugar onde o indivíduo “desencantado” pode reconstruir uma identidade comum.
Essa compreensão relacional dos direitos humanos pode ser surpreendente, já que é costume pensá-los sob o signo da individualidade. Ao descrever a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão dos “direitos naturais e imprescritíveis do homem", os autores da Declaração de 1789 teriam reconhecido a ideia de que esses direitos enraizados na natureza humana pertencem ao indivíduo constituído como sujeito de direito. Essa leitura não é apenas defendida pelos pensadores liberais, mas também vai ao encontro, obviamente numa perspectiva crítica, da análise de Marx, para quem os direitos humanos consagram o triunfo do individualismo, “a separação dos homens”, o “egoísmo burguês”, fazendo de cada indivíduo um ser isolado, uma “mônada” [14].
No entanto, outra leitura é possível, na qual os direitos humanos podem ser concebidos não como liberdades individuais, mas como “liberdades de relações”, nas palavras de Claude Lefort [15]. Quando o Artigo 6 da Declaração de 1789 reconhece o direito dos cidadãos de contribuir para a elaboração da lei, ele os convida a relacionarem-se uns com os outros para definir a vontade geral; quando o Artigo 4 define a liberdade como o poder de fazer qualquer coisa que não prejudique os outros, ele convida os indivíduos a considerarem a existência e os direitos dos outros; quando o Artigo 11 proclama a liberdade de comunicação de pensamentos e opiniões, ele convida o indivíduo a não se fechar em si mesmo e a se abrir aos outros, a se relacionar com outros homens. Em outras palavras, a Declaração de 1789 rompe o sistema fechado das ordens do Antigo Regime e o substitui por um sistema aberto. O que os direitos humanos inauguram não é a criação de um espaço privado em que cada indivíduo se isolaria, mas a criação de um espaço público no qual o corpo e as ideias de cada homem podem circular livremente, confrontando-se necessariamente com os corpos e as ideias dos outros.
Notas:
[1] Chantal Mouffe (1943): filósofa belga, autora de Dimensions of radical democracy (London: Verso, 1992) e The democratic paradox (London: Verso, 2000). Mouffe era grande parceira de Ernesto Laclau. A edição 508 da IHU On-Line apresenta um artigo de Mouffe intitulado O desafio populista. O sítio do IHU publicou diversos textos da e sobre a autora. Entre eles A influência de Laclau e Mouffe no Podemos: hegemonia sem revolução; “O kirchnerismo é uma fonte de inspiração”. Entrevista com Chantal Mouffe; e “Existe uma necessária dimensão populista na democracia”. Entrevista com Chatal Mouffe. A IHU On-Line número 508 se dedica à análise do conceito de populismo, trabalhado por ela e Ernesto Laclau. (Nota da IHU On-Line)
[2] Carl Schmitt (1888-1985): jurista, filósofo político e professor universitário alemão. É considerado um dos mais significativos e controversos especialistas em direito constitucional e internacional da Alemanha do século 20. A sua carreira foi manchada pela sua proximidade com o regime nacional-socialista. O seu pensamento era firmemente enraizado na teologia católica, tendo girado em torno das questões do poder, da violência, bem como da materialização dos direitos. (Nota da IHU On-Line)
[3] Emmanuel Joseph Sieyès (1748-1836): político, escritor e eclesiástico francês. Foi um dos líderes teóricos da Revolução Francesa e exerceu papel fundamental no consulado francês durante o Primeiro Império. Entre suas principais obras destaca-se O que é o Terceiro Estado? que se tornou o manifesto da revolução. (Nota da IHU On-Line)
[4] Émile-Auguste Chartier (1868-1951): ensaísta e filósofo francês cujo pseudônimo era "Alain". (Nota da IHU On-Line)
[5] Ernesto Laclau (1935-2014): teórico político argentino. Pesquisador e professor da Universidade de Essex, recebeu o título de doutor Honoris Causa de várias universidades: Universidade de Buenos Aires, Universidade Nacional de Rosário, Universidade Católica de Córdoba, Universidade Nacional de San Juan e Universidade Nacional de Córdoba. Em 10-3-2008 concedeu a entrevista 1968 e a construção de um novo discurso político à edição 250 da IHU On-Line, disponível em . A edição número 508 da IHU On-Line apresenta uma reflexão sobre o conceito mais célebre do autor: o populismo. (Nota da IHU On-Line)
