Ir e ver, fazer experiência, tocar com as mãos. Com tais indicações, Francisco aponta para uma comunicação capaz de sentir a realidade em primeira pessoa, e não apenas de narrá-la pela boca das fontes autorizadas. Para dar sentido à realidade complexa e muitas vezes caótica em que vivemos, é preciso senti-la, em primeiro lugar.
A opinião é de Moisés Sbardelotto, jornalista e doutor em Ciências da Comunicação. Seu livro mais recente é "Comunicar a fé: por quê? Para quê? Com quem?" (Ed. Vozes, 2020).
Gastar as solas dos sapatos indo aonde ninguém vai. E depois voltar para contar e compartilhar com honestidade essa experiência com os demais. Esse é o “método” proposto pelo Papa Francisco aos comunicadores e comunicadoras em sua mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais deste ano.
Francisco pede comunicadores que não sejam meros “espectadores externos” da realidade, mas que saiam da presunção do “já sabido”, que não se contentem com uma informação pré-fabricada, construída sem sair das redações ou da própria casa, na frente do computador, sem encontrar as pessoas. Uma informação fotocopiada, sempre igual, “palaciana”, autorreferencial e narcísica, segundo o papa, é incapaz de perceber “a verdade das coisas e a vida concreta das pessoas”.
Ao invés disso, os comunicadores precisam se pôr em movimento, indo ver a realidade dos fatos, estando com as pessoas e ouvindo-as, experimentando “a vida como ela é”, nas palavras do também jornalista Nelson Rodrigues. Para isso, é preciso “uma curiosidade, uma abertura, uma paixão”. Assim é possível recolher as sugestões da realidade, que sempre surpreende.
A inspiração dessa “comunicação em saída” vem do Evangelho de João (1, 45-46), quando Filipe conta a Natanael o seu encontro com Jesus de Nazaré. Natanael, porém, lhe questiona: “De Nazaré pode vir alguma coisa boa?”. Filipe não tenta convencê-lo com raciocínios teóricos, mas simplesmente lhe diz: “Venha e veja”. Natanael, por sua vez, vai e vê, faz a experiência, e a partir daquele momento sua vida muda. “A fé cristã – afirma o papa – começa assim. E se comunica assim: como um conhecimento direto, nascido da experiência, e não por ouvir dizer.”
A própria atratividade de Jesus sobre quem se encontrava com ele – como Filipe e Natanael – não dependia apenas da verdade da sua pregação e do “conteúdo” transmitido. Não era mero proselitismo da boca para a fora, como o de muitos pseudopregadores que “falam muito mas não comunicam nada”, parafraseando a citação trazida pelo papa do “Mercador de Veneza”, de Shakespeare.
Os discípulos não só ouviam Jesus, mas o viam falar. Ele encarnava um “estilo” comunicacional evangelizador, poderíamos dizer. Comunicava a vida vivendo, comunicava o amor amando.
Sua “eficácia” comunicacional se devia à sua coerência de vida, ao seu testemunho, pois “aquilo que ele dizia era inseparável do seu olhar, das suas atitudes e até dos seus silêncios”, lembra Francisco. Como Logos encarnado, “a Palavra se fez Rosto, o Deus invisível se deixou ver, ouvir e tocar”, afirma o papa.
O testemunho cristão, quando vivido com honestidade em tudo o que a pessoa faz e deixa de fazer, é capaz de comunicar um “excesso” de humanidade a quem aceita o desafio de “ir e ver”. É capaz de comunicar esse “excesso” mesmo quando usa somente palavras, pois a outra pessoa, ao lê-las, poderá “tocar com as mãos o milagre palpitante da vida”, como disse o bem-aventurado Manuel Lozano Garrido (1920-1971), jornalista espanhol citado pelo papa.
Ir e ver, fazer experiência, tocar com as mãos. Com tais indicações, Francisco aponta para uma comunicação capaz de sentir a realidade em primeira pessoa, e não apenas de narrá-la pela boca das fontes autorizadas. Para dar sentido à realidade complexa e muitas vezes caótica em que vivemos, é preciso senti-la, em primeiro lugar.
Em outras palavras, se por um lado comunicar é construir sentidos sobre o mundo, por outro lado, o sentido só faz sentido se for sentido. É preciso sentir os sentidos para fazer sentido. Daí a necessidade de uma comunicação sensível, isto é, que sente e também faz sentir, que é sensível e também sensibiliza. Uma comunicação sensível no tratamento das pessoas e das realidades, capaz de sentir os sentimentos em jogo, e de comunicar sentidos com sensibilidade.
Não se trata de cair na armadilha (ou tentação) de uma comunicação “sensacionalista”, que explora as emoções e a sensibilidade alheias para ganhar audiência e lucrar com espaços publicitários. Em tais casos, “a emoção está aí a serviço da produção de um novo tipo de identidade coletiva e de controle social, travestido na felicidade pré-fabricada”, como afirma Muniz Sodré (“As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política”, Vozes, 2006, p. 51).
Pelo contrário, a comunicação sensível é estética, em sentido profundo, e não apenas lógico-racional-analítica. Trata-se de uma comunicação que passa pela sensorialidade, pela sensibilidade, pela paixão, pelo afeto e pela afeição em relação às pessoas e à realidade. Com isso, ela também possibilita que o outro a quem se comunica algo “sinta na pele” o fato narrado e faça uma experiência do fragmento de vida que lhe foi compartilhado.
No contexto comunicacional atual, é urgente outra comunicação, “capaz de liberar o agir comunicacional das concepções que o limitam ao nível de interação entre forças puramente mecânicas e de abarcar a diversidade da natureza das trocas, em que se fazem presentes os signos representativos ou intelectuais, mas principalmente os poderosos dispositivos do afeto”, continua Sodré (p. 12).
Uma comunicação sensível busca devolver a “alma” aos processos comunicacionais. Trata-se de vencer a “anestesia” diante da realidade com a “estesia”, a sensibilidade ética e estética. Para o comunicador, o conhecer não pode se separar do sentir. Tal comunicação busca dar “inteligibilidade ao sensível”, com “a disponibilidade para sentir e a disposição para compreender”, de acordo com Eric Landowski (“Para uma semiótica sensível”, p. 101, disponível aqui). É preciso recuperar a síntese e superar a dicotomia entre o sensível e o inteligível: quanto mais sensível, mais inteligível, e, portanto, mais comunicável.
O desafio é pôr fim à ditadura da razão funcionalista e instrumentalista nos processos de comunicação, que impõe quimeras como a objetividade (que se converte em objetificação), a imparcialidade (que se traduz em partidarismos velados), a isenção (que acaba revelando compromissos escusos) e a neutralidade (que evidencia preconceitos implícitos). Uma comunicação pautada em tais pressupostos facilmente “lava as mãos” diante da realidade, manifestando muitas vezes desinteresse e indiferença diante das injustiças. Por outro lado, também é necessário pôr fim à irracionalidade da própria razão, que, no extremo, leva a fenômenos como a atual infodemia, que espalha os “vírus” da mentira, dos boatos, da má informação, dos preconceitos, da discriminação, da xenofobia, da violência verbal, dos discursos de ódio.
Ao invés disso, uma comunicação sensível busca pôr em prática “outras formas de exercício da razão como a razão sensível, simbólica e ética, fundamentais para a vida social”, e “nos desperta o reencantamento e o cuidado pela vida”, como afirma Leonardo Boff. Quem deseja dar conta da sensibilidade humana e social que emerge na realidade, segundo Michel Maffesoli, precisa viver a “inegável sinergia entre a razão e os sentidos” (“Elogio da razão sensível”, Vozes, 1998, p. 28), e integrar essa globalidade em sua análise, como no caso dos comunicadores em geral.
Para comunicar aquilo que se sente e fazer sentir aquilo que se comunica, três elementos são essenciais: emoção, empatia e compaixão, que estão intimamente ligados ao movimento de “ir e ver”.
Emoção vem do latim emovere, ou seja, um movimento do espírito diante do mundo. Uma comunicação sensível se co-move diante da realidade a ser narrada, caminha no mesmo ritmo dos acontecimentos, calça as mesmas sandálias dos sujeitos envolvidos, põe-se na mesma sintonia do outro. Não por acaso, o próprio Jesus se “comoveu” ao saber da morte de Lázaro e ver Marta, Maria e seus amigos chorando (cf. Jo 11,33).
Já a empatia vem do grego em-patheia, ou seja, sentir junto, comungar o mesmo “sentimento amoroso do mundo”, praticando uma “aceitação irrestrita da diferença”, sem julgamentos prévios ou posteriores, como define Sodré (p. 53). É por isso que Jesus não apenas se comove com a dor e o pranto de Marta e Maria, mas comunga o mesmo sentimento e também chora (cf. Jo 11,35).
E compaixão vem do latim com-passione, ou seja, experimentar o sentimento alheio, viver a paixão do outro. No grego dos Evangelhos, compaixão (splagchnizomai) significa ser “movido pelas entranhas”. Jesus também põe-se em movimento, vê as multidões e “tem compaixão” delas, porque estão cansadas e abatidas como ovelhas sem pastor (cf. Mt 9,36). Trata-se de um sentimento visceral que se repete nos Evangelhos, significativamente, nos personagens do bom samaritano e do pai do filho pródigo.
Ir ver a realidade e contá-la com emoção, empatia e compaixão é apostar na “força revolucionária da ternura e do afeto”, como ressalta Francisco (Evangelii gaudium, n. 288). É encurtar a distância em relação à miséria humana, entrar em contato com a vida concreta, tocando a “carne sofredora dos outros”: “Quando o fazemos, a vida complica-se sempre maravilhosamente” (EG, n. 270, grifo nosso). Experimentar a maravilhosa complexidade da realidade é o desafio assumido por uma comunicação sensível.
Com emoção, empatia e compaixão, uma comunicação sensível busca reconectar logos e pathos, razão e paixão, narração e experiência. Assim, permite religar no processo comunicacional também a cabeça, o coração e as mãos, como afirma Francisco, para pensar aquilo que se sente e se faz, sentir aquilo que se pensa e se faz, e fazer aquilo que se sente e se pensa. E poderíamos articular ainda um quarto elemento, que aparece na mensagem deste ano: os pés, que gastam as solas dos sapatos para “ir e ver”, e assim sentir, pensar e fazer.
Como diz o papa, todos somos responsáveis pela comunicação que fazemos e podemos assumir um papel de testemunhas de realidades negligenciadas pela chamada “grande mídia”. “Graças à rede, temos a possibilidade de contar o que vemos, o que acontece diante dos nossos olhos.”
Por isso, todos somos chamados a ser “testemunhas da verdade”, não uma verdade teórica e ab-soluta (sem vínculos), mas uma verdade encarnada na realidade e nas relações, e, portanto, relacional. Que só é encontrada, como diz Francisco, no movimento de “ir, ver e partilhar” as experiências e as vivências especialmente de quem mais sofre abusos e injustiças, como as minorias perseguidas, os pobres e a criação.