19 Fevereiro 2021
"A linguagem do Papa é muito simples, imediata, compreensível por qualquer pessoa. Essa habilidade vem a Francisco de sua vida em contato constante com as pessoas", escreve o padre jesuíta Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 18-02-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
O que preocupava D. Jorge Mario Bergoglio, Arcebispo de Buenos Aires, já em 1999, falando à Associação Cristã de Empresários, era o que ele chamava de “um processo de esvaziamento das palavras (palavras sem peso próprio, palavras que não se tornam carne). Esvaziam-se de conteúdo, portanto Cristo não entra nelas como pessoa, como ideia.
Há uma inflação de palavras. Vivemos em uma cultura nominalista. A palavra perdeu peso, é oca. É desprovida de suporte, desprovida da 'centelha' que a torna viva e que consiste precisamente no silêncio”. (...)
Bergoglio é um grande comunicador. Não é porque adote estratégias específicas, mas porque se sente livre para ser e se comunicar. Sua mensagem é, portanto, capaz de tocar as pessoas de forma imediata, direta e intuitiva. Em particular, a sua capacidade comunicativa está enraizada na vivência pastoral e em uma torção do corpo e da palavra.
Torção do corpo: sua autoridade nunca se expressa de forma estatuária, mas até sua própria corporeidade se desequilibra no interlocutor. Às vezes até parece perder o equilíbrio.
Torção da linguagem: o Papa gosta de usar um vocabulário de verbos, mas também de imagens inesquecíveis e neologismos.
A linguagem também perde o equilíbrio da formalidade. Às vezes, Francisco usa pronúncias incomuns de palavras italianas, mas torcidas em formas dialetais que ele retira da memória de seus ancestrais, especialmente de sua avó. Em uma palavra: realiza uma comunicação autêntica, solta e eficaz.
Sua linguagem é radicalmente "oral" porque é radicalmente pastoral. A reflexão escrita é também a formalização de um texto que é pensado dentro de numa interlocução. É por isso que o Papa está sempre dentro do evento comunicativo, ele o cria e desenvolve a partir de dentro: ele não é o ator de uma parte escrita ou de um discurso escrito.
Portanto, mais que "comunicar", o Papa Francisco cria "eventos comunicativos", nos quais se pode participar ativamente. A esse respeito, notamos uma coisa: Papa Francisco e João Paulo II são duas grandes figuras de comunicadores, mas por razões opostas, em certo sentido. João Paulo II, amante da densidade da palavra e da palavra poética, modelava o gesto ao ritmo da palavra. Era a palavra que fazia florescer o gesto e o ritmo. Para Francisco é o contrário: é o gesto que libera a palavra e a molda.
Há, portanto, uma oralidade radical na palavra de Bergoglio: a carta, a correspondência, a palavra escrita por ser buscada deve trazer consigo as raízes da oralidade. E essa oralidade costuma ser maternal, misericordiosa.
Para o Papa Francisco, o pregador, em particular, é uma mãe, deve usar uma língua "materna", isto é, aquela que tenha o sabor original da "língua materna", simples, do latim sine plica.
Simplicidade diz respeito à linguagem que deve ser bem compreensível para não correr o risco de ser uma conversa vazia. Como se consegue adaptar-se linguagem dos outros para alcançá-los com a Palavra de Deus? O Papa responde na Evangelii Gaudium: “deve-se escutar muito, é preciso partilhar a vida das pessoas e prestar-lhes benévola atenção” (n. 158). A linguagem do Papa é muito simples, imediata, compreensível por qualquer pessoa. Essa habilidade vem a Francisco de sua vida em contato constante com as pessoas.
Francisco fala a linguagem da vida e da fé, o que é obviamente mal interpretável, uma vez que não segue por argumentos lógico-formais rígidos. Não tem a intenção de escrever comunicados de imprensa ou dar aulas; quer abrir um diálogo.
Aqueles que o acusam de ambiguidade não compreenderam o terreno existencial e empírico de onde parte seu discurso. É na relação direta, autêntica e livre de assimetrias que ele vivencia a contundência e a novidade de sua transmissão da mensagem. Nesse sentido, é uma linguagem radicalmente pastoral.
Mas é precisamente esse caráter pastoral que lhe confere uma vibração poética. A linguagem bergogliana é muito rica em metáforas, provérbios, expressões idiomáticas, neologismos e figuras retóricas que vêm não do culto da palavra elegante, mas ao contrário do jargão, do porteño, da conversa de rua absorvida pela vida cotidiana ou pela relação pastoral com os fiéis.
Francisco - como o foi Roland Barthes, grande estudioso da linguagem inaciana dos Exercícios Espirituais - sabe que falar do amor, mesmo do amor de Deus, significa enfrentar a confusão da linguagem: aquela zona confusa em que a linguagem é ao mesmo tempo muito e muito pouco, excessiva e pobre. Mesmo os de Francisco, a seu modo, são "fragmentos de um discurso amoroso". É a linguagem, poética e popular, dos profetas do Antigo Testamento.
Seria um erro trágico acreditar que a linguagem simples de Francisco seja fruto de uma certa ingenuidade. Na realidade, devemos lembrar aqui que o Papa Francisco ensinou literatura: e não apenas sua história, mas também a escrita criativa. Bergoglio amou muitos poetas e escritores: de Borges a Hölderlin, de Marechal a Manzoni, de Bloy a Pemán ... São autores de quem extrai citações ocultas que aparecem aqui e ali em seus discursos: nunca como citações eruditas, mas como partes espontâneas de sua fala, metabolizadas por processo interno. Mas é justamente o gosto da palavra primitiva, ainda colhida com suas raízes que afundam no solo da experiência, que o leva a estar atento à palavra que emerge da experiência e a reproduzi-la mimeticamente.
No fundo, aqui está um desafio à linguagem teológica: ela também corre o risco de ser influenciada pelo "paradigma tecnocrático". Seu tecnicismo excessivo também beira a burocracia. Portanto, às vezes o Evangelho é pregado em linguagem "de padre". Nada mais longe do que Bergoglio deseja alcançar. Seu objetivo é a liberação da energia própria do logos evangélico.
Não só isso: a linguagem teológica corre o risco de se tornar um produto da fraqueza do logos ocidental, pelo que a procura de uma linguagem que justifique a racionalidade da fé, acaba por se arriscar a afastar-se da questão do futuro real da fé, e sua tarefa de anúncio querigmático. É por isso que traduzir Bergoglio é muito difícil, mais do que se possa ingenuamente pensar. Mais do que gramática, a prosa de Bergoglio precisa de uma análise poética e linguística.
Basicamente, portanto, a pregação bergogliana, olhando bem, questiona o próprio horizonte da possibilidade da comunicação do cristianismo. Este é o seu verdadeiro ponto crucial. (...)
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O Papa de rua não fala como padre. Artigo de Antonio Spadaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU