03 Setembro 2020
Fala o Padre Amedeo Cencini, encarregado de implementar o decreto da Secretaria de Estado: toda a comunidade eclesial está empenhada, em espírito de fraternidade, para recompor os pontos de vista diferentes.
Muitas palavras foram gastas a respeito de Bose nos últimos meses. Algumas coerentes. Outras menos. É difícil desvencilhar-se na complexidade da situação que envolveu a comunidade e seu fundador, Enzo Bianchi. Melhor, portanto, deixar a palavra para quem realmente conhece os fatos. Como o padre Amedeo Cencini, delegado apostólico em Bose. Ou seja, aquele que, depois de ter sido visitante apostólico, agora passa a ser o encarregado de implementar o decreto da Secretaria de Estado, “aprovado expressamente pelo Papa”. Importante porque, como aponta o religioso, psicólogo e psicoterapeuta, a de Bose é hoje uma história que diz respeito a toda a Igreja.
A entrevista é de Luciano Moia, publicada por Avvenire, 02-09-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Alguns argumentam que a verdadeira razão para o afastamento de Enzo Bianchi é a vontade da Igreja de redimensionar o papel da comunidade e seu carisma profético. É isso mesmo?
Sei que alguns comentaristas, sem tanta imaginação, voltaram ao velho e obsoleto esquema de contraposição entre instituição e carisma, entre autoridade e profecia. Mas posso garantir que não é absolutamente o caso. Não o é, porque a vontade da Igreja e da Secretaria de Estado é diferente nesse episódio, explicitada várias vezes e também evidente na Carta ao Prior do Cardeal Pietro Parolin, na qual se convida a recuperar e viver plenamente os valores carismáticos de Bose, aqueles valores que a comunidade de Bose pôs ao serviço da vida da Igreja e das Igrejas nos últimos anos e que tanto bem fizeram a tantas pessoas, crentes e não crentes, que redescobriram nessa comunidade a fé ou um caminho mais autêntico. para vivê-la. Eu poderia citar aqui alguns desses valores: a abertura ecumênica (em Bose não se reza simplesmente pela unidade dos cristãos, mas se faz ecumenismo), a beleza da liturgia (a oração dessa comunidade é uma revelação da beleza, da beleza de Deus), a forma profética da vida monástica (Bose tenta traduzir uma certa sabedoria e estilo de vida monásticos em sabedoria e estilo atuais, eloquentes para o homem e a mulher de hoje). Nem eu, em nível pessoal, me sinto como um reformador e com o mandato de fazer uma reforma. Sempre apreciei Bose e seu espírito, o Fundador e a comunidade, e só pretendo dar a minha contribuição para que a Bose continue a ser uma referência para muitos, dentro e fora da Igreja, superando este momento difícil.
Turim, na Itália. (Foto: Dona Arquiteta)
No decreto de maio passado, são explicadas as razões para a disposição com o desejo de restaurar a serenidade entre os membros da comunidade. Não teria sido possível atingir o mesmo objetivo deixando Bianchi em Bose?
Acredito que essa possibilidade tenha sido a primeira a ser tomada em consideração pelos redatores do decreto. Se não foi adotada, significa que o tipo de problemas e tensões internas à comunidade, com o consequente sofrimento, foram tais a recomendar outro tipo de intervenção. Certamente doloroso, principalmente para os quatro que são os primeiros destinatários do decreto, inclusive excessivo quando visto de fora. Mas aqui seria necessário entrar na vivência dessa comunidade e refazer a sua história desde o início, em particular a dos últimos vinte anos. Além disso, deve-se dizer que Bose se encontra em um momento que muitas vezes foi crítico e até de divisão para muitas instituições jovens: o da passagem do Fundador (com seu carisma) à comunidade e, em especial, a quem assumirá seu lugar na liderança comunitária, e também na leitura do carisma. É uma crise fisiológica e natural, na qual é bom que a própria comunidade se mova sozinha, assim como é bom que o Fundador se distancie dela (como fizeram muitos Fundadores).
Bose, em Turim, na Itália. (Foto: Google Maps)
A comunidade implementada por Enzo Bianchi nos anos 1960 vive "uma crise fisiológica e natural, a da passagem do fundador ao seu sucessor". Uma situação complexa que abrange os últimos vinte anos.
Fala-se muito, com razão, dos sofrimentos suportados por Enzo Bianchi. É totalmente compreensível, sendo um homem de 77 anos com alguns problemas de saúde inevitáveis que é chamado a se afastar de sua residência. Porém, nunca se fala dos sofrimentos vividos pelos outros membros da comunidade, quase 90 irmãos e irmãs, que expressaram uma posição muito explícita sobre o caso. É verdade que alguns deles, justamente pela dificuldade de se chegar a uma solução equilibrada, estão tendo que lidar com diversos sofrimentos psicológicos?
Agradeço-lhe por essa pergunta que toca num ponto muito importante e delicado. Muitos reduzem o caso Bose a uma questão de disposições disciplinares para algumas pessoas, ignorando praticamente a comunidade. Ou estão preocupados, e com razão, como você diz, pelo sofrimento daqueles que são diretamente afetados pelas sanções do decreto, mas sem qualquer atenção a um sofrimento que está presente em Bose há anos, e que talvez por muito tempo tenha permanecido abaixo do radar, não considerado, e que deveria ao contrário ser reconhecido e compreendido. A atenção deve ir em ambos os sentidos. É precisamente por isso que trabalhamos com toda a fraternidade, a nível individual e comunitário, e não apenas para acolher e "curar" essa dor, mas para eliminar o máximo possível as suas raízes.
O decreto aprovado pelo Papa visa sanar os sofrimentos destes anos.
A obediência beneficiaria a todos.
O senhor pensa que o papel propositivo que Bose teve nas últimas décadas, do diálogo ecumênico, da espiritualidade, do papel da vida consagrada, deva ser revisto na “nova Bose” que nascerá da aplicação do decreto?
Em primeiro lugar, não parece apropriado falar de uma "nova Bose" que deveria nascer; a Carta do Secretário de Estado ao prior e à comunidade – documento distinto do decreto relativo ao Fundador e aos outros dois irmãos e à irmãs cujos afastamentos foi solicitado – não visa criar uma "nova Bose", mas sim um reconhecimento do carisma fundador de Bose e sua adequação formal à evolução histórica conhecida nesses cinquenta anos de existência. Reconhecimento que, reiteramos, nasce de uma vontade da Igreja de que esse dom permaneça. Além disso, cada instituto é chamado a viver em constante espírito de atenção ao dom recebido, para que seja fiel à inspiração originária e, ao mesmo tempo, esteja em sintonia com a história, da Igreja e do homem. Às vezes esse trabalho também comporta o esforço de compor diferentes pontos de vista, mas com certeza é um trabalho importante e que deve ser enfrentado com coragem. Mas isso não significa alterar tudo, isso deve ficar claro. E é também o trabalho que teremos que desenvolver em Bose, bem conscientes de que aqui se encontra um dom extraordinariamente fecundo e atual, que já deu frutos e que, estou certo, dará mais ainda.
Mosteiro de Bose. Foto: Vatican News
O senhor não acredita que o acolhimento em espírito de obediência da vontade expressa pelo Papa Francisco para o bem de Bose e seu futuro acabe se traduzindo em benefícios espirituais para a própria comunidade, enquanto este longo confronto esclerosado corre o risco de abrir o caminho a um mal-estar que afeta toda a comunidade eclesial?
Certamente, porque obedecer significa ouvir a realidade, aprender a ler os sinais do divino em cada fragmento da vida ou em cada relação, significa confiar em Deus tanto quanto confiar nas suas mediações humanas, não presumir por si só, ser livres para acolher um ponto de vista diferente do próprio, entrar na lógica do mistério ... O acolhimento em espírito de obediência beneficiaria a todos e a cada um, esclarecendo que a essa obediência são chamados não só, mais uma vez, os destinatários primeiros do decreto, mas todos. E se se trata de uma obediência difícil, é precisamente a história que nos diz que onde a adesão é mais laboriosa e complexa, ali há ainda mais graça e bênção para quem – obedecendo – confiou e se confiou, e para toda a comunidade. Muitas vezes as coisas mais belas e importantes vieram precisamente da disponibilidade "obediente" de quem aceitou em dizer sim a algo difícil de compreender (pensemos em Maria). Então resulta um bem para toda a Igreja. É também por isso que o episódio de Bose hoje é cada vez mais um episódio eclesial.
A crise de Bose não surgiu nos últimos meses. Já em 2014, o então prior Enzo Bianchi tentou enfrentá-la pedindo ajuda a dois especialistas de vida monástica. Mas os resultados não foram os esperados. O problema não se resolveu nem mesmo quando, em janeiro de 2017, Bianchi deixou a liderança da comunidade para Luciano Manicardi. Foi a própria comunidade, quase 90 irmãos e irmãs, a pedir a ajuda da Santa Sé para conseguir ter alguma luz. Assim, entre 6 de dezembro de 2019 e 6 de janeiro de 2020, três visitantes apostólicos – o padre beneditino Guillermo Leon Arboleda Tamayo, a abadessa de Blauvac, madre Anne-Emmanuelle Devêche e o padre canossiano Amedeo Cencini – chegaram a Bose e ficaram um mês ouvindo todos os membros da comunidade. De seu relato surgiu o decreto da Secretaria de Estado que, em 13 de maio, impôs que Enzo Bianchi, Goffredo Boselli, Lino Breda e Antonella Casiraghi se afastassem da comunidade mesmo continuando a serem membros. O padre Amedeo Cencini, nomeado delegado apostólico, deve implementar o documento do Vaticano. Uma negociação difícil, mas o delegado pontifício e a comunidade “estão confiantes de que a situação possa ser resolvida o mais rápido possível”.
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“Vamos manter o dom de Bose. Profecia que a Igreja quer relançar”. Entrevista com Amedeo Cencini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU