22 Mai 2013
Jorge Mario Bergoglio é o primeiro papa que podemos definir como verdadeiramente global. Não só porque foi descoberto "quase no fim do mundo", como ele disse brincando de si mesmo. As dinâmicas do conclave dos dias 12 e 13 de março mostraram o fim de uma era para o Vaticano. As Américas passaram da periferia para o coração do mundo católico. O eurocentrismo acabou. E a criação de um conselho de oito cardeais tomados dos cinco continentes para participar das decisões de Francisco, no dia 14 de abril, confirma a intenção de revolucionar o governo da Igreja.
A reportagem é de Massimo Franco, publicada pelo jornal Corriere della Sera, 19-05-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A escolha de se chamar Francisco é mais um sintoma da sua natural atenção pelos pobres das favelas superpovoadas das maiores cidades do mundo. A abordagem nasce principalmente da sua experiência cotidiana como arcebispo de Buenos Aires, atento à pobreza de gigantescas periferias, e reflete uma tendência mundial.
As tendências para 2030 do US National Intelligence Council dizem que, nos próximos 20 anos, o número das megacidades vai crescer, criando áreas "periurbanas" e "megarregiões" que se tornarão poderosos atores não estatais, superando as dimensões nacionais.
Francisco representa esse deslocamento de prioridade. E sinaliza uma notável diversidade com relação aos seus antecessores. João Paulo II foi eleito em 1978 e, como pontífice polonês, contribuiu para o colapso do império soviético. Primeiro não italiano depois de cerca de 400 anos, ele viajou para mais de 120 países. Mas Wojtyla foi um globetrotter, mais do que um papa global. Os seus valores culturais e geopolíticos eram influenciados pela experiência como sacerdote que viveu atrás da Cortina de Ferro comunista durante a Guerra Fria.
E ainda menos global foi o alemão bávaro Bento XVI, com a sua abordagem intelectual. Joseph Ratzinger representou a tentativa de reconquistar a Europa ao catolicismo, enquanto o eurocentrismo havia acabado. E, permanecendo enredado e bloqueado pela Cúria Romana, ele demonstrou o quão difícil era qualquer reforma. A sua "abdicação", quase sem precedentes, foi um gesto traumático e desesperado, destinado a mudar o perfil plurissecular do papado e a mostrar a frustração diante da impossibilidade de emancipar o Vaticano de centros de poder enraizados profundamente.
Dessacralização papal?
Nos próximos meses, assistiremos a tentativa de arquivar a "renúncia" de Bento XVI como uma exceção, e não como um precedente. Caso contrário, se acentuaria a dessacralização do papel papal, desorientando a comunidade católica mundial; mas, acima de tudo, se poderia ter outra consequência, mais política: a possibilidade teórica de provocar novas renúncias na cúpula poderia se tornar um perigoso convite para desestabilizar um futuro pontificado com campanhas internas ou externas à Igreja.
A escolha de Bergoglio, seu concorrente no conclave de 2005, poderia ser uma tentativa de recomeçar do zero e de colocar entre parênteses Ratzinger, o "papa emérito". Francisco, primeiro pontífice jesuíta, marca uma potencial revolução. Ele foi escolhido como reformador da Cúria, homem capaz de enfrentar e resolver os escândalos, e como diretor chamado a globalizar o Vaticano.
E, ao contrário do que foi escrito e pensado no início, é provável que a sua eleição não tenha sido de última hora. Senão programada, foi ao menos examinada e discutida alguns dias antes da abertura do conclave e depois aprovada por muitos cardeais norte-americanos e alemães, e por alguns italianos inimigos da Cúria.
Primeiro, Bergoglio parecia um candidato de segunda linha depois do arcebispo de Milão, Angelo Scola, e o de São Paulo, no Brasil, Odilo Scherer, este último com estreitos laços curiais. Scherer, de fato, havia sido durante muito tempo membro do conselho de superintendência do IOR, o banco vaticano, e próximo do polêmico secretário de Estado, Tarcisio Bertone.
Bergoglio, ao invés, é realmente um "estrangeiro". E, embora o seu nome tivesse sido mantido encoberto para evitar queimá-lo, ele pairava na mente de muitos dos 115 cardeais eleitores. No dia 10 de março, dois dias antes que o conclave se abrisse, Bergoglio encontrou Mons. Thomas Rosica, canadense e presidente de Salt and Light, a mais poderosa TV católica do Canadá. Passearam e falaram na Praça Navona. E Rosica perguntou ao então cardeal por que ele parecia um pouco nervoso. "Reza por mim", respondeu-lhe o então arcebispo de Buenos Aires. "Eu não sei o que os irmãos cardeais estão me preparando no conclave". Outro indício foi fornecido por Timothy Dolan, presidente da Conferência dos Bispos dos EUA, quando ele disse que até o dia 14 de março haveria um novo pontífice.
Ele foi profético: Francisco foi eleito ainda no dia 13. Um dos motivos foi a divisão do chamado "partido italiano", que contava até com 28 de 115 grandes eleitores. A ambição de fazer com que um italiano voltasse ao sólio de São Pedro não era acompanhada nem por razões georreligiosas, nem por uma visão ou um primado estratégico.
E os escândalos na Cúria, o furto de documentos confidenciais do apartamento papal por parte do mordomo de Bento XVI, Paolo Gabriele, somados aos conflitos entre cardeais e bispos, levaram a excluir da lista de papáveis os italianos, vistos como membros de um poison and dagger club (expressão usada por um norte-americano: uma confraria habituada a usar "venenos e punhais"), da verdadeira lista dos concorrentes. Pela primeira vez, os candidatos provenientes do Novo Mundo eram mais numerosos do que os europeus, asiáticos e africanos.
Renovação e renascimento
Em Roma, para a investidura de Bergoglio, o vice-presidente dos EUA, Joe Biden, contou com um toque de orgulho que o arcebispo de Boston, Sean O'Malley, quase, quase se tornou pontífice.
O catolicismo norte-americano se apresenta hoje como a base para uma renovação e um renascimento da Igreja Católica. E o mandato de Francisco parece exatamente isso: abrir a Igreja às periferias mundiais; libertar o Vaticano de pessoas comprometidas nos escândalos; mudar a estrutura e os objetivos do IOR; reescrever e ressuscitar a agenda de política externa da Santa Sé depois daquela que foi percebida no plano internacional como a passividade do pontificado de Bento XVI; e reconstruir a imagem amarrotada da Igreja, voltando a privilegiar os pobres.
Este último objetivo é mais fácil do que se libertar de hábitos mentais enraizados na Cúria Romana. Francisco já deu sinais inequívocos no plano social, mas, nos aspectos doutrinais, é difícil pensar em qualquer ruptura. A oposição ao aborto e aos casamentos homossexuais, para citar dois temas-símbolo, é um fundamento da luta da Igreja Católica contra aquilo que ela define como relativismo moral.
Há algum sinal tímido em matéria de garantias para os casais de fato, mas não é previsível que o novo pontífice irá se distanciar das posições tradicionais. Entre os seus grandes eleitores, acima de tudo, estão os cardeais norte-americanos, críticos com relação às posições para eles liberais demais dos democratas e do governo Obama. "Nas relações EUA-Vaticano", confidenciou com uma pitada de pessimismo um diplomata obamiano de primeiro plano, "não prevemos mudanças".
Um papa proveniente da América Latina, sugeriu em 2009 o vaticanista John Allen, significa ceticismo com relação ao capitalismo e à globalização; debate cultural duro com os EUA, apesar do número crescente da população católica de língua espanhola; mais atenção ao ambiente; e pacifismo.
Por isso, é difícil dizer se Francisco vai mudar a abordagem vaticana sobre dossiês como a Síria, dilacerada pelo regime de Bashar al-Assad. Não se alimenta grande confiança na estratégia ocidental com relação a Damasco, e o drama das minorias cristãs no Magrebe e no Egito depois da Primavera Árabe continua sendo um aviso. O Vaticano teme a política das novas elites islâmicas nas relações com as outras religiões. E prevê que toda intervenção militar na Síria guiada pelo Ocidente pode piorar a situação dos cristãos.
Banco do Vaticano
No curto prazo, é provável, portanto, que se vejam maiores mudanças em Roma: na Roma papal. O novo pontífice quer erradicar a imagem de um papado preso em uma "bolha" autorreferencial e bloqueado pela Cúria. E o IOR, o Instituto para as Obras de Religião, o chamado "Banco do Vaticano", poderia ser o símbolo e a cobaia dessa transformação. A grande incógnita é quanto Francisco saberá e poderá penetrar nos segredos mais protegidos da Santa Sé.
O banco foi manchado por escândalos de lavagem de dinheiro nos anos 1970 e 1980. O seu presidente de 1971 a 1989, o arcebispo Paul Marcinkus, depois cardeal, se salvou dos processos só porque gozava da imunidade diplomática vaticana. E, recentemente, desde 2010, o IOR foi investigado novamente pela magistratura italiana. Por isso, a tentativa de Bento XVI de reformar o Instituto foi considerada quase revolucionária. E a escolha de Ettore Gotti Tedeschi, o economista que o liderou de 2009 a 2012, foi vista como um passo no sentido da transparência desejada por Ratzinger e pelo secretário de Estado, Tarcisio Bertone, para renovar a imagem do IOR.
O Vaticano buscou o placet do Moneyval, o comitê de especialistas do Conselho da Europa, que atesta a adesão às normas contra a lavagem de dinheiro e contra o financiamento ao terrorismo. E, aceitando as inspeções de uma instituição secular e independente, aceitou implicitamente a ideia de "confessar" os próprios pecados financeiros a alguém estranho ao seu mundo.
A parábola mais recente do banco reflete a tentativa vaticana de conquistar credibilidade internacional em nível financeiro, depois de um passado em que bastavam acordos bilaterais entre o Estado da Cidade do Vaticano e nações individuais. Mas a evolução mostrou ser paradoxal. Gotti Tedeschi perdeu a confiança em maio de 2012: disse-se que ele era emotivo, pouco operativo e incapaz de entender a estrutura e as regras, escritas e não escritas, do IOR. E o Instituto ficou sem presidente por mais de nove meses.
Na realidade, em junho de 2012, chegou a luz verde do Moneyval, embora com reservas. Mas a história fez vir à tona o conflito entre a exigência de transparência financeira e o instinto de autodefesa do Vaticano. Segundo alguns defensores da IOR, uma transparência excessiva corria e corre o risco de pôr em discussão a segurança da Santa Sé. Mas a decisão de escolher o sucessor de Gotti Tedeschi, o banqueiro Ernst von Freyberg, no limbo temporal entre a "renúncia" de Bento XVI e a eleição de Francisco, levantou suspeitas e críticas.
E o novo papa, segunda uma convicção generalizada, pressionará para acelerar a reforma da IOR, a despeito das resistências, porque foi esse o mandato recebido do conclave que o elegeu. Ele já fez um gesto menor, mas significativo: no dia 19 de abril, aboliu o "bônus" anual de 25 mil euros que era pago aos cinco cardeais do conselho de superintendência do IOR. Por outro lado, a crise é tão aguda que não parece haver alternativa a uma reforma radical.
“Pecados católicos”
O Vaticano está há muito tempo preso no papel de "suspeito global" por causa da pedofilia, do IOR e das relações com personagens polêmicos da política e do mundo dos negócios italiano. E com uma Europa imersa na crise econômico-financeira os países do norte da União Europeia tendem a ver o gasto público em excesso das nações mediterrâneas como "pecados católicos".
A palavra alemã Schuld significa tanto "dívida" quanto "culpa". Esse aspecto muitas vezes é pouco debatido, porque toca um tabu e evoca os fantasmas das guerras religiosas. Mas agora está emergindo novamente como um rio subterrâneo, que alimenta e polui os medos sobre o futuro da moeda única e da própria democracia.
O jornalista Stephan Richter defende que, se Martinho Lutero tivesse estado presente na assinatura do Tratado de Maastricht, em 1992, ele teria se oposto ao ingresso no euro de todos os países católicos. Provavelmente Lutero, um dos pais do protestantismo, teria dito: "Leiam os meus lábios: não a nações católicas que não fizeram a Reforma protestante", defende Richter, diretor da revista online norte-americana The Globalist.
Segundo ele, o catolicismo seria prejudicial para a saúde fiscal de um Estado, mesmo agora no século XXI. Para os países "pecadores" do ponto de vista da dívida pública (aqueles de maioria católica, como Portugal, Irlanda, Itália e Espanha, com o acréscimo de Grécia e Chipre, de religião ortodoxa), a raiz de todo o mal nasceria da incapacidade de se emancipar da mentalidade católica.
Pode ser mais um reflexo de um eurocentrismo em declínio. Mas, para o americano Francisco, um pano de fundo histórico-religioso tão tenso coloca mais um desafio. Apesar dos 76 anos de idade, é sempre mais forte a impressão de que ele não será um pontífice transitório, mas sim o papa de uma transição crucial.
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Francisco, o primeiro papa global - Instituto Humanitas Unisinos - IHU