20 Janeiro 2021
"Se o propósito do cristianismo e de seu estar no mundo está escrito no Evangelho e suas conotações estruturais atuais não estão nele (hierarquia, direito canônico, concordatas), a questão é: hoje o cristianismo com que estrutura quer estar na história nas realidades do norte da Europa onde, como diz Galli, as igrejas são vendidas pelas dioceses por falta de fiéis e onde as igrejas, com suas estruturas históricas imutáveis, vivem em uma contradição contínua entre pregação e vida, reflexão teológica e testemunho?", perguntam Maurizio Portulari a Antonio Greco, em artigo publicado por manifesto4ottobre, 18-01-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Essa intervenção de Maurizio Portaluri e Antonio Greco foi publicada no Quotidiano di Puglia em 18.01.2020 ("O futuro da Igreja entre Evangelho e Hierarquia") de uma forma mais breve do que aquela relatada abaixo e faz algumas considerações à margem do debate sobre Corriere della Sera entre o prof. Ernesto Galli della Loggia e o bispo Bruno Forte sobre a "política" de Bergoglio e o futuro do cristianismo no Ocidente.
A intervenção de Galli della Loggia sobre vários aspectos da "política" de Bergoglio e as diversas respostas a partir daquela do bispo Bruno Forte, também no Corriere della Sera, representam um excelente material para uma reflexão sobre o grau de consciência do estado de saúde do "cristianismo” no Ocidente. Enquanto isso, notamos que o debate não foi enriquecido com vozes "laicas" além daquela do promotor. Deve-se notar também que o debate foi todo masculino. Não há voz feminina conhecida sobre a intervenção de Galli della Loggia. Suspeita-se que o destino do "cristianismo" pouco interessa às intelectuais e aos intelectuais italianos. Os participantes foram principalmente teólogos acadêmicos.
Uma primeira consideração diz respeito ao que se entende por "cristianismo". A impressão que se tem da leitura das várias intervenções é que estava se desenrolando um diálogo entre diferentes idiomas: para Galli della Loggia entende-se aquela que comumente se encontra sob a expressão de "religião civil", onde "cristianismo" assume o valor de identidade histórico-cultural de um povo e de uma nação.
Uma resposta a essa interpretação veio de alguns teólogos que saudaram o fim da "religião civil" como um evento vivificante para a fé cristã, que teria assim a possibilidade de se expressar em sua autenticidade evangélica.
Esse chamamento à autenticidade evangélica, a um cristianismo não corrompido por preocupações seculares não é convincente e aparece apenas retórico e/ou apologético por duas razões: não leva em consideração o dado estrutural (aliás, no debate é cuidadosamente evitado, talvez por ser muito incômodo) em que essa religião civil se baseia - a estrutura hierárquica do catolicismo e suas raízes histórico-milenares. Não se pode esquecer que mesmo a "religião civil" foi uma modalidade de presença dos cristãos na sociedade (até poucos anos atrás a discussão, mesmo dramática, no catolicismo italiano era se continuar ou não o colateralismo com um partido político!) e ainda o é na Itália e no sul da Europa e América do Sul.
Se o propósito do cristianismo e de seu estar no mundo está escrito no Evangelho e suas conotações estruturais atuais não estão nele (hierarquia, direito canônico, concordatas), a questão é: hoje o cristianismo com que estrutura quer estar na história nas realidades do norte da Europa onde, como diz Galli, as igrejas são vendidas pelas dioceses por falta de fiéis e onde as igrejas, com suas estruturas históricas imutáveis, vivem em uma contradição contínua entre pregação e vida, reflexão teológica e testemunho? Há quem, como o teólogo católico José Maria Castillo, defenda - inclusive - que “o Evangelho não pode ser reduzido a ‘religião’ e que a religião, que representa Deus como lhe convém, é incompatível com o Evangelho”.
Galli della Loggia se pergunta se Bergoglio acredita que o futuro do cristianismo possa estar entre "a plebe pobre do sul do mundo". É inegável que o Papa Francisco traz consigo a experiência religiosa da América Latina. Mas é de se excluir que pense numa mitificação dos pobres do sul do mundo prontos a acolher, devido a um suposto estado de incontaminação pela cultura consumista ocidental, a mensagem cristã: mesmo aí, o interesse e o medo desempenham o seu papel na adesão ao cristianismo de homens e mulheres com uma tradição religiosa e espiritual tão distante daquela ocidental. E o clericalismo também está vivo aí.
Ao mesmo tempo, as respostas do bispo Bruno Forte não são convincentes, segundo o qual o “fim da cristandade” permitirá “a valorização da experiência espiritual e evangélica do cristianismo”. Forte também se consola com os jovens que se fazem "perguntas exigentes sobre o sentido da vida". As teses de Forte parecem decepcionantes: as perguntas de sentido, muito minoritárias quando existem, não coincidem com o interesse por Jesus de Nazaré pela enorme distância entre a cultura religiosa e a cultura da sociedade contemporânea com seu diferente conhecimento dos fenômenos naturais e cósmicos em comparação com a sociedade na qual o cristianismo que conhecemos até agora cresceu e se cristalizou. Esse é um novo desafio com resultados imprevisíveis, porque muito dependerá das respostas que as religiões e o cristianismo darão ao homem moderno. Nem o questionamento dos jovens sobre o sentido da vida, talvez, garantirá ao cristianismo uma extensão de sua sobrevivência, já que várias filosofias laicas e religiosas também podem servir para tal propósito.
O conúbio que se consolidou entre religião e violência, além disso, não ajuda a pensar em uma paligênese da religião, nem no Ocidente nem no Oriente. Em breve e significativamente, Bergoglio irá ao Iraque onde, com a Guerra do Golfo, instaurou-se uma grave contradição entre a prática das nações cristãs e a mensagem evangélica. Às vésperas dessa guerra, Dossetti escreveu profeticamente do Oriente Médio onde estava: “Aqui a Igreja vai desaparecer” (Regno Attualità 15 de outubro de 1990). Além disso, a localização histórica do nascimento dessas igrejas em épocas tão distantes da contemporânea, caracterizada pela aceleração das mudanças e pela rápida aquisição de conhecimentos, torna surpreendente a duração de sua estrutura institucional e doutrinária até os nossos dias. Na verdade, podemos ver uma razão para essa resistência nos regimes concordatários que permitem a sobrevivência de estruturas religiosas em quase todos os países do mundo e que cristalizam uma religião sem fé e um cristianismo sem Cristo.
Outro evento que deixará claro o que acontecerá com a religião civil no Ocidente é representado pelo sínodo da Igreja Católica alemã em andamento: em jogo está muito da doutrina e da prática do catolicismo discutido por Galli della Loggia. Seus resultados temidos e seus efeitos esperados, altamente inovadores no plano estrutural da atual religião católica, já se colocam em contraste com o Código de Direito Canônico. O Código de Direito Canônico, promulgado em 1917 e revisado em 1983, instituído por exigências de ordem e de justiça na instituição eclesiástica, parece, em vez disso, ser usado para reprimir os contrastes e as dissonâncias, não apenas aqueles comportamentais, mas também aqueles que são inovadores e de indagação teológica, para favorecer as uniformidades que desresponsabilizam e para aplainar as diferenças.
A profecia de Ernesto Balducci parece encontrar confirmação na evolução do fenômeno religioso que estamos testemunhando. Como escreveu um dos seus biógrafos mais empenhados, Luciano Martini, no início deste século: “Ele já tinha chegado à convicção de que a figura histórica do catolicismo devia morrer em certo sentido, para poder se regenerar em profundidade, juntamente com a regeneração mais global e necessária que agora se impõe a toda a civilização ocidental” e sobre o chamamento ao Evangelho, que nessa desorientação continua sendo, como também para nós, o farol de referência, acrescenta que“ continua a ter um papel dominante, porém mais como fonte de inspiração do que como fonte de conteúdos determinantes, que Balducci busca através de critérios de análise racional da sociedade e das transformações históricas, e das tensões utópicas que nelas se manifestam”. (Laicità nella profezia. Cultura e fede em Ernesto Balducci. 2002).
Por fim, uma referência à "responsabilidade" pela falta de renovações institucionais denunciada por Galli della Loggia. O historiador Menozzi tentou demonstrar que a situação atual é resultado das "freadas" feita pelos papas que se seguiram ao Concílio.
Quase 60 anos se passaram desde que na Encíclica Pacem in terris (1963) o Papa João XXIII indicou "a condição dos trabalhadores e da mulher, o processo de descolonização e o drama do poder atômico como sinais aos quais se deve prestar atenção". É inegável que o Papa Francisco iniciou processos de mudança necessários para um cristianismo atento àqueles "sinais dos tempos" para os quais o Vaticano II foi convocado em 1959. Mas sua atenção também vai para a unidade da Igreja. Ele deve ser ajudado e apoiado neste imenso duplo esforço. Como leigos, porém, temos a impressão de que a Cúria Romana, muitos cardeais e bispos, teólogos, intelectuais e católicos praticantes, não estão dispostos a aceitar a ideia de que a Igreja, comunidade de discípulos de Cristo empenhados com a construção do reino de Deus, não precisa da hierarquia.
Mas discutir isso não faz mal.
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Uma sobrevivência do cristianismo: à margem de um debate - Instituto Humanitas Unisinos - IHU