09 Março 2021
Novo atraso na “Praedicate Evangelium”, o pilar da reforma promovida por Francisco. A nova constituição conta com disparidade de critérios na hora de conceber o trabalho dos dicastérios.
A reportagem é de Darío Menor, publicada por Vida Nueva Digital, 05-03-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A quem a Cúria Romana deve servir, ao Papa ou às Igrejas locais? Como pode se tornar um instrumento para facilitar a sinodalidade e não ser um poder na sombra? Os dicastérios são imprescindíveis para que o bispo de Roma exerça seu primado? A nova constituição apostólica, cujo título provisório é Praedicate Evangelium e que está chamada para substituir a Pastor Bonus de João Paulo II, em vigor desde 1988, trata de responder a estas e outras perguntas.
Neste novo texto trabalham, desde o início do pontificado de Jorge Mario Bergoglio, os membros do Conselho de Cardeais, o grupo de purpurados que assessoram Francisco na reforma e no governo da Igreja.
Elaborar a constituição apostólica não está sendo um processo fácil, como mostram os contínuos atrasos nas datas inicialmente previstas para sua aprovação. Embora o cardeal Marcello Semeraro, até outubro passado secretário do Conselho dos Cardeais, tenha apontado em dezembro que o Papa poderia assinar o texto antes da Páscoa, no Vaticano agora se descarta essa data.
Até algumas semanas atrás, acreditava-se que a Praedicate Evangelium seria promulgada antes do próximo verão, mas a pandemia poderia impedir esses planos. O cardeal Óscar Andrés Rodríguez Maradiaga, arcebispo de Tegucigalpa (Honduras), foi infectado pelo coronavírus e hospitalizado entre 03 e 18 de fevereiro, obrigando ao cancelamento da reunião que os membros do Conselho dos Cardeais planejavam realizar naquele mês.
Como todas as consultas anteriores desde o início da pandemia, esta também seria realizada por videoconferência. Ainda não há data para o próximo encontro, mas será difícil realizá-lo antes que ele se recupere totalmente da doença. Maradiaga atua como coordenador do grupo
O Conselho dos Cardeais é composto por 7 membros após a entrada de um novo cardeal em outubro passado: Fridolin Ambongo Besungu, arcebispo de Kinshasa; Pietro Parolin, secretário de Estado; Sean Patrick O'Malley, arcebispo de Boston; Oswald Gracias, arcebispo de Bombaim; Reinhard Marx, arcebispo de Munique; e Giuseppe Bertello, presidente do Governatorato do Estado da Cidade do Vaticano.
Para além dos últimos entraves causados pela pandemia, o principal motivo do atual atraso na aprovação do Praedicate Evangelium advém da disparidade de critérios na hora de conceber como deve ser o trabalho da Cúria Romana, como soube Vida Nueva. Ficará claro que existe para servir todos os bispos da Igreja e não apenas o Papa?
No Conselho dos Cardeais acredita-se que sim, mas em Roma há quem veja a situação de maneira diferente. “A Cúria está a serviço da Igreja universal precisamente porque está a serviço do Papa. Do ponto de vista prático, não seria viável que os dicastérios tivessem de responder aos mais de 5 mil bispos”, justifica um alto funcionário da Santa Sé. “A Cúria é uma estrutura que deriva do exercício do primado do Bispo de Roma e responde a uma exigência prática”, acrescenta.
Será, obviamente, Francisco quem dará a última palavra sobre um texto nascido depois de um longo processo de consulta, que envolveu os episcopados e em que os dicastérios vaticanos conseguiram resolver os aspectos com os quais não estavam satisfeitos. Uma vez que a versão final tenha a aprovação do Conselho de Cardeais e das Igrejas locais e dos ministérios da Santa Sé, Bergoglio planeja fazer uma revisão detalhada de cada um dos artigos do documento com a ajuda de dom Marco Mellino, secretário do grupo de cardeais que assessoram o Pontífice.
Mellino era o braço direito de Semeraro até que, em outubro passado, assumiu o seu lugar no Conselho dos Cardeais, após este ser nomeado prefeito da Congregação para as Causas dos Santos. Doutor em Direito Canônico e com larga experiência neste campo, Mellino trabalhou por mais de uma década na Secretaria de Estado da Santa Sé, o que o torna a pessoa certa para realizar essa última revisão do texto junto com Bergoglio.
“A razão de ser da Cúria Romana é ajudar o Papa a exercer o seu ministério”, diz Eduardo Baura, professor de Direito Canônico da Pontifícia Universidade de Santa Cruz, que não acredita que se deve levantar “em termos dialéticos” a questão de se os dicastérios do Vaticano deveriam estar principalmente a serviço do Pontífice ou das Igrejas locais.
“A Cúria Romana foi criada para ajudar o Papa no exercício do seu ministério. O principal objetivo é cumprir esta missão com lealdade e eficiência. A lealdade implica que a Cúria deve estar ciente de sua razão de ser. Não foi criada para cumprir uma missão autonomamente, não é uma instância entre o Papa e os outros bispos, mas antes uma organização a serviço do ministério petrino”, explica este canonista, alertando que a Cúria deve cumprir o seu trabalho com “sinceridade e competência profissional”, não se limitando, portanto, a “executar cegamente” o que o Pontífice ordena.
“Agora, o ministério do Papa é um serviço à Igreja universal e, portanto, às Igrejas locais. Por outras palavras, a Cúria Romana serve as Igrejas particulares colocando-se ao serviço direto do bispo de Roma,” sublinha Baura, para quem “não se deve esquecer que os dicastérios são sempre dependências do Papa”, não dos pastores de cada diocese.
Também desde o ponto de vista histórico e teológico é inquestionável que a própria existência da Cúria está ligada ao exercício do primado. “É um instrumento de governo utilizado pelo Papa para cumprir sua missão de pastor universal”, comenta o missionário comboniano Fidel González, professor emérito de História da Igreja nas pontifícias universidades Urbaniana e Gregoriana e consultor de vários dicastérios vaticanos.
“Segundo a fé da Igreja Católica, o dogma do primado do Papa consiste na suprema autoridade e poder do bispo de Roma sobre as diversas Igrejas que compõem a Igreja Católica”, explica González, que apresenta a Cúria como um conjunto de organismos administrativos “a serviço do Papa no governo da comunidade eclesial católica”.
Armando Matteo, professor de Teologia na Pontifícia Universidade Urbaniana, encontra uma raiz teológica na Cúria Romana com a tarefa de guia que Cristo encomendou a São Pedro e a seus sucessores. “Jesus desejou que seu Evangelho fosse levado aos confins do mundo, porém não por discípulos que operam de maneira separada. Ao contrário, deu vida a uma comunidade de discípulos que prevê um ministério específico de guia e de coordenação”, diz Matteo, que vê nessas pessoas encarregadas de ajudar Pedro o embrião da Cúria Romana.
Sua função ao longo da história sempre foi “ser um instrumento administrativo que os pontífices possuíam para desenvolver o ministério petrino”, explica González. Desde o início da vida eclesial, os papas foram “consultados ou intervieram em vários assuntos” das Igrejas locais, que apelaram ao Bispo de Roma sobre questões “particularmente difíceis de buscar apoio ou esclarecimento, especialmente em matéria de fé”.
Essas intervenções, que aos poucos se tornaram “mais requeridas e frequentes”, destaca o professor emérito de História da Igreja, levaram ao surgimento de organizações nas quais os papas se apoiavam para administrar a relação com as diferentes comunidades eclesiais espalhadas pelo mundo.
No início eram comissões formadas por cardeais, que nasceram para responder a necessidades específicas e depois desapareceram ou permaneceram como corpos vazios quando os problemas que os causaram passaram. A primeira dessas comissões que foi estabelecida de forma estável foi a Sagrada Congregação da Inquisição, instituída por Paulo III em 1542 e predecessora da atual Congregação para a Doutrina da Fé.
Este ministério tem sido historicamente considerado o mais importante da Cúria, um status que poderia ser perdido com a nova constituição apostólica, cujos últimos esboços colocam a Evangelização como o primeiro dicastério da Santa Sé. Este órgão reuniria agora duas instituições distintas: a Congregação para a Evangelização dos Povos, mais conhecida como Propaganda Fide e encarregada das terras de missão, e o Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, criado em 2010 por Bento XVI como resposta à descristianização dos países ocidentais.
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O último obstáculo para aprovação da constituição apostólica: a Cúria, a serviço do Papa ou da Igreja? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU