13 Dezembro 2015
"Nunca houve por parte dos invasores interesse em incluir os povos indígenas na construção das leis que regem o país", constata um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário - CIMI.
No Brasil se perpetuam as violências às diversas etnias indígenas que são as habitantes originárias do país. As agressões históricas iniciadas com os processos de colonização e exploração deste território foram tão intensas e continuam tão constantes que implicaram na drástica redução e no quase desaparecimento de alguns destes povos. De acordo com Egydio Schwade, passam-se os anos, mudam os dominadores, mas o desejo de expropriar e lucrar com a terra permanece o mesmo. Porém se acentuam os embates, uma vez que os indígenas passaram a reivindicar seus direitos. “É o desespero da velha política dos donatários, dos fazendeiros portugueses, vendo estes povos que, segundo eles, já não deveriam mais existir, crescerem, exigirem seus territórios e sua autonomia, é isto que move o recrudescimento atual da política genocida”, ressalta em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Ao fazer uma retrospectiva das políticas públicas direcionadas aos indígenas ao longo dos anos no Brasil, Schwade aponta que não houve avanços no sentido de garantir os direitos e a segurança destes povos e que os principais entraves para a efetivação das leis que já existem e para a elaboração de outras medidas são os interesses dos donos do capital. “A política indigenista brasileira sempre foi ambígua. Sempre esteve vinculada ao ministério que propulsiona o (des)envolvimento. Enquanto por um lado tenta se respaldar em um mínimo de leis favoráveis aos povos indígenas, por outro a sua prática sempre foi anti-indígena”, constata.
Schwade ainda salienta que os indígenas não são vistos como parte do país, mas sim como uma ameaça ao modelo desenvolvimentista de gestão da nação. “Hoje a briga maior do índio já consciente e organizado e de seus aliados é conseguir efetivar a prática das leis contidas na Carta Magna de 1988. Judiciário, Legislativo e Executivo estão aí em constante conflito com a lei, ao invés de garantirem sua execução como é seu dever. No fundo o índio é um ‘perigo’ para o modelo político injusto que se instalou sobre o território brasileiro.”
Egydio Schwade (Foto: Reprodução | BNC Amazonas)
Egydio Schwade é graduado em Filosofia e Teologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Foi um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário - Cimi e primeiro secretário executivo da entidade, em 1972. Atualmente é colaborador do Cimi e vive em Presidente Figueiredo, AM.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como analisa a questão indígena hoje no Brasil? O que nos levou a esse estado de genocídio de povos indígenas?
Egydio Schwade - A agressão contra os povos indígenas, ou seja, contra os donos desta terra, é uma herança recebida dos povos europeus que a invadiram de 1500 para cá e acham que têm o direito de prosseguir impunes ainda hoje. Neste processo inclui-se desde a agressão às suas pessoas e territórios até a legislação e a sua ausência no governo desta terra. Nunca houve por parte dos invasores interesse em incluir os povos indígenas na construção das leis que regem o país.
O que leva ao recrudescimento atual deste “estado de genocídio de povos indígenas” é o desespero dos insaciáveis latifundiários e mineradores com a constatação de que os índios estão crescendo em número, em seus valores culturais e na exigência dos seus direitos.
Quando a sociedade brasileira, a partir dos anos 1960, e aqui cito, em especial, a Igreja Católica, começou a organizar entidades com postura nova, incentivada pelo Concílio Vaticano II [1] (não mais catequese, mas encarnação na sua realidade, para conhecer e evidenciar os valores da sua cultura, “busquem os missionários colher as sementes do Verbo ocultas nos povos”, orientam os documentos do Vaticano II), passou a evidenciar como anúncio da boa nova os seus direitos à terra, à cultura e à autodeterminação. Esta nova postura trouxe novo ânimo aos povos indígenas, que começaram a crescer e a se organizar. Segundo pesquisa feita por Darcy Ribeiro [2], nos anos 1950 eram menos de 100 mil no Brasil. Já em 1978, como secretário executivo do Cimi, orientei uma nova pesquisa, onde já passavam de 220 mil. Hoje beiram um milhão, segundo o IBGE. É o desespero da velha política dos donatários, dos fazendeiros portugueses, vendo estes povos que segundo eles, já não deveriam mais existir, crescerem, exigirem seus territórios e sua autonomia, é isto que move o recrudescimento atual da política genocida.
IHU On-Line - Como compreender a cosmovisão indígena na sua relação com a terra e elementos da natureza? Por que o chamado homem branco não consegue entender essa perspectiva? E como o senhor, através de sua experiência de vida, conseguiu se aproximar dessa concepção?
Egydio Schwade - A cosmovisão dos povos originários só se compreende pela convivência com eles e questionando os nossos erros e preconceitos durante esta convivência.
De 1963 a 1965, como estudante participei de uma sofrida experiência indigenista em dois internatos na Missão Anchieta - MIA dos jesuítas no Noroeste de Mato Grosso. Depois tive a oportunidade de vivenciar o processo de mudança da Igreja Católica e de outras igrejas cristãs como a Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil, desde o seu início, ou seja, desde o Concílio nos anos 60. No caso da Igreja Católica, sem dúvida nenhuma foi no encalço das linhas de ação apontadas pelo Concílio Vaticano II. Acompanhei parte do Concílio no Curso de Filosofia na Unisinos, em São Leopoldo, e a outra parte em internatos da Missão Anchieta em Diamantino, nas margens do Rio Papagaio, afluente do rio Juruena no Noroeste de Mato Grosso.
Vivi o fervilhar das discussões sobre as mudanças necessárias a se fazerem na Igreja num e noutro extremo. Vi índios Rikbaktsa chegando à tarde nus ao internato de Utiariti, apenas com seu arco e flecha na mão e no dia seguinte cedo os vi ajoelhados de roupa na igreja. Vinham à Utiariti, não para voltarem à aldeia e defender o seu território, viverem sua cultura, mas para aprender a ler e escrever e irem esconder sua identidade de índios em Cuiabá. E a Missão os empurrava e incentivava a isto. Tanto era assim que no segundo internato em que trabalhei, em Diamantino, que ficava próximo de Cuiabá, eles eram integrados na perspectiva de páreas da sociedade, junto com meninos pobres, não indígenas, dos garimpos e da roça. Não existia nenhuma organização indígena em todo o território nacional.
Em 1966 voltei à Unisinos ansioso para discutir e propor mudanças nesta situação, com os companheiros que também haviam passado por esta experiência e propor mudanças imediatas. Já em março daquele ano escrevemos uma carta conjunta, os que havíamos passado pela MIA, aos dirigentes da Missão propondo interromper as atividades e planejar uma nova forma de desenvolver os trabalhos. Mas a nossa proposta foi rejeitada. Diante deste fechamento da instituição concluímos que uma mudança só seria possível apelando para a juventude e na forma ecumênica como recomendava o Vaticano II.
Junto com Thomaz Lisboa, um colega que havia atuado na missão comigo, organizei uma “fotonovela” com slides sobre a vida dos índios de Mato Grosso e todo fim de semana íamos a uma comunidade católica ou evangélica do Vale do Rio dos Sinos, motivando a juventude para a missão. Finalmente, em fevereiro de 1969 criei a Operação Anchieta - Opan, hoje Operação Amazônia Nativa, que começou a selecionar, treinar e enviar jovens para as comunidades indígenas. E a partir de 1970, rapazes e moças da Opan, católicos e evangélicos, começaram a se esparramar pelas comunidades indígenas da Amazônia. Logo se juntaram e integraram os Voluntários para o Desenvolvimento da Áustria e os Técnicos Voluntários Cristãos da Itália.
Esta juventude obteve imediato apoio e participação de missionários religiosos que já atuavam nas bases, igualmente ansiosos por mudança. Acompanhei quatro anos, como coordenador técnico, a Opan. Em 1972 ajudei a criar o Conselho Indigenista Missionário – Cimi, do qual fui o primeiro secretário executivo, até 1980. Nestes dois períodos acompanhei a evolução dos trabalhos da Igreja junto aos índios em todo o país. E pude sentir o drama dos povos indígenas esmagados e sem esperança de perspectivas melhores por toda parte.
IHU On-Line - Como se deu a relação da Igreja com os povos ameríndios a partir do século XVI? De que forma essa relação foi revisada nas últimas décadas?
Egydio Schwade - Foi no fim das frustradas Cruzadas [3] que iniciaram as grandes navegações, principalmente dos espanhóis e portugueses. Os cristãos europeus invadiram os territórios de centenas de povos pacíficos mundo afora, como o faziam antes os cruzados contra os mouros. E, como lá, a Igreja estava presente nos navios e na cabeça dos seus mandantes. Do mesmo modo, estes, ao invés de “colher as sementes de Deus ocultas” nesses povos (que viviam num sistema fraterno das pessoas entre si e destas com a terra, princípios pregados por Cristo), foram destruindo o que vinha pela frente e instalando o sistema antifraterno que vigorava na Europa, não apenas entre cristãos e muçulmanos, mas, inclusive, entre os próprios cristãos.
Em meados dos anos 1960 o Papa João XXIII convocou o Concílio Vaticano II, onde os padres conciliares deram novas orientações para o relacionamento com os povos, tanto no seu relacionamento intercristãos, como sobre a sua Atividade Missionária junto a outros povos. Foram estas orientações que levaram a novos rumos da Pastoral Indigenista no Brasil. Não doutrinação, mas encarnação em sua realidade e “colher as sementes de Deus ali ocultas”. E o anúncio da Boa Nova é o anúncio a estes povos do seu direito à vida, ao seu território, à sua cultura e à sua autodeterminação.
IHU On-Line - Qual o papel do Concílio Vaticano II na mudança de perspectiva das ações da Igreja diante dos povos indígenas? Como era e como vem sendo trabalhada a inculturação da fé entre os povos originários?
Egydio Schwade - Antes do Concílio já existia uma experiência de convivência sem doutrinação, a das Irmãzinhas de Jesus, junto ao povo Tapirapé na Prelazia de São Félix do Araguaia.
A Opan e o Cimi foram criados dentro dos princípios apontados pelo Concílio Vaticano II. Os seus membros foram incentivados e capacitados para se encarnar na realidade vivida então pelos povos indígenas brasileiros, convivendo e assumindo a sua causa na perspectiva de serem aceitos como membros daqueles povos. Em janeiro de 1970 partiu o primeiro grupo de pessoas da Opan para aldeias do Noroeste de Mato Grosso e para Rondônia, nos confins do rio Guaporé e Mamoré.
Em 1973, quando foi criado o Cimi, organizei o primeiro programa de ação deste órgão, o Encontros de Pastoral Indigenista, do qual participavam missionários e lideranças indígenas visando transformar e reformular as linhas de ação missionárias. Eram encontros supracircunscrições eclesiásticas, para inserção dos missionários na postura da Igreja pós-conciliar frente aos índios e para eles mesmos superarem o isolamento existente onde as Prelazias e Dioceses da Amazônia eram verdadeiras “ilhas culturais”. O segundo eixo do programa do Cimi foi o de possibilitar assembleias indígenas. Encontros dos próprios índios entre si.
Convém notar que este programa foi durante os primeiros 15 anos levado conjuntamente pela Opan e pelo Cimi. A palavra de ordem era “encarnação” em todas as missões católicas e também da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - IECLB. Posteriormente, burilada por intelectuais, foi apresentada como “inculturação”.
IHU On-Line - Numa perspectiva histórica, como avalia a política indigenista brasileira? E trazendo para atualidade, quais os avanços, limites e retrocessos dessa política?
Egydio Schwade - A política indigenista brasileira sempre foi ambígua. Sempre esteve vinculada ao ministério que propulsiona o (des)envolvimento. Enquanto por um lado tenta se respaldar em um mínimo de leis favoráveis aos povos indígenas, por outro a sua prática sempre foi anti-indígena. Até o Estatuto do índio publicado pela ditadura militar em 1973 teve seus aspectos positivos. Mas quando fui secretário executivo do Cimi a nossa briga maior com o governo militar foi o seu desrespeito ao que ele mesmo havia posto na lei. Semelhantemente hoje a briga maior do índio já consciente e organizado e de seus aliados é conseguir efetivar a prática das leis contidas na Carta Magna [4] de 1988. Judiciário, Legislativo e Executivo estão aí em constante conflito com a lei, ao invés de garantirem sua execução como é seu dever. No fundo o índio é um “perigo” para o modelo político injusto que se instalou sobre o território brasileiro.
Bem, uma das coisas que para nós estudantes jesuítas do final da década de 60 ficou evidente, foi a de que a questão indígena não poderia se restringir à Missão Anchieta de Diamantino, mas deveríamos ter sempre diante de nós uma “visão nacional e até internacional” da questão indígena, o que, desde então, deixávamos claro em nossos documentos e ações. E, como consequência, isto nos levou a nos imiscuir na política indigenista oficial. Assim, em abril de 1967, o colega estudante paulista Thomaz de Aquino Lisboa e eu resolvemos fazer uma semana santa diferente. Ao invés de participar das cerimônias litúrgicas na igreja, fomos visitar comunidades indígenas do Rio Grande do Sul, entregues metade à política do Estado e outra metade ao Serviço de Proteção aos índios - SPI. Disto resultou uma série de nove artigos que publicamos no Correio do Povo de Porto Alegre sob o título: “Drama de 1080 famílias Indígenas do Rio Grande do Sul”. A denúncia provocou uma CPI na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul em maio de 1967. No mês seguinte instalou-se a CPI na Câmara Federal que teve como relator o Deputado Jader Figueiredo e que deu fim ao SPI e motivou a criação da Fundação Nacional do Índio - Funai.
O que constatei ao longo de todos esses anos de acompanhamento da política indigenista brasileira oficial é que em realidade não houve avanço algum. Ela acaba sempre patinando sobre os interesses dos poderosos, que nunca tiveram interesse algum de ver os segmentos oprimidos da sociedade melhorarem de vida.
IHU On-Line - Como o senhor vivenciou o período da Ditadura e quais as marcas do regime permanecem no trato aos povos indígenas? E em que medida o relatório da Comissão Nacional da Verdade recupera a memória de índios sacrificados nesse período?
Egydio Schwade - No período militar fui reprimido e proibido, pelos militares que comandavam a Funai, de entrar nas áreas indígenas do país. Mas foi este o período de minha vida em que visitei mais áreas e povos indígenas por todo o país, animando-os em sua luta pelos seus direitos. A ausência do Estado, do Governo junto aos pobres e oprimidos facilitava o meu acesso.
Andei, neste período, do Alto Envira no Acre (onde encontrei Madiha com seu território invadido por latifundiários sulistas, apoiados pelos generais e uma aldeia literalmente em curral de gado) até a Serra do Ororubá em Pernambuco, que galguei para me encontrar com os Xukuru, exprimidos no meio das montanhas, última nesga de território que lhes restara e disputavam. Andei do território Raposa Serra do Sol, em Roraima (onde, com o auxílio dos colegas missionários da Prelazia de Roraima, convocamos a assembleia dos líderes indígenas que desencadeou uma luta que 32 anos depois foi vitoriosa com a homologação da área contínua Raposa Serra do Sol), até as áreas de Ventarra e Inhacorá no Rio Grande do Sul, griladas pelos governos de Brizola [5] e Meneghetti [6], para fins de uma ruidosa Reforma Agrária realizada nas terras indígenas e não sobre a praga do latifúndio que domina ate hoje o Estado.
Mas para entender a questão indígena frente ao governo brasileiro e inclusive ao documento final da Comissão Nacional da Verdade - CNV [7], criada pelo governo Dilma, é exemplar o caso que vivenciei e vivencio aqui no município onde moro: o caso Waimiri-Atroari. Entre 1967 e 1977, os militares construíram a rodovia BR-174 passando pelo território desses índios como se fosse um “vazio demográfico”. No seguimento, a quase total destruição do povo Waimiri-Atroari (de 3.000 em 1968 passou a 332 em 1983). Processo de extermínio que teve a cobertura da Funai, a instalação em seu território de grileiros, mineradores e hidrelétricas.
Um funcionário da Funai, Sebastião Amâncio da Costa, nomeado para dirigir a Frente de Atração Waimiri-Atroari, em janeiro de 1975, declarou publicamente que usaria a violência contra os índios, com armas de fogo, incluindo dinamite e metralhadoras, conforme determinava um documento oficial do Comando Militar da Amazônia. Pela pressão pública da época, foi levado pela Funai ao ostracismo, de onde voltou, ainda na ditadura militar, para assumir cargo de confiança na Funai em Roraima. A Nova República o premiou com o cargo de Superintendente da Delegacia do Amazonas, segundo cargo mais importante do órgão.
Semelhantemente ao caso de Costa, José Porfírio de Carvalho, outro funcionário subserviente que durante quase 10 anos ocupou cargos de confiança na ditadura, como o de coordenador da Coordenação da Amazônia – Coama [8], no Amazonas, que fornecia as armas aos funcionários da Funai, que atuaram na área Waimiri-Atroari no período mais cruel da ditadura. Do segundo ano da Nova República [9] até hoje, ocupa o cargo de coordenador do Programa Waimiri-Atroari [10], reprimindo qualquer tentativa de contato com os índios que pudessem levar os mesmos a revelar sua história recente. Até a representante da Comissão Nacional da Verdade se submeteu aos ditames deste funcionário, não permitindo sequer a presença de um membro do Comitê pela Memória, Verdade e Justiça do Amazonas, única entidade que forneceu um Relatório [11] amplo e documentado sobre os crimes cometidos pela Ditadura contra aquele povo.
Como se pode constatar por este e outros fatos que se referem à questão indígena, que a ambiguidade continua e domina não apenas a política indigenista oficial em todo o país, mas até a CNV, órgão que foi criado para abrir caminho para o conhecimento também dos crimes cometidos contra estes povos indígenas. Se o seu relatório contém relatos dos crimes contra os povos indígenas, não acrescenta, como o faz com os demais crimes da Ditadura, medidas atualizadas para reparar esses fatos dolorosos.
IHU On-Line - Como avalia a política indigenista desses 13 anos de governo petista? Por que o governo Dilma Rousseff parece não entender a causa indígena e sucumbe ao neodesenvolvimentismo?
Egydio Schwade - Muito ruim. Incompreensível! Desastrosa! Uma traição aos princípios que desde a fundação orientam o Partido dos Trabalhadores. Felizmente as bases do partido e vários deputados e deputadas do mesmo já se deram conta dessa continuidade que o governo Dilma vem dando à política indigenista colonial e começaram a pressionar por mudanças.
IHU On-Line - Por que a esquerda no Brasil e na América Latina não entende o índio? Como tem acompanhado os conflitos em outros países, como o Equador?
Egydio Schwade - A esquerda no Brasil está em conflito com os seus princípios ou não os entendem. Todos eles, por exemplo, se autoafirmam como socialistas. E não há nenhum segmento da sociedade latino-americana que vivencia e leva a sério o socialismo como os povos indígenas. Em 1978, Egon Dionísio Heck, então coordenador do Cimi-Sul, e eu empreendemos uma viagem pelo Paraguai, Norte da Argentina e Bolívia, então dominados por ditaduras. Visávamos contatos com organizações indígenas e da Igreja Católica. Imaginávamos que se a Igreja e os índios mudassem o seu discurso em áreas e países de maioria indígena (não “campesinos”, mas “índios”), em poucas décadas o socialismo se tornaria realidade em benefício da América Latina, principalmente de seus povos e para saúde de sua terra.
Veja o caso da Bolívia, que sempre viveu a instabilidade política, com as ditaduras se sucedendo e o povo e o país sendo espoliados. Em mãos de um mandante indígena, a estabilidade econômica vem despontando e a estabilidade política já é um fato inconteste. Esperamos que também a mãe-terra boliviana e latino-americana possa em breve sentir um novo momento, voltando a receber o carinho indígena.
IHU On-Line - Como compreender (o que está por trás) os conflitos Guarani Kaiowá [12] em Mato Grosso do Sul? O que esse genocídio nos revela acerca de outros conflitos pelo Brasil?
Egydio Schwade - O caso dos índios Kaiowá-Guarani de Mato Grosso do Sul nos revela o extremo da política colonialista ainda vigente em nosso país. Em 1980 coordenei a reunião de Tuxauas que acertou o encontro dos índios e diversos povos com o Papa João Paulo II, onde foi acertado que o Guarani Tupã-y, Marçal de Souza [13], que revelava então a situação mais angustiante dos povos indígenas do Brasil, falasse em nome de todos. Guardo a íntegra deste discurso: “sou representante da grande tribo Guarani, quando nos primórdios nós éramos uma grande nação, hoje vive à margem da chamada civilização... Somos uma nação subjugada pelos potentes, uma nação espoliada, uma nação que está morrendo aos poucos...” — denunciava ao Papa.
E o que vemos 35 anos depois é que nada mudou sobre esta situação que ele pintou do seu povo. Acho que os fazendeiros de Mato Grosso do Sul estão esperando que os povos indígenas e seus aliados no país inteiro se unam e comecem uma vigília permanente junto a este povo e iniciem uma reconquista da terra Kaiowá-Guarani, libertando os latifundiários de sua ganância e destruição das terras de Mato Grosso do Sul.
IHU On-Line - Qual deve ser o papel do poder público (Executivo, Legislativo e Judiciário) diante dos povos indígenas? Como analisa os debates e propostas da PEC 215?
Egydio Schwade - Acho que o papel do Governo, Executivo, Legislativo e Judiciário, no que tange aos índios, é, antes de qualquer coisa, cumprir a lei. E o deveria fazer com especial zelo e carinho com os índios, já que se trata de uma minoria massacrada ao longo dos séculos e que já sofreu demasiado. No caso da PEC 215 [14] é profundamente vergonhoso que os índios e seus aliados tenham que sofrer represálias por todo o país por motivo da defesa da lei. Como pode ser respeitada uma Câmara de Deputados que despreza constantemente a lei, principalmente no tange as pessoas mais pobres e necessitadas de respeito?
Por João Vitor Santos e Leslie Chaves
Notas:
[1] Concílio Vaticano II: convocado no dia 11-11-1962 pelo Papa João XXIII. Ocorreram quatro sessões, uma em cada ano. Seu encerramento deu-se a 8-12-1965, pelo Papa Paulo VI. A revisão proposta por este Concílio estava centrada na visão da Igreja como uma congregação de fé, substituindo a concepção hierárquica do Concílio anterior, que declarara a infalibilidade papal. As transformações que introduziu foram no sentido da democratização dos ritos, como a missa rezada em vernáculo, aproximando a Igreja dos fiéis dos diferentes países. Este Concílio encontrou resistência dos setores conservadores da Igreja, defensores da hierarquia e do dogma estrito, e seus frutos foram, aos poucos, esvaziados, retornando a Igreja à estrutura rígida preconizada pelo Concílio Vaticano I. O Instituto Humanitas Unisinos - IHU produziu a edição 297, Karl Rahner e a ruptura do Vaticano II, de 15-6-2009, disponível em http://bit.ly/o2e8cX, bem como a edição 401, de 03-09-2012, intitulada Concílio Vaticano II. 50 anos depois, disponível em http://bit.ly/REokjn, e a edição 425, de 01-07-2013, intitulada O Concílio Vaticano II como evento dialógico. Um olhar a partir de Mikhail Bakhtin e seu Círculo, disponível em http://bit.ly/1cUUZfC. Em 2015, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promoveu o colóquio O Concílio Vaticano II: 50 anos depois. A Igreja no contexto das transformações tecnocientíficas e socioculturais da contemporaneidade. As repercussões do evento podem ser conferidas na IHU On-Line, edição 466, de 01-06-2015, disponível em http://bit.ly/1IfYpJ2 e também em Notícias do Dia no sitio IHU. (Nota da IHU On-Line)
[2] Darcy Ribeiro (1922-1977): etnólogo, antropólogo, professor, educador, ensaísta, romancista e político mineiro. Completou o curso superior na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, no ano de 1946. Trabalhou como etnólogo no Serviço de Proteção ao Índio, e, em 1953, fundou o Museu do Índio. Foi professor de etnologia e linguística tupi na Faculdade Nacional de Filosofia e dirigiu setores de pesquisas sociais do Centro de Pesquisas Educacionais e da Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo, além de ocupar, no biênio 1959/1961, o cargo de presidente da Associação Brasileira de Antropologia. Foi eleito em 8 de outubro de 1992 para a Cadeira n. 11 da Academia Brasileira de Letras. (Nota da IHU On-Line).
[3] Cruzadas (séculos XI a XIII): foram movimentos militares de inspiração cristã que partiram da Europa Ocidental em direção à Terra Santa (nome pelo qual os cristãos denominavam a Palestina) e à cidade de Jerusalém com o intuito de conquistá-las, ocupá-las e mantê-las sob o domínio cristão. Estes movimentos estenderam-se entre os séculos XI e XIII, época em que a Palestina estava sob controle dos turcos muçulmanos. No médio oriente, as cruzadas foram chamadas de "invasões francas", já que os povos locais viam estes movimentos armados como invasões e por que a maioria dos cruzados vinha dos territórios do antigo Império Carolíngio e se autodenominavam francos. (Nota da IHU On-Line)
[4] Carta de 88 – Carta Magna: é a Constituição da República Federativa do Brasil de 19881, promulgada em 5 de outubro de 1988. É a lei fundamental e suprema do Brasil, servindo de parâmetro a todas as demais normativas. Pode ser considerada a sétima ou a oitava constituição do Brasil (dependendo de se considerar ou não a Emenda Constitucional nº 1 como um texto constitucional) e a sexta ou sétima constituição Brasileira em um século de república. (Nota da IHU On-Line)
[5] Leonel de Moura Brizola (1922-2004): político brasileiro, nascido em Carazinho, no Rio Grande do Sul. Foi prefeito de Porto Alegre, governador do Rio Grande do Sul, deputado federal pelo extinto estado da Guanabara e duas vezes governador do Rio de Janeiro. Sua influência política no Brasil durou aproximadamente 50 anos, inclusive enquanto exilado pelo Golpe de 1964, contra o qual foi um dos líderes da resistência. Por várias vezes foi candidato a presidente do Brasil, sem sucesso, e fundou um partido político, o PDT. Sobre Brizola, confira a primeira edição dos Cadernos IHU em formação intitulado Populismo e trabalho. Getúlio Vargas e Leonel Brizola, disponível em http://bit.ly/ihuem01. Leia também a IHU On-Line intitulada Leonel de Moura Brizola 1922-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon107. (Nota da IHU On-Line)
[6] Ildo Meneghetti (1895-1980): engenheiro e político brasileiro. Foi prefeito de Porto Alegre por duas vezes e governador do estado do Rio Grande do Sul também por duas vezes. (Nota da IHU On-Line)
[7] Comissão Nacional da Verdade (CNV): é o nome da comissão que investigou as graves violações de direitos humanos cometidas entre 18 de setembro de 1946 e 05 de outubro de 1988, por agentes públicos, pessoas a seu serviço, com apoio ou no interesse do Estado brasileiro, ocorridas no Brasil e também no exterior. A comissão foi instalada oficialmente em 16 de maio de 2012. A CNV concentrou seus esforços no exame e esclarecimento das graves violações de direitos humanos praticados durante a ditadura militar (1964-1985). A Comissão ouviu vítimas e testemunhas, bem como convocou agentes da repressão para prestar depoimentos. Promoveu mais de 100 eventos na forma de audiências públicas e sessões de apresentação dos relatórios preliminares de pesquisa. Realizou diligências em unidades militares, acompanhada de ex-presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos. Constituiu um núcleo pericial para elucidar as circunstâncias das graves violações de direitos humanos, o qual elaborou laudos periciais, relatórios de diligências técnicas e produziu croquis relativos a unidades militares. Colaborou com as instâncias do poder público para a apuração de violação de direitos humanos, além de ter enviado aos órgãos públicos competentes dados que pudessem auxiliar na identificação de restos mortais de desaparecidos. Também identificou os locais, estruturas, instituições e circunstâncias relacionadas à prática de violações de direitos humanos, além de ter identificado ramificações na sociedade e nos aparelhos estatais. Em 10 de dezembro de 2014, a CNV entregou seu relatório final à Presidente Dilma Rousseff. (Nota da IHU On-Line)
[8] Coordenação da Amazônia – Coama: Órgão pertencente à Funai. (Nota da IHU On-Line)
[9] Nova República ou Sexta República Brasileira: é o nome do período da História do Brasil que se seguiu ao fim da ditadura militar. É caracterizado pela ampla democratização política do Brasil e sua estabilização econômica. Usualmente, considera-se o seu início em 1985, quando, concorrendo com o candidato situacionista Paulo Maluf, o oposicionista Tancredo Neves ganha uma eleição indireta no Colégio Eleitoral, sucedendo o último presidente militar, João Figueiredo. Tancredo não chega a tomar posse, vindo a falecer. Seu vice-presidente, José Sarney, assume a presidência em seu lugar. Sob seu governo é promulgada a Constituição de 1988, que institui um Estado Democrático de Direito e uma república presidencialista. (Nota da IHU On-Line)
[10] Programa Waimiri Atroari: criado em 1988, com assessoria da Fundação Nacional do Índio – Funai, pela Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. – Eletronorte, em contrapartida à construção da hidrelétrica de Balbina (concluída em 1987) é um conjunto de ações indigenistas e de assistência aos índios nas áreas de saúde, educação, apoio a produção e defesa ambiental do território indígena da etnia Waimiri Atroari. Os Waimiri Atroari são uma etnia do tronco linguístico Karib, cujo território imemorial de ocupação se localiza nas atuais Regiões Sul do Estado de Roraima e Norte do Amazonas. Eram mais conhecidos como Crichanás, quando segmentos expansionistas da sociedade envolvente brasileira travaram seus primeiros contatos com eles, sobretudo a partir do Século XIX. Os contatos iniciais ocorreram nas atuais cidades de Moura e Airão, de forma quase sempre belicosa, com o apoio inclusive de forças militares coloniais. Aldeias inteiras foram dizimadas por expedições militares ou por matadores profissionais, porque sua população era tida como empecilho à livre exploração das riquezas naturais existentes nas terras que ocupavam. (Nota da IHU On-Line)
[11] Sobre o assunto ver livro organizado pelo Comitê Estadual de Direito à Verdade, à Memória e à Justiça do Amazonas: A ditadura militar e o genocídio do provo Waimiri-Atroari (Campinas: Editora Curt Nimuendajú, 2014). (Nota do entrevistado)
[12] Guarani Kaiowá: povo indígena do Paraguai, do estado brasileiro de Mato Grosso do Sul e do nordeste Argentina. No Brasil, eles habitam Nhande Ru Marangatu, uma área de tropical floresta tropical. São um dos três guaranis subgrupos (os outros são Ñandeva e Mbya). Estima-se que mais de 30.000 guaranis vivem no Brasil. No Paraguai eles são cerca de 40.000. O Guaraní língua é uma das línguas oficiais do Paraguai, ao lado de língua espanhola. (Nota da IHU On-Line)
[13] Marçal de Souza, ou Marçal Tupã-i, ou ainda Tupã-Y: Líder da etnia guarani-nhandevá que habita o oeste do Brasil, nas fronteiras com Argentina, Bolívia e Paraguai. Foi assassinado em 25 de novembro de 1983. Recentemente foi condecorado com a honra de Herói Nacional do Brasil pelo governo federal. (Nota IHU On-Line)
[14] PEC 215: Proposta de Emenda à Constituição 215, de 2000. Pretende delegar ao Legislativo a aprovação de demarcações de terras indígenas, quilombolas e áreas de preservação ambiental. A proposta foi aprovada por comissões internas da Câmara e segue os trâmites em plenário. Confira a íntegra da proposta em http://bit.ly/1kpiLvM. Nas Notícias do Dia do sítio do IHU há uma série de materiais sobre o tema. Confira em ihu.unisinos.br (Nota da IHU On-Line)
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A ambígua e ineficiente política indigenista brasileira. Entrevista especial com Egydio Schwade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU