22 Fevereiro 2021
"Não cabe a nós fazer julgamentos sobre um evento que envolveu também o Papa, mas seja qual for a causa do conflito, sabemos que não foi bem gerido, deixando vazar boatos, inferências, suspeitas, gerando mais tensões. Até esta ruptura definitiva. Em nenhum lugar está escrito que coisas belas como Bose podem durar para sempre", escreve Marco Imarisio, em artigo publicado por Corriere della Sera, 21-02-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
A caixa de papelão que o voluntário carrega numa van Iveco vale mais do que qualquer confirmação oficial. O Irmão Enzo Bianchi está saindo da ermida onde passou os últimos meses, a poucas dezenas de metros de sua criação, a comunidade que fundou em 1963, mas nunca tão distante, cada vez mais distante. Até um ponto que se esperava que nunca chegasse. Por nenhuma das partes envolvidas em uma disputa que começou há quatro anos e ainda hoje é incompreensível para a maioria.
Todos sabem o que é ou o que foi Bose, e todos sabem que é difícil resumir isso em algumas linhas. Uma das comunidades mais famosas e visitadas da Itália e talvez da Europa, formada por monges de ambos os sexos vindos de Igrejas cristãs de diferentes origens e devotados ao diálogo ecumênico com todas as formas de cristianismo. Nasceu em 1963 em Turim, por impulso de um ex-contador que se tornou monge após o Concílio Vaticano II, que lidera um grupo de jovens católicos e protestantes. Em 1965 mudaram-se para as colinas, os morros que separam a província de Torino daquela de Biella, em Bose, um distrito de Magnano, e começaram imediatamente os encontros ecumênicos. Eles superaram ilesos os vetos do então bispo de Biella e, quando no fatídico 1968 o cardeal de Torino Michele Pellegrino bate à porta daquele que na época era apenas uma casa de fazenda, a legitimidade do novo mosteiro torna-se implícita, mas real.
Passaram-se quase 60 anos. Passaram-se quase 60 anos, durante os quais tudo se tornou maior, a comunidade, que hoje conta com mais de cem pessoas, fama, interesse, foram abertos outras sedes na Itália e em Jerusalém. Em 2017, Enzo Bianchi renunciou ao cargo de prior aos 74 anos, deixando-o para seu sucessor há muito designado, Luciano Manicardi. Ele se muda para um prédio fora do perímetro da comunidade, para não interferir. Então algo acontece. No início, são apenas boatos. Em maio de 2020, em plena pandemia, um decreto da Santa Sé, assinado pelo Papa Francisco, que por ocasião do quinquagésimo aniversário da comunidade, marcado por convenção em 1968, havia escrito a Bianchi definindo a comunidade como “uma presença fecunda na Igreja e na sociedade”, ordena ao ex-prior seu afastamento de modo definitivo. A razão para tal disposição severa ainda não é conhecida.
O "decreto singular" do Vaticano sugeria uma história de divisões internas. O legado do fundador, que se mudou para um eremitério próximo, sua sombra e seu carisma podem ser uma presença que atrapalha, podem inibir e condicionar decisões e comportamentos. Por isso, era melhor que Bianchi se mudasse "no máximo dez dias após a notificação" para outra sede de Bose, a ermida Cellole San Gimignano, na província de Siena.
Em janeiro deste ano, a sede designada para o irmão Enzo "com um passo doloroso" deixa de pertencer à comunidade e é cedida "em comodato" ao antigo prior. Como se um corte ainda mais evidente fosse necessário.
O último prazo para a transferência é fixado para 17 de fevereiro, antes do início da Quaresma.
No dia seguinte, com um comunicado também de dureza inédita, "a sua" Comunidade reconhece "com profunda amargura" o fato de o irmão Enzo ainda não ter saído. “A mudança para Cellole teria ajudado a aliviar a tensão e o sofrimento de todos e teria facilitado o lento caminho da reconciliação e compreensão mútua. Infelizmente, a mão estendida não foi aceita”.
Alguns dias antes, o irmão Enzo havia escrito em um tweet uma frase nem mesmo muito enigmática, que sugeria que todas as pontes já haviam sido queimadas. “Silêncio sim, concordar com a mentira não”. A verdade está emergindo, diz o ex-prior, uma das figuras religiosas mais conhecidas do país.
No sábado, as colinas de Biella estavam cobertas de neblina e umidade. O mosteiro estava deserto, em tempos de epidemia há poucos visitantes. Não é possível hospedar ninguém para semanas de meditação há mais de um ano. Os produtos da enorme horta foram entregues à Caritas, porque não havia turista para comprá-los. A pequena comunidade é notícia apenas para este conflito dilacerante e doloroso. Nenhum hóspede tem permissão para falar. Ficamos sabendo que esse capítulo termina com a despedida do irmão Enzo aos seus lugares por monges que recomendavam o anonimato, por pessoas próximas à pessoa em questão e por aquelas poucas coisas esperando para serem levadas.
“Não é uma transferência, é um exílio”, diz amargamente um de seus ex-colaboradores, que gosta dele, como quase todo mundo. Não cabe a nós fazer julgamentos sobre um evento que envolveu também o Papa, mas seja qual for a causa do conflito, sabemos que não foi bem gerido, deixando vazar boatos, inferências, suspeitas, gerando mais tensões. Até esta ruptura definitiva. Em nenhum lugar está escrito que coisas belas como Bose podem durar para sempre.
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Enzo Bianchi sai de Bose. A rendição e a dor de seus amigos: “É um exílio” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU