12 Fevereiro 2021
"A agressiva acidez com que se realiza a aplicação do decreto pontifício deixa francamente espantados e não pode deixar de indignar todos os que acreditaram em Bose. O padre Cencini empunha a arma do confinamento com a ferocidade dos mais sinistros contrarreformistas e em relação à reconciliação considerada impossível prefere o afastamento perpétuo do fundador de Bose da comunidade por ele instituída. Assim, ele gostaria de cancelar a história, anular a dívida simbólica que liga toda pedra de Bose ao seu fundador", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Stampa, 11-02-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Cada fundador em seu ato de fundação institui uma dívida simbólica para com todos aqueles que decidirão segui-lo. Sem esse ato original, não haveria comunidade, instituição, teoria para compartilhar. Enzo Bianchi foi o fundador da comunidade monástica de Bose. Cada pedra daquele lugar guarda a memória do seu ato fundador ocorrido na mais total solidão. Mas todo ato de fundação, se for autêntico, dá origem a uma germinação. Com o passar dos anos, Bose cresceu, se espalhou por outros locais, reuniu um povo ao seu redor. Apenas aos herdeiros legítimos cabe a difícil tarefa de reviver o ato de seu fundador, tornando-o permanentemente vivo. No entanto, isso só pode acontecer nos passos do reconhecimento daquela dívida original.
Os herdeiros legítimos são, de fato, aqueles que sabem reconhecer e assumir de modo original sua proveniência. Claro, o fundador também pode se desorientar, perder a coerência ou não abrir espaço às gerações que o seguem. Em essência, esta é a acusação que foi feita contra Enzo Bianchi por aqueles que assumiram a direção do Mosteiro após a sua renúncia e pelo decreto pontifício que pediu seu afastamento físico. Nos últimos dias, o padre Cencini - executor do decreto, psicoterapeuta e teórico conservador da homossexualidade como patologia estrutural ou não estrutural (sic!) - emitiu um ultimato com o qual intima-se que até 26 de fevereiro o irmão Enzo deve deixar Bose e ir para Cellole, a histórica sede na Toscana do Mosteiro. Alguns irmãos ou irmãs podem segui-lo, mas com a condição de que Cellole seja, por sua vez, expropriada de sua identidade.
Em suma, Enzo Bianchi não apenas será obrigado ao confinamento, mas não poderá mais fazer parte da comunidade que fundou. A agressiva acidez com que se realiza a aplicação do decreto pontifício deixa francamente espantados e não pode deixar de indignar todos os que acreditaram em Bose. O padre Cencini empunha a arma do confinamento com a ferocidade dos mais sinistros contrarreformistas e em relação à reconciliação considerada impossível prefere o afastamento perpétuo do fundador de Bose da comunidade por ele instituída. Assim, ele gostaria de cancelar a história, anular a dívida simbólica que liga toda pedra de Bose ao seu fundador. Sim, porque, de acordo com suas estranhas teorias, em cada fundador esconde-se um abusador (sic!) e Enzo Bianchi confirmaria seu teorema ao pé da letra.
O machado medieval da exclusão forçada e do despojamento do nome enfurece-se assim impiedosamente sobre o pai-demônio como se fosse uma saudável e necessária purificação. Mas não seria apenas a sua vontade dedicada à aplicação escrupulosa do conteúdo do decreto, mas também a dos herdeiros de Bose, ou seja, da maioria dos irmãos e irmãs que, seguindo o passo profético de Enzo Bianchi, construíram a extraordinária realidade daquele Mosteiro. O pai revelou-se a seus olhos como patrão, um doente incurável de narcisismo, possuído por si, sem respeito pela vida sóbria e retraída de monge. O poder subiu à cabeça, se desviou da linha rigorosa de sua própria pregação. Pode ser, pode acontecer. Na verdade, todo fundador continua sendo homem e como homem carrega consigo, de maneira cristã, o pecado e a contradição. Mas quando a dívida é rejeitada e o fundador destinado ao confinamento, mesmo aqueles que poderiam ter boas razões para apresentar credenciais para o direito de sucessão, infelizmente se encontram no erro e na violência.
Um homem idoso e doente a quem devem sua casa em Bose é exilado, obrigado a viver sem nem mesmo poder guardar o nome de sua criatura. Ninguém fica indignado? Nenhum cristão levanta a voz para defender o indefeso, o pai atingido no coração pelos filhos com a cumplicidade invejosa do padre Cencini? O Papa Francisco é o único que tem a autoridade e o olhar para salvar Enzo Bianchi de uma humilhação que ele não merece. Não em nome da piedade cristã, mas da simples solidariedade humana. Que deixem morrer o velho monge em seu eremitério nas colinas perto de Bose. Que parem com a perseguição, que não façam mais mal ao irmão Enzo, a quem devem a vida de Bose. Que intervenha a palavra de outro pai, daquele que realmente sabe o que é a graça do perdão. Seria um gesto capaz de iluminar a própria Bose, salvando-a do desespero dos filhos parricidas.
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Um machado medieval no prior de Bose. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU