“A reforma da Cúria não vai sair 29 de junho, mas será ainda neste ano”. Entrevista com o cardeal Óscar Maradiaga

Papa Francisco reunido com a Cúria Romana, em 2019 | Foto: Vatican Media

12 Junho 2021

 

“Quando o Papa decidiu não morar no Palácio Apostólico, essa foi a primeira grande reforma. E muita gente pensa, mas que reforma será essa? É enorme. Porque quando o Papa vivia no Palácio Apostólico, o único que dizia quem entra e quem não entra era o prefeito da Casa Pontifícia. Sempre, a Casa Pontifícia era que mandava. Depois pensou outras reformas como a missa diária na Casa Santa Marta e com o Povo de Deus. Os primeiros que convidou à missa foram os jardineiros que nunca haviam visto o Papa. E uma das coisas que nos tocou foi reformar a Constituição da Cúria Vaticana. A reforma é, no fundo, uma mudança total de mentalidade”, afirma o cardeal hondurenho Óscar Maradiaga, um dos conselheiros do Papa Francisco.

Óscar Rodríguez Maradiaga, cardeal hondurenho e arcebispo de Tegucigalpa, religioso salesiano, é um pastor, líder eclesial e um reconhecido intelectual da Igreja latino-americana. É doutor em Teologia e doutor honoris causa da Pontifícia Universidade Católica do Peru. Possui estudos avançados de psicologia clínica, psicoterapia, música sacra e eclesiologia, entre outras disciplinas. Ademais, domina cinco idiomas.

Foi ordenado padre em 1970, e bispo em 1978. Em 2001 foi criado cardeal pelo Papa João Paulo II. É o primeiro hondurenho em obter essa dignidade.

Foi presidente da Cáritas (2007-2015) e do Celam (1995-1999). Foi reconhecido por sua luta contra o narcotráfico e a corrupção. Também por seu compromisso com os direitos humanos. No Vaticano ocupou diversos cargos. Desde 2013, sua criação, é coordenador do Conselho de Cardeais, mais conhecido como o “Grupo dos Sete”. Preside, ademais, o Conselho Diretor da Assembleia Eclesial da América Latina e Caribe.

Sua ampla trajetória pastoral o faz ser um grande conhecedor da Igreja latino-americana e da vida vaticana. Isso permite-lhe opinar sobre o acontecer eclesiástico de um modo informado e profundo.

A entrevista é de Aníbal Pastor, publicada por Religión Digital, 10-06-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis a entrevista.

 

Como nasce a ideia da Assembleia Eclesial?

A origem da proposta foi na assembleia ordinária do CELAM, que houve em Tegucigalpa (Honduras), no ano de 2019. Entre as propostas que fizeram os participantes, estava a reforma do CELAM e a necessidade de fazer a Sexta Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, pois pensava que a cada dez anos se vinha fazendo essa Conferência. E a nova direção do CELAM, quando se apresentou ao Papa, fez-lhe a proposta. O Papa de imediato disse que não, porque os tempos ainda não estavam maduros e porque há muitas questões pendentes desde Aparecida.

 

Por sua proximidade com o Papa, você sabe o que ele estava pensando?

Ele estava pensando que as propostas básicas de Aparecida, a Igreja Missionária e a Missão Continental, não haviam sido implementadas o suficiente. Na realidade, foi quase sempre assim. Estes documentos tão importantes da Igreja, muitas vezes ficam somente como material de biblioteca. De fato, no ano passado foi feito um estudo e Aparecida já não estava nas livrarias.

Ademais, muitos dos novos bispos nomeados, desde 2007 até este ano chegam sem conhecer nada das conclusões desse encontro. E por isso o Papa disse: “pensem outra coisa”. Nisso saiu da Assembleia Eclesial, precisamente inspirada na reforma que se está fazendo do CELAM. Também surgiu o tema da sinodalidade, que é uma das linhas de força do pontificado do Papa Francisco.

 

Atualização eclesiológica

 

A que modelo eclesiológico respondem essas linhas?

É sempre a eclesiologia do Vaticano II, o Povo de Deus, que não é simplesmente a hierarquia, mas sim que esta é parte do Povo de Deus. Se vemos Lumen Gentium, o primeiro capítulo é o mistério da Igreja e o segundo não é a hierarquia, mas sim o Povo de Deus. Já não é só uma Conferência de Bispos, mas sim uma Assembleia Eclesial, ou seja, entram bispos, padres, religiosos e religiosas, leigos e leigas. É a primeira vez que se faz algo como isto. E certamente é algo inédito, porém está dentro da eclesiologia do Vaticano II.

 

Nesse sentido, o Sínodo da Amazônia foi uma experiência piloto?

Claro que sim. Este encontro abriu os olhos de muitos irmãos bispos, que diziam: “caramba, estávamos nos privando”. Bem, um dos pontos foi a enorme sondagem que se fez. A escuta foi verdadeiramente importante, porque nunca em nenhum sínodo houve uma escuta tão grande como a que houve neste. Foi o resultado do grande trabalho dos leigos. De tal maneira que agora, para esta Assembleia que se está preparando, se está trabalhando fortemente nesta escuta.

 

Sinodalidade

 

Parece que vês mais ação sinodal e esperança no laicato que nos bispos. Os bispos não aceitam suficientemente esta ideia?

Bom, é que se necessita uma conversão para a sinodalidade. Isso é uma das questões que se está trabalhando. E como você muito bem disse, muitos bispos e muitos padres não entram na sinodalidade porque é mais cômodo estar dizendo: “aqui mando eu”. Porém, se estamos em meio a vocês, tenho que os escutar, adotar decisões que sejam de comunhão e não, simplesmente, aqui eu mando e decido. Esse ponto é um passo adiante e por isso custa a alguns. Outros, por outro lado, estão muito entusiasmados. Reitero, a sinodalidade necessita conversão.

 

Em sua experiência pessoal sobre a sinodalidade, o que foi mais difícil?

Bem, não foi difícil para mim (risos). Porque, desde o início do meu trabalho pastoral, me encontrei em uma igreja com pouquíssimos padres e com grande participação de leigos. De fato, em algumas comunidades não havia sacerdote, mas havia uma grande presença leiga.

Depois do Vaticano II, foi instituído, sem ser oficial, um serviço aos delegados da Palavra de Deus, que são precisamente leigos e leigas, que dirigem as comunidades.

Mesmo em muitas das vilas e cidades remotas, não há missa aos domingos, porque não há padre, mas há celebração da Palavra de Deus, há pregação, há catequese e há comunhão, porque uma grande parte desses delegados são ministros extraordinários da comunhão.

Portanto, não foi difícil para mim me converter à sinodalidade.

 

Mas é mais difícil para os padres mais jovens...

Sim. É difícil para os jovens sacerdotes serem sinodais, porque muitos vêm ao sacerdócio acreditando que alcançaram status. Eles vêm, talvez, de comunidades extremamente pobres e chegam ao ministério sacerdotal, porque isso lhes dá um status e lhes dá uma posição social. Além disso, temos em nossos genes, o caciquismo, de nossos indígenas. E há padres que adoram ser mandões.

 

Então a formação sacerdotal está falhando?

Às vezes sim. Muitos acreditam que treinar é encher a cabeça de ideias. E o que acontece é que, hoje, depois das reformas realizadas e da atualização do documento sobre a formação realizada pela Congregação para o Clero, é necessário trabalhar muito na conversão.

 

A novidade

 

Voltando à eclesiologia do Vaticano II, esta Assembleia que se prepara é um ponto de partida ou um ponto de chegada na vida da Igreja latino-americana?

Para nós é um ponto de partida, porque é algo totalmente novo, totalmente inédito, que sem dúvida será replicado, aos poucos. É um trabalho interessante.

Um dos pontos inéditos, também, é que a pandemia e o isolamento não têm impedido o trabalho neste campo e que esta Assembleia pode ser realizada. Parece uma utopia porque vai ser virtual, mas funciona. Desta forma, trabalharemos em torno da eclesiologia do Vaticano II, dando mais ênfase à teologia do povo de Deus.

 

Mulheres na Igreja

 

No que diz respeito às mulheres, parece que a igreja está ficando para trás em relação ao seu empoderamento na sociedade. Como se fortalece a participação e a liderança das mulheres na Igreja?

O Papa nos deu exemplos na Cúria Vaticana. Era quase um mito que você não pudesse, que nenhuma mulher pudesse ter um papel de direção. Bem, você já tem. Por exemplo, em economia, o Papa queria uma mulher como prefeita. Não o pôde fazer porque a candidata, mulher de excelentes qualificações, tinha direito a um determinado salário que a Santa Sé não podia pagar.

O número de mulheres vem crescendo. Em 6 de maio, em uma reunião do Conselho, perguntei como estão os dois economistas indicados pelo Papa. A resposta foi que são profissionais altamente qualificados. Uma das queixas existentes era que o grupo de dez cardeais que permaneceram como conselheiros econômicos não tinha formação em economia. O Santo Padre mudou completamente isso e a equipe que ele tem é altamente qualificada.

O próximo passo é ter mais mulheres nas cúrias diocesanas e nas organizações paroquiais. Aqui, como eu disse, não tivemos grande dificuldade, porque a maior dificuldade tem sido a participação dos homens. Aqui, antes do Concílio, a Igreja estava cheia de mulheres. Agora, em vez disso, existem mulheres e homens. E há mulheres em posições de grande responsabilidade.

Muitas vezes, a discussão entra por outros critérios, entra pelo poder. E essa, então, é uma luta que deve ser continuada, começando por nós, os cardeais, os bispos e os padres. Dentro da Igreja, não podemos raciocinar com os critérios do mundo. E ter um cargo gerencial ou um serviço gerencial não é poder, é servir e é serviço. E isso requer uma conversão bastante profunda. O Papa Francisco foi muito claro sobre isso, quem quer que esteja em um papel diretivo na Igreja deve servir, não comandar.

Agora, a igualdade de gênero é um pouco enganosa, porque em nosso mundo não existe igualdade de gênero, não importa o quanto queiramos. Você vê, qualquer uma das pesquisas modernas, vemos que, nas empresas, nos empregos, nos governos, há sempre mais prevalência de homens do que mulheres. E em alguns países, eles até legislaram para dizer, por exemplo, entre os deputados deve haver 30% de mulheres. Por quê?

São mais competentes, tem que haver mais mulheres que homens. Porém isso da equidade ainda é um discurso que tem que ser encaminhado. E dentro da Igreja não diria eu que vamos atrasados. Enfim... foi um caminho lento, verdade, porém no qual eu creio que se avança bem.

 

Metodologia pastoral

 

A propósito da leitura da realidade que você apontava, que foi um grande problema em Puebla e Santo Domingo, o que contribui o ver-julgar-agir na realidade atual da América Latina?

Eu creio que é nunca nos desconectarmos da realidade social, da justiça, dos direitos humanos. Isto é, os pés sobre a terra. Se nós fazemos reflexões, não são reflexões filosóficas ou teológicas assépticas. Não. É uma reflexão sobre a vida real de nossa gente, com os problemas do nosso povo, com o tempo deles. E esse é o ver, que agora chamamos de escutar, porque eu posso ver desde uma sacada, porém posso escutar dali. Tenho que estar próximo do povo para poder escutar.

Então, escutar, iluminar. O julgar é mais iluminar. Iluminar com a Palavra de Deus, com a teologia. Iluminar isso que estou escutando. Para quê? Para que haja uma ação. O agir sempre está nessa ótica.

 

Reformas

 

Foi divulgado que talvez no próximo 29 de junho, festa de São Pedro e São Paulo, tenhamos novidades a respeito da reforma da Cúria. Você que participa no Conselho dos 7 Cardeais, será assim?

Eu vou lhe dizer com fundamento, não vai ser em 29 de junho, lamentavelmente. Mas creio que será ainda dentro deste ano.

 

E quais novidades virão na reforma da Igreja?

Quando o Papa decidiu não morar no Palácio Apostólico, essa foi a primeira grande reforma. E muita gente pensa, mas que reforma será essa? É enorme. Porque quando o Papa vivia no Palácio Apostólico, o único que dizia quem entra e quem não entra era o prefeito da Casa Pontifícia. Sempre, a Casa Pontifícia era que mandava. Depois pensou outras reformas como a missa diária na Casa Santa Marta e com o Povo de Deus. Os primeiros que convidou à missa foram os jardineiros que nunca haviam visto o Papa. E uma das coisas que nos tocou foi reformar a Constituição da Cúria Vaticana.

A reforma é, no fundo, uma mudança total de mentalidade. Antigamente, a cúria vaticana concebeu como uma ajuda ao Papa. Atualmente, está a serviço do Papa e das conferências episcopais. A isso é o que se resistiu. Resistiu à mudança. Por quê? Olha a pirâmide. O Papa aqui, e aqui no meio, estava a Cúria, e aqui abaixo estávamos todos os bispos das conferências episcopais.

Agora, esse esquema já não está. Aqui está o Papa, aqui estamos os bispos e aqui está a Cúria. Ou seja, já não é um intermédio de poder, entre os bispos e o Papa; é um serviço ao mesmo nível. E isso provocou pranto e ranger de dentes. Outro ponto, simplesmente com o nome. A Constituição se chamará “Pregai o Evangelho” (Praedicate Evangelium). A outra se chamava “Pastor Bom” (Pastor Bonus). Isso não é só uma questão de nome. Até na ordem dos dicastérios há mudança. O primeiro que se põe é o do Evangelho.

 

E a Congregação para a Doutrina da Fé?

De onde vem? Do povo que recebeu o Evangelho.

 

Mas são mais de quinhentos anos...

Sim, sim. E quando lerem a Constituição, dirão: “aqui não há grandes novidades”. Claro que há. Já no preâmbulo se vai encontrar outros critérios. Por exemplo, a inclusão das conferências episcopais. Depois, a união de vários dicastérios para agilizar a gestão e permitir um contato maior com o Papa.

Foi potencializada para que haja menos burocracia. E então, quem trabalha nesses dicastérios? Especialistas. E são os dicastérios muito mais ágeis, como uma ajuda para o governo da Igreja. Porém a reforma não está circunscrita a essa Constituição. Já pedimos a reforma de grande quantidade de cânones do Código de Direito Canônico. E o Papa o fez. Então, agora se necessita reforma completa do Código. Assim que o trabalho continua, não estamos entediados.

 

Impacto na América Latina

 

Senhor Cardeal, você que faz parte do Grupo dos 7 Cardeais e também é latino-americano, que conhece muito bem o nosso continente. Como tudo isso chega à Igreja onde estamos? Onde participamos e podemos fazer parte. Como você pensa essa descida? Você acha que vai demorar muito? Existe uma mudança cultural?

Olha, em primeiro lugar o que temos que fazer é que seja aceito no Vaticano (risos). Começando aí. Mas creio que será mais fácil nas nossas estruturas (na América Latina), através desta Assembleia Eclesial que vamos ter. Creio que isso nos ajudará enormemente para que percebamos que a hierarquia tem um serviço e que a Igreja é principalmente Povo de Deus. Portanto, estamos a serviço do povo de Deus, não estamos a serviço de uma estrutura. A estrutura é para servir.

 

Em outras palavras, poderia acontecer, como na Amazônia, que uma “Conferência Eclesial da América Latina e do Caribe” fosse formada em caráter permanente com a participação de todos os membros do Povo de Deus?

Sim, sim. Já é assim na Amazônia, e o Papa queria isso no CELAM. Em outras palavras, não é CELAM, mas está no CELAM. O projeto do Papa é muito claro. Ele quer uma Igreja servidora e uma Igreja de comunhão, Fratelli Tutti. E é aí que temos que continuar.

 

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