12 Fevereiro 2021
Os bispos podem unir uma Igreja cada vez mais viciada em sua própria polarização, quando eles próprios são responsáveis pelas amargas divisões entre os católicos estadunidenses? A presidência de Biden pode acelerar a queda rumo a um cisma.
O comentário é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos EUA. O artigo foi publicado em The Tablet, 11-02-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A Igreja Católica nos Estados Unidos está dividida há algum tempo: um sistema político bipartidário produziu uma Igreja bipartidária, com uma sólida maioria de bispos favoráveis ao Partido Republicano – até mesmo ao Partido Republicano de Donald Trump.
Mas agora existe o risco de a Igreja dos EUA ficar ainda mais dividida – não uma comunidade com uma grande variedade de culturas e espiritualidades diferentes, algumas vezes em tensão entre si, uma “grande tenda”, mas sim duas versões distintas do catolicismo, cada uma reivindicando a ortodoxia e existindo em um regime de excomunhão mútua.
Escritores e acadêmicos cristãos conservadores e pensativos, veteranos de longa data das “guerras culturais”, reconhecem que, em um nível político, eles perderam. Eles concluíram que os EUA não são mais um país cristão – na verdade, eles o veem se tornando cada vez mais hostil ao cristianismo tradicional. Mas os “guerreiros culturais” católicos não baixaram as armas nem se resignaram a recuar.
As lutas internas da Igreja e da nação se sobrepõem. Trump deu seu apoio àqueles que se recusam a questionar o mito dos EUA como uma nação dotada de uma bênção especial, com um destino inscrito no plano divino. Ele recebeu o apoio de muitos eleitores que se opõem não apenas ao Partido Democrata, mas também a qualquer reavaliação crítica desse mito estadunidense fundacional.
O mito estadunidense tem conotações religiosas e teológicas que precedem o discurso das Igrejas e religiões. O discurso de Joe Biden na noite em que ele aceitou a sua nomeação na Convenção Nacional Democrata foi dominado pela imagem da luz se opondo às trevas – a escuridão da desordem e da ameaça à constituição que Trump e o trumpismo causaram, mas também a escuridão de um caos cosmológico real que eles não causaram, mas revelaram ainda mais: um caos cosmológico que põe em xeque as raízes morais e religiosas dos EUA.
A ascensão de Barack Obama teve dois efeitos opostos. Por um lado, sua eleição reassegurou aos liberais e progressistas o valor fundamental e a vitalidade do projeto estadunidense no fim do “século americano”; por outro lado, sua presidência desencadeou uma reação – alimentada pelas ansiedades de uma ameaçada “supremacia branca” – de conservadores políticos e religiosos contra a nova face do país.
O fenômeno político de Trump, com sua insistência na teoria da conspiração de que Obama não era realmente um cidadão estadunidense, começou ao lado do movimento Tea Party, que muitos tentaram retratar como uma expressão de simples ansiedade pelo futuro econômico do país que lida com a grande recessão que começou em 2008, ignorando suas evidentes conotações racistas.
As “guerras culturais” católicas prosperaram não só por causa da ascensão e da queda (devido à sua incapacidade de cumprir seus compromissos nas questões pró-vida) da “coalizão do New Deal” entre democratas e católicos, mas também porque essas lutas político-teológicas revelaram a apostas do jogo. A atual fase das “guerras culturais” não tem a ver com a economia, mas com a cultura, no sentido que Terry Eagleton a descreveu: “A cultura (...) pode ser definida hoje em dia como aquilo pelo qual você está preparado para matar ou morrer”.
As “guerras culturais” alcançaram outro estágio em seu desdobramento como guerras teológicas: elas dividiram o catolicismo de uma forma muito mais profunda e mais visível do que dividiram outras Igrejas, levando a Igreja Católica dos EUA para perto de uma situação de um cisma suave. Tomar uma posição nas “guerras culturais” agora se tornou uma parte inevitável da vida para os católicos; não apenas onde se está no espectro entre a esquerda e a direita na política e na Igreja, mas também onde se está dentro de cada ala da Igreja. Mesmo na academia católica, as credenciais ideológicas e o posicionamento político tornaram-se mais importantes do que outras habilidades ou conquistas.
Muito mais evidentemente na direita, mas não totalmente ausente na esquerda, a presidência de Trump e as eleições de 2020 revelaram até que ponto os dois lados da divisão católica adotaram as plataformas dos dois partidos políticos, curvando a ortodoxia teológica para se encaixar na ortodoxia ideológica e deixando muito pouco espaço para a divergência de posições específicas em ambos os lados.
Há dois pacotes em oferta e, por mais relutantes que eles possam ser em relação a alguns dos itens em cada um, os católicos são pressionados a adotar um ou outro. Isso é evidente, por exemplo, na dificuldade que os católicos têm em articular uma interpretação apartidária do movimento “Black Lives Matter”. Cultivar uma distância de cada lado e tentar escolher partes de cada um apresentaria o risco de deixar a Igreja em um beco sem saída, não apenas politicamente, mas também moral e espiritualmente.
O desafio para a Igreja dos EUA, tanto político quanto eclesial, na emergência atual é reconstruir uma unidade que marginalize os extremos tanto da direita quanto da esquerda – e esmagar o sectarismo crescente que é a epítome do espírito não católico. Não vai ser fácil. Os bispos lideram uma Igreja que está cada vez mais viciada em sua própria polarização extrema – graças em grande parte à liderança fortemente partidária que eles próprios ofereceram.
O front da Conferência Episcopal mais hostil ao governo Biden – e simultaneamente ao papado de Francisco – não é mais o velho conservadorismo católico, mas sim uma nova Vendeia que reage àquilo que ela percebe como uma revolução política e social em que a questão do aborto se uniu à de gênero e das identidades sexuais.
Aquilo que o teólogo jesuíta Mark Massa chamou de “Revolução Católica Americana” dos anos 1960 foi, ao que parece, seguida por uma insurreição, uma contrarrevolução católica; e a eleição do segundo presidente católico representa um revés, não uma solução.
Pode-se falar de “Trumpismo Católico” como um fenômeno de recepção cultural e simbólica dentro da Igreja do exemplo moral de um presidente que, como nunca antes na história das relações EUA-Vaticano, se opôs diretamente ao papa, não com base em uma agenda secular, mas religiosa, neoconstantiniana. O resultado foi um dano grave à autoridade moral, ao prestígio cultural e à força de coesão do catolicismo aos olhos de uma nação já em processo de secularização.
A vida intelectual do catolicismo conciliar e dialogante nos EUA, que Biden em grande medida reflete, está agora, do ponto de vista da estratégia eclesial, em uma terra de ninguém; as ideias do ensino social católico progressista são articuladas hoje em uma linguagem amplamente pós-teológica, pós-eclesial e pós-católica. Isso deixa um vazio no catolicismo estadunidense que é preenchido pelo neofundamentalismo e pelo neointegralismo, tanto na política quanto no debate intelectual. É um processo que continuará mesmo após a derrota de Trump nas eleições.
Trump e o trumpismo forçaram os EUA a se confrontarem consigo mesmos em um momento de crise que a pandemia do coronavírus apenas agravou. A presidência de Trump, que o Partido Republicano abraçou quase totalmente, levantou o véu sobre os frutos desastrosos da “anglobalização”, as doutrinas econômicas laissez-faire do pequeno Estado do mainstream anglo-americano, desde os anos Thatcher-Reagan. Isso foi uma revelação dos fracassos não apenas da liderança desajeitada de Trump, mas também de toda uma geração intelectual e política, incluindo os governos Clinton e Obama e o establishment democrata no qual Joe Biden foi uma figura central por quase 40 anos.
Estamos em uma crise política, mas também teológica. O futuro do catolicismo vivido, nos EUA assim como no resto do mundo, não terá necessariamente a aparência de um liberalismo teológico magnífico e progressista. Na política estadunidense e especialmente no Partido Democrata, Biden, aos 78 anos, é – para adotar o termo usado pelo ex-primeiro-ministro italiano Romano Prodi – um dos últimos “católicos crescidos”: aqueles católicos do século XX que se recusaram a permitir que seu próprio “respeito religioso pelo intelecto e pela vontade” em relação ao ensino da Igreja (como o Vaticano II o descreve) prevalecesse sobre a consciência de um político que serve ao bem comum de um país multirreligioso, tanto crentes quanto não crentes, e que distinguem entre os diferentes papéis da Igreja e do Estado na sociedade.
Agora há menos políticos democratas católicos. Além do número cada vez menor de católicos “boomers”, isso se deve em parte aos riscos de incorrer na excomunhão informal pelas autoridades da Igreja, mas principalmente porque o partido não tolera desvios da linha partidária em relação à questão do aborto.
O Partido Democrata em 2020 falava, por meio de Biden, com a sua piedade obviamente sincera, uma linguagem que era inteligível para muitos eleitores religiosos, inclusive católicos. Do outro lado, católicos enfurecidos com a relutância de Biden em aplicar a sua fé às questões da vida vêm em grande parte de uma tradição que vai de um neoconservadorismo moderado inspirado em João Paulo II e Bento XVI a um neofundamentalismo mais extremo, cujo profeta é o filósofo e teórico conservador alemão Carl Schmitt.
A Igreja dividida dos EUA de hoje é uma reminiscência daquela Igreja francesa entre o fim do século XIX e meados do século XX. Mas – de modo preocupante para quem espera deter a queda rumo ao cisma absoluto –, entre a nova geração de pensadores e ativistas políticos católicos estadunidenses, há muito mais do nacionalismo reacionário de Maurras do que da democracia católica de Maritain.
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O cisma nos EUA está próximo? Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU