10 Março 2021
"O D. Sérgio que eu conheci: um homem sempre para além da Instituição, muito aberto e especialmente simples e cordial. Nem o incômodo Parkinson tirou o sorriso do seu rosto que nos deixa saudade", escreve Egydio Schwade, graduado em Filosofia e Teologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Foi um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário - Cimi e primeiro secretário executivo da entidade.
Faleceu esta semana aos 66 anos de idade, D. Sérgio, Arcebispo emérito de Manaus.
Falei pela primeira vez com D. Sérgio, no final da primeira missa que celebrou, como Arcebispo, aqui na paróquia dos Santos Mártires e N. Sra. Aparecida, a 120 km norte de Manaus. No dia seguinte visitou a família aqui em casa. Dali para frente mais visitas e frequente comunicação via internet. Sempre senti respeito, apoio e carinho, mesmo depois do casamento, da parte de D. Sérgio, como da maioria dos inúmeros padres que visitei país afora, durante minhas andanças pelas populações excluídas. E de modo especial, frente à minha decisão de não pedir a laicização.
D. Sérgio veio há 42 anos para a Prelazia de Cruzeiro do Sul administrada então pela sua Congregação: os padres espiritanos. Cruzeiro do Sul, era, então a circunscrição eclesiástica mais fechada da Amazônia. O seu bispo sequer participava das reuniões da CNBB. Como Secretário do CIMI, tentei em vão fazer o levantamento da situação indígena ali. O bispo afirmava que não tinha índios. E os voluntários da OPAN-Operação Anchieta, hoje, Operação Amazônia Nativa e do CIMI que se apresentaram ao bispo, para fazer um trabalho junto aos índios, antes de qualquer conversa, eram levados pelo próprio ao quartel do Exército, numa clara advertência de que ali Igreja e Exército trabalhavam com a mesma visão “pastoral”.
Quando em 1975 fiz o levantamento das populações indígenas do Alto Purus, na Diocese vizinha de Rio Branco, fui informado pelos índios Kaxinauá e Madiha da existência de aldeias desses povos no Rio Envira, que pertence a Cruzeiro do Sul, paróquia de Feijó. A OPAN fornecia então o maior contingente de vocações para as novas frentes de trabalho indigenista da Igreja e atuava por toda a parte com o CIMI.
Ante o fechamento da Prelazia, para com o CIMI e a OPAN, fiz, com dois jovens, Edna de Souza e Zé Caxias da OPAN, uma caminhada de 7 dias pela floresta, entre o Alto Purus e o rio Envira e comprovamos a existência de diversas aldeias Kaxinawa e Madiha no rio Envira. Todas elas com sua terra invadida pelos projetos do governo. Não conseguimos completar o trabalho.
Por isso, alguns meses depois, Doroti Alice e Giovanni Cantu, da OPAN – se ofereceram ao vigário de Feijó para acompanha-lo numa viagem de desobriga pelo rio Envira. Como o padre era fiel discípulo da linha pastoral do Bispo, os dois se ofereceram como “catequistas”, sem se identificar como membros do CIMI-OPAN. O objetivo foi completar o levantamento dos indígenas no Envira. Na viagem tomaram contato com mais aldeias indígenas.
Numa fazenda, recém-criada, atrás dos incentivos fiscais da Ditadura Militar, encontraram os homens de duas aldeias: uma Madiha e outra Axanika, escravos. Giovanni, se ofereceu ao gerente, amigo do padre, para trabalhar ali como peão “catequista”. Foi atendido e ficou um ano na fazenda, tempo suficiente para convencer os indígenas a voltarem, um por um, para as suas aldeias. Retornados, a OPAN, destinou um membro seu, Kanau que marcou presença permanente em aldeia de índios Axanika, no Alto Envira.
No final daqueles anos 70 veio o Pe. Sérgio Castriani à Prelazia de Cruzeiro do Sul e foi nomeado vigário de Feijó. E a atitude da Igreja mudou no rio Envira. Em sua primeira visita à nossa família aqui, recordou com grande satisfação as conquistas da OPAN e do CIMI em favor daqueles indígenas. Reconheceu que o Anúncio da Boa Nova aconteceu de fato, para aqueles índios, com a presença da OPAN-CIMI: pela conquista da sua terra, retomada da cultura e pela reconquista da sua autodeterminação..
Nomeado em seguida bispo de Tefé, D. Sérgio continuou o seu apoio ao CIMI e OPAN e marcando presença nas assembleias do CIMI.
De uma delas, no Xare, ainda me lembro do seu silencioso e bondoso olhar e sorriso humilde, mas de inteira aprovação, quando com certa dureza, falei que o uso de cálices dourados nas missas, era um escândalo, ante a criminosa exploração de minérios em áreas indígenas e o saque de minérios nas terras de países e de povos indefesos.
Um dia fui convidado pelos padres casados de Manaus e arredores, para orientar-lhes o retiro anual. D. Sérgio veio rezar a missa de encerramento. Trouxe na mão duas estolas. Ao iniciar a missa colocou uma em mim e outra em outro colega padre casado. Um gesto claro, do seu incentivo para que todos os padres casados presentes, concelebrássemos. Gesto atrás do qual com certeza, ele sonhava ver todos os padres casados, integrados, de igual para igual com os padres celibatários, nas atividades pastorais.
Mais recentemente, já bem fragilizado com o sofrimento do Parkinson, foi agraciado com o título de Cidadão Benemérito pela Câmara Municipal de Manaus. Só aceitou a homenagem, se incluíssem mais 12 padres da Arquidiocese, entre os quais a mim que nem morador de Manaus era e há muitos anos “excluído” da Instituição, pelo fato de ser padre casado. E ainda em dezembro passado, veio aqui em Presidente Figueiredo e mandou um convite especial à família para um café na casa paroquial. Na oportunidade todos da família que estivemos na cidade, tomamos com D. Sérgio e com o P. Marquinho, um café alegre, com um delicioso lanche.
Na oportunidade do Sínodo sobre a Amazônia, lhe enviei algumas sugestões sobre mudanças na linha pastoral da Igreja na Amazônia. Ele me respondeu prontamente, agradecendo as sugestões.
Junto uma carta (pode ser lida no final do artigo) que D. Sérgio enviou ao Deputado José Ricardo da Assembleia Legislativa do Amazonas, quando esta me concedeu o título de cidadão amazonense. A carta me emocionou, mostrou o carinho com que ele nos acompanhou desde o seu tempo de vigário em Feijó, antes mesmo de nos conhecer pessoalmente.
Este foi o D. Sérgio que eu conheci: um homem sempre para além da Instituição, muito aberto e especialmente simples e cordial. Nem o incômodo Parkinson tirou o sorriso do seu rosto que nos deixa saudade.
Casa da Cultura do Urubuí, 08 de março de 2021,
Egydio Schwade.
Caro Ricardo
Deputado estadual
Infelizmente não posso estar presente na ocasião em que a Assembleia Legislativa concede o título de cidadão do Amazonas a Egydio Schwade, indigenista e apicultor pesquisador do genocídio do povo Waimiri-Atroari, cofundador do Conselho Indigenista Missionário, coordenador do Comitê da Verdade no Amazonas, Fundador da Casa da Cultura do Urubuí em Presidente Figueiredo. Tudo isto está escrito no convite para o evento. Nele também se lê que o homenageado tem oitenta anos e destes, cinquenta e dois dedicados à causa indígena sendo que destes trinta e cinco foram vividos no Amazonas. O título, portanto é mais que merecido.
Tive o prazer de conhecer pessoalmente o novo cidadão do Amazonas na minha primeira visita a paróquia dos Santos Mártires e Nossa Senhora Aparecida na cidade de Presidente Figueiredo. Participava da Eucaristia celebrada com a comunidade católica daquela cidade. No outro dia visitei sua casa e ganhei de presente uma garrafa de mel. E isto mostra mais facetas de sua personalidade, homem de fé, de Igreja, amante da natureza e da vida simples, além de pai de família e esposo. Há pouco tempo perdeu a esposa e companheira de luta.
Conhecia o missionário Egydio de ouvir falar e de leituras, desde quando cheguei a Amazônia no final dos anos setenta e ouvi relatos da sua passagem pelos seringais e aldeias do rio Envira. A igreja e o Brasil começam a tomar conhecimento da existência e da resistência de povos que haviam resistido e sobrevivido a séculos de violência e destruição. Missionários e missionarias do Conselho Indigenista Missionário e da Operação Anchieta foram em grande número viver nas aldeias, aprender as línguas nativas e lutar junto com os índios pela demarcação das terras ancestrais, o que possibilitaria a sobrevivência destes povos, marcados para morrer ou se integrar na sociedade nacional.
Na Igreja o incentivo para esta imersão e solidariedade vinha da renovação trazida pelo Concílio Vaticano II e pelo documento de Medellin que na opção pelos pobres atualizava e concretizava na América Latina a verdadeira revolução conciliar. Egydio faz parte de um grupo que viveu de forma heroica este movimento histórico. Viu gente morrer por ter optado pela causa indígena, sofreu na vida pessoal as consequências de suas convicções vividas concretamente.
Aquilo que parecia sonho, hoje é realidade. A semente se tornou árvore. Os indígenas continuam ameaçados e humilhados, seus direitos constitucionais sempre correndo riscos de desaparecerem da ordem jurídica, mas inegável a existência de um movimento indígena articulado no Brasil e as conquistas de lá para cá foram muitas. Para mim e para muitos Egydio é daquelas figuras que inspiram, desfiam, mostram caminhos, exigem coerência e conversão. Cidadão no sentido pleno é também homem de fé, coerente até o fim, exuberante como as grandes árvores amazônicas que depois de anos e anos conservam a vitalidade e a fertilidade. Num país que assiste estarrecido a um verdadeiro assalto as instituições democráticas por parte de oportunistas é bom saber que há homem assim. Agradeça ao Egydio por ser quem é.
Dom Sérgio Eduardo Castriani
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Dom Sérgio: um arcebispo para além da instituição - Instituto Humanitas Unisinos - IHU