A Europa cristã necessita do cristianismo para sobreviver? Esta pergunta poderia parecer estranha para uma cultura religiosa que por um tempo se estendia da Grã Bretanha ao Bósforo, uma cultura nascida de uma fé profunda e amplamente difusa que inspirou a construção de grandes catedrais e mosteiros e os lotou de crentes por diversos séculos.
A reportagem é de de
David Gibsoni e publicada pelo jornal
The Huffington Post, 13-08-2011.
Mas, quando um extremista de direita,
Anders Breivik, matou no mês passado na Noruega bem 77 pessoas com uma terrível fúria homicida, isso evidenciou um desenvolvimento do romance da história do Ocidente: uma aliança in nuce entre crentes e não crentes para promover uma renovada identidade cristã da Europa.
“O cristianismo europeu e a cruz serão o símbolo sob o qual todos aqueles que pretendem preservar as nossas tradições culturais poderão unir-se para garantir a nossa defesa comum”, havia escrito
Breivik em seu delirante manifesto de 1.500 páginas. “A cruz deveria servir de símbolo que une todos os europeus, sejam eles ateus ou agnósticos”.
Se
Breivik pode ser considerado um cristão em boa fé, dada sua ausência de uma “relação pessoal com Jesus Cristo e Deus”, como escreveu ele próprio, será argumento de muitas discussões. Não existe, todavia, nenhuma dúvida que ele seja um crente devoto no interior de um “cristianismo entendido como plataforma de identidade cultural, social e moral”.
Na realidade, esta tem sido precisamente a realidade para um número indefinido de não crentes por mais de uma década.
Um exemplo importante foi a jornalista italiana
Oriana Fallaci, que transcorreu os seus últimos anos antes da morte, ocorrida em 2006, a invectivar contra a imigração islâmica que, ao seu ver, estava transformando o continente naquilo que ela chamava “Eurásia” [Eurábia?].
Fallaci gostava de definir a si mesma como uma “atéia cristã” – um conceito interessante – porque considerava que o cristianismo teria fornecido à Europa uma espécie de baluarte cultural e intelectual contra o Islã.
Existe também um historiador escocês, politicamente conservador,
Niall Ferguson, que se define “um incurável ateu”, mas é também um expoente de primeiro plano em invocar a restauração da cristandade porque, como afirma, não seria suficiente a “resistência religiosa” do Ocidente nos confrontos com o Islã radical. (
Ferguson dedicou seu último livro,
Civilization: the West and the rest (Civilização: O Ocidente e o resto do mundo), à sua nova parceira,
Ayaan Hirsi Ali, nascida na Somália e agora atéia holandesa, que está promovendo os valores do cristianismo em relação àqueles do seu mundo de nascimento, o Islã.
A moderna cruzada pela cristandade da parte dos não crentes tende a encontrar as próprias raízes no temor nos confrontos com a imigração muçulmana, mas também seria alimentada pelas preocupações pela deterioração da cultura européia e, em fim de contas, também pela nostalgia de um longo período de tempo durante o qual o nosso velho continente estava no centro dos negócios mundiais.
Para alguns ateus, manter a identidade européia seria um motivo suficiente para pôr de parte a longa inimizade entre eles e as igrejas e os crentes, que ainda remonta ao secularismo da época das Luzes e ao anticlericalismo da Revolução francesa.
E, diversamente dos Estados Unidos – onde as disputas entre ateus e crentes são ásperas e persistentes – na Europa os não crentes conservadores tem encontrado aliados prontos, adequados, em alguns líderes religiosos do continente, em particular no papa Bento XVI.
Já antes de ser eleito papa, em abril de 2005, o cardeal
Joseph Ratzinger estava promovendo o esforço do Vaticano, aliás, sem sucesso, de ver reconhecida a identidade cristã do continente no interior da nova constituição da União européia. Também havia rejeitado a idéia de permitir à Turquia muçulmana o ingresso na União européia. “A Europa é um continente unido do ponto de vista cultural”, havia dito a uma revista francesa, “não somente uma entidade geográfica”. Como Papa,
Bento XVI havia acabado por abrandar sua oposição ao ingresso da Turquia na UE, mas continuou a insistir que a cultura européia cristã deva ser salvaguardada, não obstante o fato de a fé religiosa entre os europeus se encontrar agora diminuída.
Em agosto de 2005, poucos meses após sua eleição ao sólio pontifício,
Bento XVI havia encontrado secretamente
Fallaci, e, com a notícia, os muçulmanos ficaram agitados. Mas, os muçulmanos ficaram ainda mais ressentidos por ocasião do controvertido discurso do pontífice, um ano depois, em
Regensburg, na Alemanha, quando ele havia descrito o Islã como inclinado à violência e alheio à Europa cristã.
“As tentativas de islamização do Ocidente não podem ser negados”, havia declarado numa entrevista de 2007 o mais estreito colaborador de Bento XVI, monsenhor
Georg Gänswein. “E o perigo consequente pela identidade da Europa não pode ser ignorado em nome de um presumido sentimento de respeito”.
“A parte católica vê claramente como estão as coisas”, acrescentou, “ e diz que ainda é demasiado”.
Mas também alguns ateus se dão conta disto, e são igualmente felizes em afirmá-lo.
Um dos defensores mais importantes da cristandade na vertente atéia é o filósofo e político italiano
Marcello Pera. Em 2004 ele manteve uma série de conferências com o então cardeal Ratzinger sobre sua visão comum da necessidade de restaurar a identidade cristã na Europa para combater tanto o Islã como a degeneração moral.
Mais tarde,
Bento XVI escreveu o prefácio para o livro de
Pera, “Porque devemos dizer-nos cristãos”, que promove a tese de
Bento XVI que a civilização ocidental poderá ser salva contanto que se viva “como se Deus existisse”, embora alguém seja crente ou não.
Não se trata, de fato, de um argumento novo: já no século XVII, o filósofo francês Blaise Pascal havia declarado que mesmo que a existência de Deus não possa ser provada, a gente deveria agir como se Deus existisse porque em todo o caso não se teria nada a perder, mas somente tudo a ganhar.
Mas, a versão atualizada parece ser vencedora em algumas circunstâncias. Numa sentença histórica de março passado, a Corte européia dos direitos do homem estabeleceu que a Itália poderia continuar a expor o crucifixo nas salas de aula das escolas públicas, porque a cruz de Jesus representaria um símbolo “histórico e cultural”, antes do que religioso.
Enquanto o Vaticano acolheu com favor tal decisão, outros se interrogam se o custo não teria sido demasiado alto: praticamente, o esvaziamento do seu significado religioso com a finalidade de preservar seu significado cultural.
E um recipiente vazio, não importa o quanto seja atraente do lado de fora, já que pode depois ser preenchido com toda espécie de crenças...
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Uma Europa cristã sem cristianismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU