09 Fevereiro 2021
O Papa Francisco ofereceu sua clara interpretação sobre o Concílio Vaticano II em mensagem aos bispos da Itália.
O artigo é de Massimo Faggioli, historiador e professor da Villanova University, nos EUA, publicado por La Croix International, 02-02-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O Papa Francisco criticou recentemente os bispos da Itália por ignorarem seu apelo, feito há cinco anos, para um sínodo nacional e ofereceu à Igreja em todo o mundo o que mais próximo já vimos de sua interpretação do Concílio Vaticano II.
Em uma mensagem à pastoral da catequese da Conferência dos Bispos da Itália, em 30 de janeiro, o papa pediu a eles, como já havia feito em 2015, quando reunidos em Florença, para começar um processo de sínodo nacional.
Até então a conferência dos bispos tem basicamente ignorado a diretriz do papa. Mas outros atores importantes da Igreja na Itália não o têm. Muitas revistas católicas, incluindo a jesuíta La Civiltà Cattolica, e um número de teólogos tem mantido viva a ideia de um sínodo.
Seria interessante ver se, mesmo depois da última intervenção de Francisco, os bispos italianos continuarão ignorando o pedido do papa para planejarem um sínodo nacional.
Essa mensagem não foi apenas para os italianos. Foi também um sinal enviado para as igrejas que já iniciaram um processo sinodal nacional (como a Alemanha e Austrália) e outros que estão contemplando um.
Mas nós não vivemos mais em uma Igreja onde as conferências episcopais fazem automaticamente o que o papa pede ou as encoraja de fazer. E não é unicamente a Conferência dos Bispos dos EUA e seu comportamento que está contra Francisco.
Mas, além da questão dos sínodos nacionais, havia algo ainda mais importante na mensagem do papa: seus comentários sobre o Concílio Vaticano II.
Durante seu pontificado, Francisco nunca havia destacado sua interpretação do Concílio de uma forma tão sistemática.
Embora, algumas vezes, ele tenha constatado suas preocupações sobre as tendências de redução do Vaticano II a questão de negociações com aqueles que se veem como defensores de uma estrita – e autointitulada mais fiel – versão da tradição católica.
“Esse é o Magistério. O Concílio é o Magistério da Igreja”, disse o papa em 30 de janeiro.
“Vocês ou seguem o Concílio e, portanto, estão com a Igreja, ou vocês não seguem o Concílio ou o interpretam de sua própria maneira como desejarem e, assim, não estão com a Igreja”, continuou.
“O Concílio não pode ser negociado... Não. O Concílio é o que é”, insistiu.
Ele então fez comparações com o cisma da Igreja Veterocatólica depois do Vaticano I (1869-1870). (A Igreja Veterocatólica já existia antes do Vaticano I, mas ela recebeu novos membros, de alto escalão, depois da rejeição das declarações conciliares sobre o papado).
“E esse problema que nós estamos vivenciando, de seletividade em respeito ao Concílio, tem sido repetido ao longo da história com outros Concílios. Isso me faz pensar muito sobre um grupo de bispos que depois do Vaticano I saíram da Igreja... continuaram a ‘verdadeira doutrina’ que não era a do Vaticano I”, afirmou o papa.
Francisco falou que esse comportamento era de “nós somos os verdadeiros católicos”. E, evidentemente, para provar que estavam errados, o papa disse: “Hoje eles ordenam mulheres”.
À parte desta última fala, a qual foi vista como ecumenicamente insensível, o ponto principal do papa de 84 anos é que existem aqueles que, ainda hoje, se consideram mais católicos do que o Concílio Vaticano II.
“Esse comportamento estrito, de manter a fé sem o magistério da Igreja, leva vocês à ruína”, afirmou.
“Por favor, sem concessões a esses que tentam apresentar uma catequese que não está alinhada ao magistério da Igreja”, alertou o papa aos bispos italianos.
Essa reflexão sobre o Vaticano II foi revelada por inúmeras razões. Isso ajudou a iluminar a diferença entre a forma de Francisco e de seu predecessor, Bento XVI, de falar sobre a interpretação do Vaticano II.
Ambos tiveram a difícil tarefa de tentar orientar uma recepção magisterial do Concílio.
De um lado, eles tiveram que guiar para longe dos ultratradicionalistas que veem o Vaticano II como muito moderno para ser católico. E por outro, eles tiveram que manter distância dos ultraprogressistas que veem o Vaticano II como muito católico para ser moderno.
Em teoria, isso é particularmente o que Bento XVI tentou fazer com seu famoso discurso à Cúria Romana, logo antes do Natal em 2005. Essa mensagem pode ser lida como repúdio a uma interpretação do concílio com uma ruptura com as tradições, algo compartilhado, ironicamente, tanto por ultraprogressistas e lefebvrianos.
Na prática, sabemos que a política doutrinal de Bento XVI era mais favorável à interpretação do Vaticano.
Não esqueçamos as calamitosas consequências que se teve sobre a liturgia. (É interessante como os bispos franceses responderam a um inquérito do Vaticano sobre os efeitos do motu proprio Summorum Pontificum, de 2007, que autorizou o uso da liturgia pré-conciliar).
Comparado a Bento, Francisco mostrou uma interpretação diferente do Vaticano II com bases na sua visão de uma Igreja em um mundo multicultural e multirreligioso, enraizado em uma realidade que ele conheceu muito bem como pastor.
Na mensagem de 30 de janeiro, Francisco também revelou sua oposição, não apenas à mentalidade de resistência ao Vaticano II em nome de um falso senso de ortodoxia, mas também para negociar com os tradicionalistas sobre o significado do concílio.
Tais negociações eram uma parte integral da política doutrinal do pontificado de Bento XVI.
Francisco silenciosamente – mas sem errar – desfez essa política quando aboliu a Comissão Ecclesia Dei no início de 2019. João Paulo II havia a criado em 1988 para negociar com a cismática Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX) e colocou o cardeal Ratzinger encarregado disso.
Abolição da “Ecclesia Dei” é uma das mais importantes mudanças que Francisco fez para a estrutura da Cúria Roma desde que se tornou papa.
Francisco é famoso por não ser um fã da linguagem dos “não-negociáveis” quando se trata de questões morais, mas esse é um termo que ele provavelmente aplicaria ao Concílio Vaticano II – não está em negociação.
É a partir da firme defesa do papa ao concílio que devemos interpretar os passos que ele deu para reestruturar as relações da Igreja Católica com os tradicionalistas da FSSPX, especialmente desde o Jubileu da Misericórdia.
Francisco concedeu a todos os padres da FSSPX as faculdades de celebrar os sacramentos da reconciliação e do matrimônio. Ele fez isso por uma questão de pragmatismo pastoral.
Não se tratava de reconhecer a equivalência entre o Vaticano II e aqueles que se opõem abertamente ou rejeitam seus ensinamentos e fazem proselitismo sobre um falso senso de ortodoxia.
Este é um ponto crítico para a compreensão do pontificado.
Uma leitura cuidadosa dos pronunciamentos de Francisco sobre o Vaticano II o caracteriza como claramente oposto à mentalidade anticonciliar dos tradicionalistas.
Mas - talvez de forma menos evidente - ele também esteja se opondo à cultura teológica a-conciliar de progressistas radicais, para os quais a legitimidade do concílio não reside sobre o que dizem os documentos, mas principalmente nas diferenças com a tradição magisterial anterior..
Em algumas questões, Francisco demonstrou que sua interpretação do Vaticano II pode ir além da letra dos documentos (como sobre o diálogo inter-religioso ou questões de família e casamento).
Mas em outras questões, como ministério sacerdotal, é mais complicado: Francisco parece não querer adotar uma interpretação dinâmica do Vaticano II semelhante à sua interpretação de Nostra Aetate, por exemplo.
Recentemente, Francisco decretou que os ministérios do leitorado e acolitado passariam a ser abertos às mulheres, de forma estável e institucionalizada por meio de mandato específico. Mas nestes últimos quase oito anos, ele disse mais de uma vez que se opõe claramente à ordenação de mulheres.
A interpretação do Vaticano II por Francisco está mais distante do cardeal Raymond Leo Burke (por exemplo), e muito mais próxima do cardeal Walter Kasper. Mas não apenas para o Kasper que se tornou alvo dos conservadores católicos desde 2013, mas também para o Kasper mais “centrista” das décadas de 1980 e 1990.
Em outras palavras, as razões pelas quais Francisco mostrou algumas aberturas para com os tradicionalistas não são muito diferentes de suas razões para mostrar algumas aberturas para com os progressistas católicos. Eles estão enraizados no pragmatismo pastoral. Eles não abraçam uma interpretação teológica particular da tradição.
A contraposição entre a liderança da conferência episcopal dos Estados Unidos e Francisco é uma característica fundamental do pontificado, mas não deve sugerir um liberalismo teológico que nunca fez parte da mentalidade do papa jesuíta.
No entanto, os problemas de Francisco vêm mais do tradicionalismo radical do que do progressismo liberal.
A violência verbal que os tradicionalistas radicais usam para criticar Francisco vem da frustração. Eles sabem que uma reversão dos ensinamentos do Vaticano II e do período pós-conciliar é inimaginável – ou imaginável apenas a um custo enorme do ponto de vista doutrinário e em termos de fidelidade ao Evangelho.
O Vaticano II foi fruto de uma ordem teológico-cultural que agora está em crise, e é por isso que a Igreja precisa de um novo comentário global do concílio.
Mas o pontificado de Francisco representa um momento de escolha – muito mais pelos tradicionalistas do que progressistas. As críticas dos dois grupos ao Vaticano II claramente não são iguais ou equivalentes.
Uma maneira de entender a eleição e o pontificado de Francisco é como uma resposta à onda neotradicionalista que foi encorajada pela época de Bento XVI como bispo de Roma.
O que Francisco diz e o que ele representa na interpretação do Vaticano II é mais uma correção do que uma conclusão do curso de Bento XVI.
Esse último pontificado nada fez para moderar a rejeição radical do Vaticano II pelos tradicionalistas cismáticos e realmente deu legitimidade aos tradicionalistas católicos anti-Vaticano II em comunhão com Roma.
O problema é que a divisão em torno das interpretações do Concílio é muito mais grave hoje do que durante os pontificados de João Paulo II e Bento XVI. Desde então, houve um endurecimento de posições, especialmente do lado conservador.
A negação de Francisco das bençãos dadas à agenda dos tradicionalistas até 2013 o faz parecer mais teologicamente progressista do que realmente é.
No que diz respeito à interpretação magisterial do Vaticano II, este pontificado tem mais a ver com desfazer do que com fazer. E isso, por si só, não é pouca coisa.
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Tradicionalistas, é tempo de escolher. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU