"É fácil entender como a crise possa ser o motor de ação e de escolhas, também porque desestabiliza e prepara novos equilíbrios. Exige - como lembra a raiz etimológica do verbo grego krinō, do qual deriva a palavra crise - aquele típico trabalho de peneiração que limpa o grão de trigo após a colheita".
O comentário é do padre jesuíta Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica, em artigo publicado por il Fatto Quotidiano, 14-01-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Se há uma palavra que resume a situação global que o mundo está vivendo, é "crise". Em seu discurso à Cúria Romana por ocasião da apresentação dos votos de Natal, o Papa Francisco a mencionou 46 vezes. “Este Natal - disse - é o Natal da pandemia, da crise sanitária, da crise econômico-social e até da crise eclesial que cegamente atingiu o mundo inteiro. A crise deixou de ser um lugar-comum dos discursos e do establishment intelectual para se tornar uma realidade compartilhada por todos".
Sim, porque até recentemente "crise" parecia ser a palavra-chave dos discursos de elite capazes de articular a crítica culta à condição atual. A crise costumava referir-se à sua especificação "existencial" que, em vez de torná-la concreta, projetava-a na abstração indefinida. Em 2020, essa crise certamente perdeu todo o caráter abstrato e assumiu a cara do lockdown, da contagem do número de mortos, da economia em queda. No dia 27 de março, em plena pandemia, o Pontífice rezou em uma Praça São Pedro deserta e assim recolheu simbolicamente toda a crise do mundo, revelando-a em um lugar destinado a ser símbolo de presença e unidade.
Foto: Vatican News
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Em seu discurso à Cúria, Francisco quis destacar o significado e a importância de estar em crise. Em primeiro lugar, reconheceu que “a crise é um fenômeno que afeta tudo e a todos. Está presente em todos os lugares e em todos os períodos da história, envolve ideologias, política, economia, tecnologia, ecologia, religião”. Portanto, é uma experiência humana fundamental e é "uma etapa obrigatória na história pessoal e na história social". Não pode ser evitada, e seus efeitos são sempre “uma sensação de trepidação, angústia, desequilíbrio e incerteza nas escolhas a serem feitas”.
É fácil entender como a crise possa ser o motor de ação e de escolhas, também porque desestabiliza e prepara novos equilíbrios. Exige - como lembra a raiz etimológica do verbo grego krinō, do qual deriva a palavra crise - aquele típico trabalho de peneiração que limpa o grão de trigo após a colheita.
A crise nesse sentido cumpre a história, que não se concretiza se não passa por tempos de crise, justamente. Francisco lembra a Bíblia, que está povoada de "personagens em crise", que, no entanto, justamente por meio dela, cumprem a história da salvação: Abraão, Moisés, Elias, João Batista, Paulo de Tarso e o próprio Jesus, especialmente durante as tentações e depois na "indescritível crise do Getsêmani: solidão, medo, angústia, a traição de Judas e o abandono dos apóstolos", até a "crise extrema da cruz". Francisco tem uma visão evangelicamente dialética da história: é como se dissesse que, se não houver crise, não haverá vida. Nesse sentido, a crise evoca esperança. Disso decorre a sua mensagem: em tempos de crise, precisamos ser realistas, e “uma leitura da realidade sem esperança não pode ser chamada de realista. A esperança dá às nossas análises o que muitas vezes nossos olhares míopes são incapazes de perceber”.
Por que é isso? Porque “Deus continua a fazer crescer entre nós as sementes do seu Reino”. Portanto, quem olha para a crise sem o fazer à luz do Evangelho, “limita-se a fazer a autópsia de um cadáver». O tempo de crise é um tempo do Espírito, e o próprio Evangelho nos coloca em crise. Portanto, “diante da experiência da escuridão, da fraqueza, da fragilidade, das contradições, da desorientação”, em um exame mais atento entendemos “que as coisas estão prestes a assumir uma nova forma, resultante exclusivamente da vivência de uma Graça oculta na escuridão".
Francisco distingue claramente a crise do conflito destrutivo. Este é um tema forte da visão do Papa. O conflito, na verdade, “sempre cria um contraste, uma competição, um antagonismo aparentemente sem solução entre sujeitos divididos em amigos para amar e inimigos para combater, com a consequente vitória de uma das partes”. A lógica do conflito sempre busca uma cisão entre as partes opostas. Por exemplo, a Igreja, lida com as categorias de conflito, gera divisões entre "direita" e "esquerda", "progressistas" e "tradicionalistas". Desse modo, fragmenta e polariza. O conflito se endurece e acaba por levar à imposição de “uma lógica uniforme e padronizadora, tão distante da riqueza e da pluralidade que o Espírito doou à sua Igreja”.
Francisco define a Igreja como um "Corpo em crise perene", onde a novidade "brota do antigo e o torna sempre fecundo" sem se contrapor a ele.
Papa Francisco no discurso de Natal à Cúria Romana | Foto: Vatican News
O Papa, portanto, espera a crise em uma passagem muito importante de seu discurso: “Ao nos defendermos da crise, impedimos a obra da graça de Deus que quer se manifestar em nós e através de nós. Portanto, se certo realismo nos mostra nossa história recente apenas como a soma de tentativas nem sempre bem-sucedidas, de escândalos, de quedas, de pecados, de contradições, de curtos-circuitos no testemunho, não devemos nos assustar, nem negar as evidências de tudo o que em nós e em nossas comunidades é afetado pela morte e precisa de conversão. Tudo que há de mal, de contraditório, de fraco e de frágil se manifesta abertamente e nos lembra ainda mais fortemente a necessidade de morrer para um modo de ser, de raciocinar e de agir que não reflete o Evangelho. Só morrendo para uma determinada mentalidade poderemos também dar lugar à novidade que o Espírito suscita constantemente no coração da Igreja”.
A “reforma”, portanto, não responde à lógica do conflito, mas da crise, que implica uma superação, um passo em frente: “Devemos deixar de pensar na reforma da Igreja como um remendo de uma velha roupa, ou como simples elaboração de uma nova Constituição apostólica. A reforma da Igreja é outra coisa”, e é fruto da graça. A crise não se resolve colocando remendos novos em roupas velhas. Portanto, a crise deve ser vivida como um tempo de graça: é movimento, faz parte de um caminho. O conflito, por outro lado, é uma perambulação sem rumo: é permanecer no labirinto, desperdiçando energia. O Pontífice, falando de si mesmo, concluiu seu discurso à Cúria assim: “Por favor, rezem sempre por mim, para que eu tenha a coragem de permanecer em crise”.
Então, a "crise" não será a palavra-chave para entender a vida e a reforma da Igreja que nos espera em 2021? Não será necessário o acolhimento espiritual da crise, sem receios nem tentativas de disfarce, para conferir à Igreja - universal e local - o movimento certo para ser cada vez mais evangélica?