25 Março 2021
“Ver o cenário em que os atores tentam privar os países endividados de seus poucos bens, com sistemas de saúde frágeis e com um impacto sanitário e econômico gravíssimo causado pela pandemia, nos remete à metáfora que Martha Nussbaum tão bem problematizou: a repugnância”, escreve Susana Vidal, coordenadora do Programa de Educação Permanente em Bioética e membro da mesa-executiva da Redbioética Unesco, em artigo publicado por Redbioética Unesco, 22-03-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Em vários de seus trabalhos Martha Nussbaum discorreu sobre a relevância que as emoções têm para estabelecer a estrutura axiológica das pessoas, tanto a nível individual, quanto no que se refere às normas que fazem possível a convivência ou justificam o desenho e a aplicação da lei [1]. Um destes sentimentos ao que presta particular atenção é a repugnância, uma percepção frente à qual todos guardamos um alto sentido intuitivo. Vale então trazer aqui esta relação do sentimento de repugnância com a bioética.
A leitura detalhada das condições impostas por alguns dos laboratórios aos países de baixa renda traz esse texto à mente e aos sentidos. Isso excede amplamente o que foi expressado pelo professor Lawrence Gostin, diretor do Instituto O’Neill de Direito Nacional e Mundial da Saúde (Institute for National and Global Health Law), relacionado com a Organização Mundial da Saúde, ao dizer que “estas empresas perderam seu sentido de responsabilidade social e que elas estão atuando de modo não ético” [2].
Difundiu-se extensamente que a produção de vacinas por parte das multinacionais farmacêuticas contou com o amplo financiamento por parte dos países de alta renda desde as primeiras fases da pesquisa clínica. As pesquisas foram financiadas ainda a risco em suas Fases I e II por governos e doadores que investiram bilhões de dólares em projetos para criá-las e testá-las. Segundo a empresa de análise de dados científicos Airfinity [3], os governos proporcionaram 8,6 bilhões de dólares e as organizações sem fins lucrativos outorgaram quase 1,9 bilhão. Somente 3,4 bilhões advêm do próprio investimento das empresas e muitas delas dependem em grande medida do financiamento externo [4].
Esses investimentos não se destinavam apenas a apoiar a pesquisa para uma vacina com celeridade, mas também estabeleceram acordos comerciais (em sua maioria inéditos) nos quais eram incluídos compromissos e prioridades na distribuição das vacinas, caso pudessem em pouco tempo mostrar eficácia e segurança. Por outro lado, e isso não será surpresa para ninguém, também incluiriam aspectos relacionados ao investimento comercial e seus ganhos potenciais no valor das ações da empresa. Vimos quase com espanto como as afirmações sobre a eficácia ou segurança de ambas as vacinas, por chefes de estado ou ministros, estão determinando quedas e subidas na bolsa de valores de cada uma dessas empresas. Isso tem evidenciado que se trata de acordos com implicações econômicas e geopolíticas, além de científicas.
Um exemplo claro desses acordos privados foi a falta de resposta à iniciativa COVAX da Organização Mundial da Saúde (OMS) e seus parceiros [5] que ainda hoje não conseguiu financiamento para oferecer igualdade de acesso aos grupos vulneráveis em todos os países do mundo. Mais do que isso, o Diretor-Geral da OMS, Tedros Adhanon Gebreyesus, denunciou que os países continuam a minar o esforço da COVAX: “Fizemos progressos. Mas esse progresso é frágil. Precisamos acelerar o fornecimento e distribuição de vacinas, e não podemos fazer isso se alguns países continuarem se aproximando dos fabricantes que estão produzindo vacinas das quais depende a COVAX” [6].
Ao iniciar as negociações para a compra de vacinas, os países da América Latina e do Caribe tiveram que enfrentar uma série de condições que eram, sem dúvida, ética e juridicamente controversas. O melhor exemplo foi a lei que a Argentina teve que aprovar (um dos poucos países que divulgou algumas das condições do laboratório da Pfizer) para ter acesso a um acordo comercial com esta empresa. Nele foi garantida a indenização patrimonial para o laboratório e incluídas cláusulas e contratos de confidencialidade. A lei eximiu o laboratório de toda responsabilidade, mesmo que fosse técnica, comercial e legalmente inaceitável (relacionada à fabricação, distribuição, embalagem, atrasos nas entregas e falhas na produção, mas principalmente com os eventos adversos da vacina). Vale lembrar que a Argentina foi um dos centros onde foi realizado parte da fase III do ensaio clínico desta vacina.
Outros acordos semelhantes foram firmados por nove países da América Latina: Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, Equador, México, Panamá, Peru e Uruguai, embora não haja informações detalhadas sobre eles. Recentemente, foram apuradas as condições do contrato com a República Dominicana. O contrato, que se tornou público [7], foi obtido por meio de ação judicial da Knowledge Economy International, organização não governamental norte-americana, no âmbito do direito à liberdade de informação pública e demonstra que a empresa não pagará por nenhuma reclamação sobre erros relacionados à vacina [8]. O país teve que pagar 24 dólares por vacina (duas doses) e chegou a um acordo incluindo a imunidade legal do laboratório.
De acordo com a publicação do Bureau of Investigative Journalism, o anexo ao contrato, assinado em 29 de outubro de 2020, dizia que o governo dominicano "indenizará, defenderá e isentará de responsabilidade a Pfizer, sua parceira BioNTech e suas afiliadas" pelos casos e custas judiciais "que surjam de, estejam relacionados a resultem da vacina, que inclui, entre outros, qualquer estágio de projeto, desenvolvimento, pesquisa, formulação, testes, ensaios clínicos, fabricação, rotulagem, embalagem, transporte, armazenamento, distribuição, marketing, promoção , venda, compra, licenciamento, doação, dispensação, prescrição, administração, fornecimento ou uso da vacina”. Em troca, a República Dominicana terá que pagar custas judiciais e indenizações caso surja algum problema [9].
Isso significa que, nos demais países, muitas das cláusulas foram mantidas em sigilo e não foram submetidas à opinião pública. Nesse sentido, entendem-se os motivos pelos quais a Argentina (e provavelmente o Brasil) não conseguiu fechar um acordo com esta empresa, apesar de ter cedido em quase todos os seus requisitos, como se viu. A Pfizer exigiu, além da lei já aprovada, que o país colocasse como garantia ativos soberanos, como edifícios de embaixadas, terrenos militares e outros, (dos quais os detalhes estão sendo gradualmente conhecidos), para cobrir possíveis custos legais futuros [10] [11].
Agora é compreensível e deveria ser valorizada a rejeição do então ministro da Saúde Gines González García a aceitar tais condições. Ter feito esse acordo seria degradante, com uma das companhias mais ricas do mundo, que coloca no mercado uma vacina que pesquisou também em países pobres, no marco do paradigma da pandemia (excepcionalismo metodológico) com resultados de curto prazo de eficácia e segurança (exepcionalismo ético), financiada em parte pelos países mais ricos do mundo que hoje acumulam 95% das vacinas existentes [12] e fazem esse tipo de exigência. Além de tudo, esta empresa pretende obter benefícios dos países de baixa renda, não somente não pagando por suas responsabilidades, mas também tirando um proveito indevido de governos desesperados por salvar a vida de seus cidadãos.
Todos nós sabemos que hoje a lacuna de desigualdade é algo imoral em termos de justiça global. Em 2019, 26 pessoas tinham a mesma riqueza que metade da humanidade [13]. Mesmo em tempos de pandemia, os lucros de grandes corporações como a Microsoft, Visa ou a farmacêutica Pfizer cresceram entre 30% e 50% desde o início do ano [14].
O relatório da Oxfam esclarece o contexto para a América Latina ao indicar que “desde o início do confinamento, surgiram na região oito novos bilionários, ou seja, um novo bilionário a cada duas semanas, enquanto se estima que até 52 milhões de pessoas ficarão pobres e 40 milhões perderão seus empregos este ano. A riqueza dessa elite de super-bilionários da região cresceu 17% desde meados de março: US$ 48,2 bilhões, o que equivale a 38% do total dos pacotes de estímulo que todos os governos ativaram” [15].
Dado esta realidade, ver o cenário em que os atores tentam privar os países endividados de seus poucos bens, com sistemas de saúde frágeis e com um impacto sanitário e econômico gravíssimo causado pela pandemia, nos remete à metáfora que Nussbaum tão bem problematizou: a repugnância.
Ao longo da história da humanidade, o que hoje entendemos por dignidade humana e igualdade foi construído sobre esses sentimentos morais, a base sobre a qual todo o sistema de direitos humanos é construído. Hoje, mais do que nunca, parece necessário apelar ao sistema internacional de direitos humanos e aos Estados soberanos para governar os destinos humanos e não à voracidade dos mercados insaciáveis, mesmo diante dos 2.662.597 milhões de vítimas 16 das quais devemos lamentar.
Centenas de organizações multilaterais, organizações não-governamentais, agências das Nações Unidas, associações, entre muitos outros, estão clamando por um novo pacto global que mude as regras do jogo impostas pelo sistema de mercado global e isso só pode acontecer no âmbito de um sistema de solidariedade e justiça global liderado pelos estados democráticos do mundo e no cenário das Nações Unidas. Parece que é hora de dar esse passo.
[1] Nussbaum, Martha. El ocultamiento de lo humano, repugnancia, vergüenza y ley. Katz Ed. Bs As, 2006.
[2] The Bureau of Investigative Journalism. Vaccine contract forces a government to pay if Pfizer makes mistakes, 10.03.21. Disponível neste link.
[3] Hooker L, Palumbo D. Vacunas contra el coronoavirus, cuánto dinero pueden ganar realmente las farmacéuticas con la inmunización. BBC News, 15.12.20. Disponível neste link.
[4] Hooker L, Palumbo D. Op Cit
[5] COVAX. Disponível neste link.
[6] ONU News. La OMS pide al Consejo de Seguridad que aborde la exención de propiedad intelectual de las vacunas COVID-19. Disponível neste link.
[7] CAMARA DE DIPUTADOS DE LA REPUBLICA DOMINICANA PRESIDENCIA. Acuerdo sobre el Pliego de Condiciones Vinculantes, suscrito entre el Estado dominicano y Pfizer, Inc. Disponível neste link. (Publicado por la misma fuente The Bureau of Investigative Journalism, Op Cit)
[8] The Bureau of Investigative Journalism. ‘Held to ransom’: Pfizer demands governments gamble with state assets to secure vaccine deal. 23.02.21 Disponível neste link.
[9] The Bureau of Investigative Journalism. Vaccine contract Op Cit.
[10] Make medicines affordable. News. ‘Held to ransom’: Pfizer demands governments gamble with state assets to secure vaccine deal. 28.02.2021. Disponível neste link.
[11] The Bureau of Investigative Journalism. Vaccine contract forces … 10.03.21. Op Cit
[12] Los países son: Estados Unidos, China, Reino Unido, Israel, Emiratos Árabes Unidos, Italia, Rusia, Alemania, España y Canadá.
[13] PNUD. Informe Anual 2019 p19. Disponível neste link.
[14] Oxfam Internacional. ¿Quién paga la cuenta? Gravar la riqueza para enfrentar la crisis de la COVID 19 en América Latina y el Caribe. Oxfam Internacional, Julio 2020. Dispnível neste link. p.5
[15] Oxfam Internacional, Op Cit p.3
[16] Johns Hopkins University. Coronavirus Resource Center.
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Ética e repugnância: negociações sobre vacinas para os países pobres - Instituto Humanitas Unisinos - IHU