A crise do cristianismo e o “sinal dos tempos” para a redescoberta da fé autêntica

“O cristianismo não é uma religião bela e estabelecida de uma vez por todas, mas algo que se reinventa continuamente na vida, ou seja, a experiência de uma sede que a cada vez deve ser saciada de uma maneira nova pela relação vivente com Deus”, diz o teólogo italiano

Foto: Pixabay

Por: Patricia Fachin | 09 Julho 2021

 

Na última quinta-feira, 08 de julho de 2021, o sociólogo francês Edgar Morin completou cem anos. Em suas reflexões, que chamam a atenção para a complexidade da realidade e da natureza humana, ele não só advogou em favor do reencontro entre a cultura científica e a cultura humanística, como advertiu para as múltiplas crises da nossa época: sanitária, planetária, econômica, nacional, social, civilizacional, intelectual e existencial, conforme mencionado em artigo publicado pela editora Gallimard, como parte da série Tracts de crise (Fôlders de Crise). 

 

A pandemia de Covid-19 em curso em todo o globo desde o ano passado nos fez ver com mais lucidez as várias especificidades deste momento histórico que nos conduz a uma transição epocal e, uma delas, segundo o teólogo italiano Francesco Cosentino, diz respeito a Deus: "A crise atual também põe Deus em crise" e "nos convida a nos perguntarmos: em qual Deus cremos? A qual Deus nos dirigimos? De qual Deus falamos?" Ao refletir sobre as próprias perguntas, o professor da Pontifícia Universidade Gregoriana enxerga na crise atual uma oportunidade para um novo relacionamento da humanidade com Deus. "Pois bem: a crise põe Deus em crise, para que possamos encontrá-lo de uma forma totalmente nova. A primeira coisa a fazer, então, é precisamente esta: libertar-nos de um falso Deus para nos abrirmos ao verdadeiro rosto de Deus que Jesus nos revela", disse em artigo publicado no sítio AlzogliOcchiversoilCielo, reproduzido na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

 

 

Francesco Cosentino, doutor em Teologia Fundamental pela Pontifícia Universidade Gregoriana e autor da tese "Para além da morte de Deus: Cristianismo, imaginação, imagens de Deus. Para uma resposta teológica ao ateísmo contemporâneo”, é um dos conferencistas do "XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição", que está sendo realizado virtualmente desde o mês passado. Na próxima segunda-feira, 12/07/2021, às 14h, ele ministrará a conferência intitulada "O declínio do cristianismo: possibilidade de um novo começo para a fé cristã?", que será transmitida na página do IHU, no canal do IHU no YouTube e também nas redes sociais.

 

Prof. Dr. Francesco Cosentino. Foto: Dongi

 

Assim como outros intelectuais, Cosentino tem participado do debate público sobre a crise do cristianismo, tentando compreender quais fenômenos contribuem para esse processo, e sugerindo caminhos para superá-la. No início deste ano, ao comentar o artigo do historiador italiano, jornalista e professor do Instituto Italiano de Ciências Humanas de Florença - SUM, Ernesto Galli Della Loggia, sobre a atual crise do cristianismo e o silêncio da Igreja e do próprio Papa Francisco acerca da questão, ele deu seu parecer sobre as origens do problema, em contraposição à compreensão de outros intelectuais. "Já tratei do tema muitas vezes em minhas pesquisas acadêmicas, tentando trazer à tona as interpretações oferecidas por grandes estudiosos da secularização como Taylor e por alguns dos grandes nomes da teologia do século XX que, na verdade, não estão absolutamente convencidos de que o recuo social e a perda de relevância política da religião cristã coincidem exatamente com uma verdadeira crise de fé e espiritualidade". Apesar da falta de convencimento dos seus interlocutores sobre a origem da crise, Cosentino afirma que "os melhores estudos sobre o tema sugerem uma leitura crítico-teológica da crise atual, interpretando-a como um 'sinal dos tempos' para a redescoberta da fé autêntica: abandonar finalmente uma religiosidade reduzida a uma moldura cultural e ética, para se abrir a um verdadeiro encontro com Cristo e com o seu Evangelho".

 

A reflexão sobre a crise do cristianismo, sublinha, não pode ficar restrita a pressupostos que "fiquem aprisionados em uma leitura sociopolítica, ditada por um olhar 'externo', que se detém na aparência do fenômeno sem interpretá-lo teologicamente". Ao analisar a crise exclusivamente a partir desses pressupostos, adverte, "dá-se um valor absoluto ao resultado das pesquisas sociológicas sobre a perda da presença do cristianismo na sociedade e não se apreende as possibilidades inéditas que, justamente assim, se abrem para o renascimento da fé; de fato, enquanto uma certa forma de ser cristão está no ocaso (il tramonto) (J.M.R. Tillard) e um específico catolicismo convencional entra em declínio (A. Staglianò), abre-se um espaço sem precedentes para que a fé renasça de forma renovada e qualitativamente diferente".

 

 

Ele lembra que o período mais frutífero do cristianismo na história da humanidade foi também aquele em que o ambiente era mais adverso, mas que possivelmente se tinha maior clareza sobre o sentido da evangelização. "A época mais afortunada em toda a história do Evangelho - diz Dianich - foi a dos Apóstolos, que anunciaram o Evangelho em um contexto totalmente hostil e não se preocuparam em evangelizar uma cultura genérica ou modificar a ordem social e as instituições políticas, mas, isso sim, depositar a semente da Palavra no coração das pessoas, na convicção de que ela germinaria e geraria pessoas de fé para mudar também a sociedade", pontua.

 

Cosentino insiste em analisar o atual momento do cristianismo em comparação com o período de evangelização dos primeiros cristãos. É por essa via que ele responde também às indagações do economista e jornalista Pier Giorgio Gawronski sobre a secularização europeia e seus efeitos sobre o cristianismo e as igrejas cristãs. "Nem mesmo a sociedade em que os apóstolos atuavam era cristã, mas aquela foi a melhor época de evangelização. Aquilo sobre o que devemos nos deter, antes, diz respeito às condições da possibilidade do crer, isto é, aquela disposição interior de partida com a qual nos colocamos diante da proposta de fé. Para colocá-lo em uma parábola evangélica: o terreno onde é semeada a semente do Evangelho, que pode estar, mesmo antes da semeadura, 'disponível' ou pedregoso e espinhoso. Hoje esse terreno passa pelo que o teólogo alemão Metz chamou de secularização da consciência, ou seja, a superficialidade das visões da vida, a compulsividade do consumismo, a insatisfação perene causada por uma vida fragmentada, a aceleração impetuosa de nossos ritmos de vida, o critério da mercadoria de troca que já esvaziou o homem de sonhos, desejos e esperanças", argumenta.

 

 

No artigo intitulado "Igreja: além do vírus do hábito", publicado no sítio Settimana News, o teólogo destacou o contentamento de muitos com "os produtos" que o "supermercado do consumismo religioso" oferece, mas que paralisam a nossa alma. "Existe uma doença da alma que paralisa mais do que qualquer erro ou pecado". Segundo ele, "o Papa Francisco a denunciou muitas vezes, referindo-se a uma longa tradição espiritual que remonta aos Padres da Igreja, que a chamam de acídia ou preguiça: um inimigo invisível, uma névoa da alma, um estado de pessimismo interior, um pântano em que nada se move, enquanto se lamenta de tudo".

 

Não é fácil curar a alma, admite, "mas há uma grande lição do Evangelho que a Igreja hoje deve voltar a escutar: no centro da experiência cristã e no seguimento de Jesus, está o convite à conversão, isto é, à mudança. Trata-se da descoberta de um novo modo de ver, de um novo mundo de significados, de uma nova modalidade de viver a vida e a fé". O propósito da pregação de Jesus, insiste, "não é fazer com que as pessoas se sintam culpadas diante de Deus e lhes indicar como ser bons e perfeitos, mas sim o de suscitar um novo modo de viver a própria existência. Ele conta histórias e realiza curas para indicar a cada um de nós como a nossa vida poderia ser diferente, nova, transformada e desperta. E diz a Nicodemos e a cada um de nós que a mudança é o mais difícil para o ser humano, mas, se te deixares transformar, renascerás de novo e receberás olhos novos".

 

 

Em seu livro "Quando finisce la notte – Credere dopo la crisi" (EDB 2021) - Quando a noite termina - Acreditar depois da crise, em tradução livre - o teólogo reflete sobre a crise do cristianismo à luz da pandemia de Covid-19 e questiona: "Como é possível acreditar durante e além a crise?", “Que outra forma de Cristianismo e de Igreja pode ter início? Trata-se realmente de um começo ou, ao contrário, é uma efetiva reconciliação com os horizontes do Concílio Vaticano II que, sob o impulso propulsor da conversão pastoral desejada pelo Papa Francisco, poderia finalmente se concretizar?” (p. 35).

 

Quando finisce la notte – Credere dopo la crisi (Foto: Divulgação/Amazon)

 

Segundo Andrea Lebra, leigo católico italiano, que resenhou o livro em artigo publicado no sítio Settimana News, reproduzido pelo IHU, "a crise provocada pela pandemia é uma oportunidade para nos libertar definitivamente de toda falsa imagem de Deus e olhar para Jesus que, diante da dor dos homens e das mulheres, se aproximou deles com compaixão, chorou suas lágrimas, ficou indignado pelo mal, levantou quem estava caído no chão e curou quem estava doente. Revelando-nos assim apenas uma face de Deus: o Deus de amor que cuida de nós e deseja a nossa total libertação e felicidade".

 

 

XX Simpósio Internacional IHU - A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transformação

 

O XX Simpósio Internacional IHU iniciou em 04 de junho e terá palestras mensais ao longo do ano de 2021, de forma virtual e gratuita. Todas as atividades serão transmitidas com a opção bilíngue pela plataforma Zoom, e em português pelo canal IHU Comunica do Youtube, e nas páginas do IHU no Facebook e no Twitter. Para garantir certificação de participação, é necessário realizar inscrição neste link e acompanhar as informações para o registro de presença nos chats das atividades.

 

Para acompanhar todo o conteúdo do Simpósio e dos demais eventos do IHU, acione as notificações das publicações das nossas redes e assine a newsletter.

 

A coordenação do Simpósio também está recebendo artigos para a apresentação de comunicações no dia 22 de outubro. Os trabalhos podem ser enviados até dia 20 de setembro. Informações sobre o processo estão disponíveis aqui.

 

Conferências anteriores 

 

Para assistir à palestra de abertura do XX Simpósio Internacional IHU - A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transformação, intitulada "Presença fragmentada. O mal-estar pós-moderno do Cristianismo", ministrada pelo Prof. Dr. Armando Matteo, acesse o vídeo abaixo.

 

 

Em 11 de junho, foi ministrada a conferência "A Igreja e união de pessoas do mesmo sexo: o Responsum e seus impactos pastorais", pelo Prof. Dr. Michael G. Lawler e o Prof. Dr. Todd A. Salzman, que também integram a programação do Simpósio. A palestra está disponível no vídeo abaixo. 

 

 

A conferência do Prof. Dr. Charles Taylor, intitulada "Secularização e o papel do cristianismo hoje. Desafios e perspectivas", foi ministrada no dia 17-06-2021, e está disponível a seguir. 

 

 

Também integra a programação do Simpósio a conferência A Igreja e a união de pessoas do mesmo sexo. O Responsum e a possibilidade de novas abordagens, ministrada pelo Prof. Dr. Andrea Grillo em 21 de junho, disponível abaixo. 

 

 

Conheça a seguir um pouco mais da programação e dos próximos palestrantes do evento

 

Todd Salzman

 

Todd Salzman é professor na Creighton University, EUA. Ele tem doutorado em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica. Foi professor na University San Diego. Foi homenageado pelas Nações Unidas e várias organizações não-governamentais (ONGs), em Nova York, em 2001. Autor de diversos livros e artigos científicos, citamos "A pessoa sexual: por uma Antropologia Católica renovada" (Ed. Unisinos, 2008) e, recentemente, pelo IHU, "Amoris Laetitia: aspectos antropológicos e metodológicos e suas implicações para a teologia moral", no Cadernos Teologia Pública, Nº 136.

Prof. Dr. Salzman proferirá a palestra: "O magistério moral da Igreja no contexto do pontificado do Papa Francisco: desafios e perspectivas", na quinta-feira, 19 de agosto de 2021, às 10h.

 


Prof. Dr. Todd Salzman. Foto: Catholic Ethics

Tina Beattie

 

Tina Beattie é professora de Estudos Católicos na Universidade de Roehampton, em Londres, e diretora do Digby Stuart Research Centre for Religion, Society and Human Flourishing. Suas pesquisas versam sobre teologia católica, teologia feminista e teoria psicanalítica. Entre suas publicações, destacamos "Theology after Postmodernity: Divining the Void" (Londres: Oxford University Press, 2013) e "New Catholic Feminism: Theology and Theory" (Londres: Routledge, 2006). Também escreve para The Tablet e The Guardian.

Profa. Dra. Beattie proferirá a palestra: "Mulheres na vida da Igreja. Avanços e obstáculos no Pontificado de Francisco", na quinta-feira, 02 de setembro de 2021, às 10h.

 


Profa. Dra. Tina Beattie. Foto: Site pessoal

 

Felix Wilfred

 

Felix Wilfred é professor emérito da Faculdade de Filosofia e Pensamento Religioso, da Universidade de Madras, Chennai, Índia. É Mestre em Filosofia e Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Urbaniana, de Roma. Foi presidente da Revista Internacional de Teologia Concilium e colaborador da Enciclopédia Católica Nova, Lexikon für Theologie und Kirche, Quaestiones disputatae, ambas publicações alemãs. Além disso, contribui para "Os teólogos modernos" (Cambridge, UK) e "Dicionário do Cristianismo Cambridge", Universidade de Cambridge, Reino Unido.

Prof. Dr. Wilfred proferirá a palestra: "O cristianismo em face das grandes questões do mundo atual. Desafios e Perspectivas", na quinta-feira, 09 de setembro de 2021, às 10h.

 


Prof. Dr. Felix Wilfred. Foto: Misereor

 

Andrea Grillo

 

Andrea Grillo é filósofo e teólogo italiano, leigo, especialista em liturgia e pastoral, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua. Ele é Doutor em teologia pelo Instituto de Liturgia Pastoral, de Pádua. Também é membro da Associação Teológica Italiana e da Associação dos Professores de Liturgia da Itália.

O Prof. Dr. Andrea Grillo proferirá a palestra: "A crise do cristianismo e o futuro da fé cristã. Desafios e possibilidades para a teologia hoje", na quinta-feira, 07 de outubro de 2021, às 10h.

 


Prof. Dr. Andrea Grillo. Foto: Breviarium

 

Anne-Marie Pelletier

 

Anne-Marie Pelletier é licenciada em literatura moderna e possui doutorado em Estudos da Religião. É professora emérita da Université Paris-Est-Marne-la-Vallée. Suas publicações se concentram na hermenêutica bíblica ("D’âge en âge, les Écritures", Lessius, 2004) e na antropologia ("Questions éthiques et sagesse biblique", 2018). Há vários anos, ela também busca uma reflexão sobre o feminino sob o prisma da revelação bíblica ("Le christianisme et les femmes", 2001 ; "Le signe de la femme", 2006 ; "L’Église, des femmes avec des hommes, à paraître au Cerf en septembre", 2019).

A Profa. Dra. Anne-Marie Pelletier proferirá a palestra: "A crise do cristianismo hoje. Uma abordagem na perspectiva das mulheres", na quarta-feira, 13 de outubro de 2021, às 10h.

 


Profa. Dra. Anne-Marie Pelletier. Foto: Site pessoal

 

Alec Ryrie

 

Alec Ryrie é pastor anglicano, professor visitante de História da Religião do Gresham College, Inglaterra. Ele é Bacharel em História pela Cambridge University, Mestre em Estudos da Reforma pela University of St. Andrews e Doutor em Teologia pelo St. Cross College, de Oxford, Inglaterra. Sua tese foi publicada em formato de livro com o título "The Gospel and Henry VIII". Ele é presidente da Sociedade de História Eclesiástica, editor do The Jorunal of Ecclesiastical History. É autor dos livros "Private and Domestic Devotion in Early Modern Britain" (Ed. Routledge, 2016), "Unbelievers: An Emotional History of Doubt” (Ed. Harvard University, 2019)

O Prof. Dr. Ryrie proferirá a palestra: "Valores cristãos, valores seculares e por que eles precisarão uns dos outros na década de 2020", na terça-feira, 09 de novembro de 2021, às 10h


Prof. Dr. Alec Ryrie. Foto: Gresham College | Flickr CC

 

 

XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição

 

 

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