[6] Zygmunt Bauman (1925-2017): sociólogo polonês, professor emérito nas Universidades de Varsóvia, na Polônia, e de Leeds, na Inglaterra. A edição 113 da IHU On-Line, de 30-8-2004, publicou uma resenha do seu livro Amor Líquido (São Paulo: Jorge Zahar Editores, 2004). A edição 181, de 22-5-2006, apresenta uma entrevista exclusiva com Bauman. Por ocasião de sua morte, o IHU, na seção Notícias do Dia de seu sítio, publicou diversos textos sobre a importância de Bauman para compreender o nosso tempo. Entre eles, Zygmunt Bauman representava algum conforto em um mundo cada vez mais cinzento, artigo de Ricardo Lísias, reproduzido em 10-1-2017. (Nota da IHU On-Line)
[7] Ver essa metáfora em Olivier Clerc. Même lorsqu’elle recule, la rivière avance, Marabout, 2010. (Nota do entrevistado)
[8] Ernst Cassirer (1874-1945): filósofo alemão de origem judaica que pertenceu à Escola de Marburg. Foi um dos mais importantes representantes da tradição neokantiana de Marburgo. Desenvolveu uma filosofia da Cultura como uma teoria dos símbolos, baseada na Fenomenologia do Conhecimento. (Nota da IHU On-Line)
[9] Martin Heidegger (1889-1976): filósofo alemão. Sua obra máxima é O ser e o tempo (1927). A problemática heideggeriana é ampliada em Que é Metafísica? (1929), Cartas sobre o humanismo (1947) e Introdução à metafísica (1953). Sobre Heidegger, confira as edições 185, de 19-6-2006, intitulada O século de Heidegger, e 187, de 3-7-2006, intitulada Ser e tempo. A desconstrução da metafísica. Confira, ainda, Cadernos IHU em Formação nº 12, Martin Heidegger. A desconstrução da metafísica, e a entrevista concedida por Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-5-2010, intitulada O biologismo radical de Nietzsche não pode ser minimizado, na qual discute ideias de sua conferência A crítica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte integrante do ciclo de estudos Filosofias da diferença, pré-evento do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana. (Nota da IHU On-Line)
[10] Jean-Claude Lefort (1924-2010): filósofo francês, autor de, entre outros, A invenção democrática: os limites da dominação totalitária (São Paulo: Brasiliense, 1983) e Desafios da escrita política (São Paulo: Discurso Editorial, 1999). Por ocasião de seu falecimento, a IHU On-Line entrevistou a filósofa Olgária Matos, na edição 348, de 25-10-2010, intitulada Claude Lefort e a invenção democrática. (Nota da IHU On-Line)
[11] Ver, por exemplo, Zygmunt Bauman, La Vie en miettes, Paris, Le Rouergue/Chambon, 2003; Pascal Michon, Les Rythmes du politique. Démocratie et capitalisme mondialisé, Paris, Les Prairies ordinaires, 2007. (Nota do entrevistado)
[12] Karl Marx (1818-1883): filósofo, cientista social, economista, historiador e revolucionário alemão, um dos pensadores que exerceram maior influência sobre o pensamento social e sobre os destinos da humanidade no século 20. A edição 41 dos Cadernos IHU ideias, de autoria de Leda Maria Paulani, tem como título A (anti)filosofia de Karl Marx. Também sobre o autor, a edição número 278 da revista IHU On-Line, de 20-10-2008, é intitulada A financeirização do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx. A entrevista Marx: os homens não são o que pensam e desejam, mas o que fazem, concedida por Pedro de Alcântara Figueira, foi publicada na edição 327 da IHU On-Line, de 3-5-2010. A IHU On-Line preparou uma edição especial sobre desigualdade inspirada no livro de Thomas Piketty O Capital no Século XXI, que retoma o argumento central de O Capital, obra de Marx. A revista IHU On-Line, edição 525, intitulada Karl Marx, 200 anos - Entre o ambiente fabril e o mundo neural de redes e conexões, em celebração aos 200 anos do nascimento do pensador. (Nota da IHU On-Line)
[13] Jürgen Habermas (1929): filósofo alemão, principal estudioso da segunda geração da Escola de Frankfurt. Herdando as discussões da Escola de Frankfurt, Habermas aponta a ação comunicativa como superação da razão iluminista transformada num novo mito, o qual encobre a dominação burguesa (razão instrumental). Para ele, o logos deve se construir pela troca de ideias, opiniões e informações entre os sujeitos históricos, estabelecendo-se o diálogo. Seus estudos voltam-se para o conhecimento e a ética. (Nota da IHU On-Line)
[14] Karl Marx, La Question juive, Paris, UGE, 1968. (Nota do entrevistado)
[15] Claude Lefort, «Droits de l’homme et politique», in Libre, n. 7, Paris, Payot, 1980. (Nota do entrevistado)
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Crise das democracias se deve ao surgimento de uma oligarquia neoliberal. Entrevista especial com Dominique Rousseau - Instituto Humanitas Unisinos - IHU