19 Agosto 2015
"A linguagem não é apenas uma ferramenta, mas uma forma distinta para teologia; ela dá forma e contorno à teologia. O novo estilo de discurso do Vaticano II foi o meio que transmitiu uma mensagem nova. A um determinado tipo de linguagem corresponde um tipo de teologia.
A diferença entre Bento XVI e Francisco é mais linguística que doutrinária. É, porém, uma diferença muito significativa que altera, significativamente, o modo como a doutrina é pensada, ensinada e recebida", é a opinião de Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em artigo publicado no Global Pulse, 17-08-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Francisco de Assis não é apenas um dos santos e figuras lendárias mais famosos da Igreja. Ele também é considerado um escritor pioneiro.
Especialistas em linguagem consideram o seu “Cântico das Criaturas” (Cantico delle criatura) como um dos primeiros textos da história da literatura italiana “moderna”.
E, assim como o santo cujo nome assumiu quando foi eleito Bispo de Roma em 2013, o Papa Francisco também tem uma maneira interessante de usar o idioma.
A língua materna do papa argentino é o espanhol, evidentemente, e isso acrescenta um charmoso sotaque ao seu domínio perfeito do italiano. Ele não é tão fluente em outros idiomas – como o inglês, o francês e o alemão – como o eram Bento XVI e João Paulo II.
No entanto, há uma diferença linguística mais substancial que o marca na relação com os seus dois mais recentes antecessores. A linguagem de Francisco é muito mais rica em metáforas, provérbios e expressões idiomáticas. Ele tende a criar novos verbos e substantivos (como, por exemplo, misericordiare, “misericordiando”, e rapidacion, “rapidização”). A linguagem do papa de 78 anos é muito mais expressiva e figurativa do que comunicativa. Ela é não acadêmica, pois é existencial e derivada de muitos anos de experiência pastoral como sacerdote, professor e bispo.
Francisco é um “papa linguístico” da mesma forma que o historiador jesuíta John O’Malley diz que o Concílio Vaticano II foi um “evento linguístico”.
A linguagem não é apenas uma ferramenta, mas uma forma distinta para teologia; ela dá forma e contorno à teologia. O novo estilo de discurso do Vaticano II foi o meio que transmitiu uma mensagem nova. A um determinado tipo de linguagem corresponde um tipo de teologia.
A diferença entre Bento XVI e Francisco é mais linguística que doutrinária. É, porém, uma diferença muito significativa que altera, significativamente, o modo como a doutrina é pensada, ensinada e recebida.
Diferentemente de seus antecessores, Francisco tem um currículo docente que se focava mais na literatura do que na filosofia. Os seus biógrafos contam como ele organizou uma palestra sobre o famoso autor argentino Jorge Luis Borges, em agosto de 1965, destinada aos seus alunos em Santa Fe.
Entre 1964 e 1965, o futuro papa ensinou Cervantes, literatura gaúcha (muito popular na Argentina, no Brasil e no Uruguai entre 1870 e 1920) e o poema épico Martin Fierro, de José Hernández. Ele salientou a importância desta experiência de ensinar literatura na entrevista que concedeu a Antonio Spadaro, SJ, editor da revista jesuíta italiana Civiltà Cattolica. (A entrevista foi traduzida e impressa simultaneamente em vários outros periódicos jesuítas).
Muitos dos que seguem de perto e observam o Papa Francisco enxergam um paralelo em sua maneira de empregar palavras e imagens. E neste paralelo se dá com o falecido escritor e cineasta italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975).
Pasolini foi um intelectual público e comunista em desacordo com a linha partidária do Partido Comunista Italiano – PCI. Relegado pela ortodoxia social ultraconformista da Itálina no pós-guerra por ser gay, Pasolini foi um “ateu crente” em busca de Jesus. Ele dedicou um poema e o seu mais famoso filme, “O Evangelho Segundo São Mateus” (1964, sem dúvida um dos melhores filmes sobre Jesus), a João XXIII, um papa cujo diário espiritual (“Diário a Alma”) Pasolini leu e analisou (de uma maneira não muito diferente da de Hannah Arendt, que disse de Roncalli como “um papa cristão no trono de Pedro”).
Assim como o Papa Francisco, Pasolini se inspirou no santo de Assis, quando em 1942 ele leu o Evangelho de Mateus pela primeira vez. Ele tinha uma alma mística que não estava em contradição com a sua paixão pela justiça social e pela educação como um meio de libertação. A sua linguagem era profundamente existencial e ele, de forma magistral, descobriu e transmitiu a experiência do povo através de seus dialetos e expressões populares, que ele via como puro e livre de sistematização.
Nas periferias das cidades, Pasolini encontrava uma humanidade que se perdeu na transição de uma cultura camponesa para a sociedade industrial do século XX. A sua paixão pelos pobres e desprivilegiados era uma paixão por uma realidade que poderia ferir-nos, mas também abrir a nossa alma.
O seu ataque contra a hipocrisia do cristianismo moralista trouxe um desafio formidável para a versão pequeno-burguesa do catolicismo italiano entre a Segunda Guerra Mundial e 1975, quando foi assassinado em um dos muitos casos político-criminais não resolvidos da Itália contemporânea.
Em Pasolini, a busca por Jesus estava enraizada em sua crítica da modernidade como desumanizante – algo muito semelhante ao que o Papa Francisco chamou de “o paradigma tecnocrático” na encíclica Laudato Si’.
Apesar das muitas diferenças, Pier Paolo Pasolini e Francisco possuem uma abordagem à linguagem um tanto semelhante: a linguagem como uma forma de libertar o Evangelho das muitas camadas ideológicas construídas sobre ele pela sobreposição do cristianismo e a civilização ocidental.
A analogia entre Pasolini e Francisco pode ser uma das razões ocultas por que certos católicos italianos acham o atual papa tão atraente, e por que não fazem o mesmo o establishment econômico e político.
Os meios de comunicação oficiais do Vaticano e a imprensa católica italiana “redescobriram” Pasolini recentemente, e isso é um indicativo de uma profunda convergência entre Francisco e o último intelectual profético e querido da Itália.
Esta questão de linguagem é central, se queremos entender Francisco.
Não se trata apenas um problema aos que precisam traduzir as palavras de Francisco para outros idiomas (conforme tentei explicar em meu artigo de 8 de janeiro intitulado “Deciphering the Pope’s Argentine Italian” e publicado no Global Pulse). É também um problema teológico, porque a linguagem de Francisco exige uma análise poética e linguística, e não apenas uma boa tradução.
Um livro publicado recentemente sobre teologia e poesia (Esodi del divino, 2014), escrito por Marcello Neri, teólogo italiano que leciona na Alemanha, lança uma luz sobre o emprego da linguagem poética na teologia. Na “caixa de ferramentas” da teología cristã (e especialmente a católica) existe, ainda hoje, muito mais filosofia do que poesia. Mas o conceito cristão de logos também tão poético quanto filosófico. E, na Bíblia, encontra-se muito mais poesia do que a filosofia.
A teologia precisa de mais poesia, especialmente hoje. Isso porque a ideia cristã de logos tem sofrido com a mesma crise que afligiu a noção racionalista de logos no mundo ocidental.
O Magistério católico tentou abordar a crise na relação entre fé e razão (especialmente através da encíclica de 1998 intitulada Fides et Ratio, de João Paulo II, e do discurso de Bento XVI em 2006 na Universidade de Regensburg). Mas, ao usar a mesma linguagem da filosofia, o ensino católico oficial foi vítima das mesmas fraquezas do logos ocidental.
A linguagem do magistério católico sobre a “razão” tentava demonstrar a racionalidade moderna do logos da fé, mas essa não é a questão em torno da qual o futuro da fé está sendo considerado.
A linguagem poética não tem a ver com a certeza da ortodoxia dogmática. Tal certeza não traz salvação ao sujeito.
“A beleza asséptica da religião institucional não mais transmite beleza – e é por isso que a Igreja como tal já não é capaz de ser a patrona das artes”, escreve Neri.
Nos países ocidentais, a teologia católica aceitou a separação entre o logos racionalista do logos da fé. A virada racionalista do cristianismo e a crise subsequente do racionalismo ocidental obscureceram o logo poético do Evangelho de Jesus Cristo.
Francisco tem se mostrado um papa verdadeiramente global, e uma das principais razões disso é que a sua linguagem não se restringe ao discurso ocidental clássico sobre o logos e as suas consequências à teologia católica. A globalização do catolicismo está sendo acelerada na medida em que o papa e o resto da Igreja encontram novas expressões linguísticas para uma fé sempre antiga, sempre nova.
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A linguagem do Papa Francisco: Mais poesia do que ortodoxia dogmática. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU