12 Dezembro 2020
Sua excelência, o reverendíssimo Charles Chaput, arcebispo emérito da Filadélfia, saiu da sua aposentadoria para explicar para o resto dos tenebrosos irmãos de episcopado – o resto de nós – que um iminente escândalo aparece para a Santa, Romana, Católica e Apostólica Fé: o presidente-eleito Joe Biden pode estar recebendo a Comunhão. O horror.
O artigo é de Michael Sean Winters, publicado por National Catholic Reporter, 09-12-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Chaput expôs seus raciocínios, tal como são, em um artigo na First Things, a revista de registro do catolicismo conservador guerreiro da cultura. Ele começa relembrando a eleição de 2004, quando outro católico, o senador John Kerry, concorreu à presidência e alguns bispos, instigados por Judy Brown da American Life League, argumentaram que Kerry deveria ter a comunhão negada por causa de seu apoio às leis liberais de aborto. O então arcebispo Raymond Burke foi o líder do esforço para negar a comunhão aos políticos “pró liberdade de escolha”, com Chaput adotando uma postura um pouco menos extrema.
Chaput menciona dois bispos em seu primeiro parágrafo, o ex-cardeal Theodore McCarrick e o então bispo de Pittsburgh, agora cardeal, Donald Wuerl. Não tenho certeza se ele menciona os dois juntos porque ele quer sujar o último associando-o à desgraça do primeiro. É verdade que Wuerl foi uma das principais vozes contrárias a Chaput em 2004, mas houve outras. Afinal, a conferência como organismo não adotou a posição defendida por Chaput.
Essas conjecturas não são inúteis porque Chaput prossegue afirmando:
“Na época, felizmente, a Congregação para a Doutrina da Fé resolveu qualquer confusão sobre a prática correta nessas questões com seu memorando de julho de 2004 para o então cardeal McCarrick, Dignidade para Receber a Sagrada Comunhão: Princípios Gerais”.
Se você seguir este link, notará que ele não o leva ao site do Vaticano. O “memorando” é uma carta enviada do prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Joseph Ratzinger, a McCarrick, a pedido deste. Não era um documento oficial do Vaticano e não foi publicado no site do Vaticano. O texto nunca teve a intenção de “resolver” o assunto. Não “permanece em vigor”, como afirma Chaput. Consiste nos pontos de discussão compilados para Ratzinger pela equipe da congregação doutrinária para discutir o assunto quando ele surgiu durante as visitas ad limina. Não se pretendia encerrar a discussão dos bispos dos EUA.
Não pretendo sugerir que Chaput esteja mentindo sobre a origem e o significado deste documento. Talvez ele não soubesse e não tenha descoberto desde então. Mas eu nem era jornalista em 2004 e pude descobrir os contornos básicos da história. Voltei a fontes em ambos os lados do Atlântico nos últimos dias para confirmar minha lembrança e elas confirmaram.
Na verdade, uma delas destacou que a discussão de 2004 levou os bispos norte-americanos a publicarem o documento “Católicos na Vida Política”. Você encontrará esse documento no site oficial da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos. Sei que Chaput conhece esse documento porque fez parte do comitê de três pessoas que o redigiu. Afirmou na parte relevante:
“Foi levantada a questão de saber se a negação da Sagrada Comunhão a alguns católicos na vida política é necessária por causa de seu apoio público ao aborto. Dada a ampla gama de circunstâncias envolvidas para chegar a um julgamento prudencial sobre um assunto desta seriedade, reconhecemos que tais decisões cabem ao bispo individual, de acordo com os princípios canônicos e pastorais estabelecidos. Os bispos podem legitimamente fazer diferentes julgamentos sobre o curso mais prudente da ação pastoral. No entanto, todos nós compartilhamos um compromisso inequívoco de proteger a vida e a dignidade humana e de pregar o Evangelho em tempos difíceis”.
Simplificando, os bispos dos EUA, tendo refletido sobre o assunto, não decidiram usar a Eucaristia como arma para fins políticos. O documento que adotaram, que também foi enviado a Ratzinger, é o texto que “continua vigente”, como bem sabe Chaput.
Está na moda entre alguns conservadores citar decisões e declarações do papa Bento XVI para impugnar o papa Francisco. Neste caso, gostaria de salientar que se Ratzinger queria que os bispos negassem a Comunhão a políticos defensores da liberdade de escolha, e pensava que seria uma possível fonte de escândalo se não o fizessem, por que então esse mesmo Ratzinger, agora Bento XVI, escolheu Wuerl, não Burke ou Chaput, para ir para Washington dois anos depois?
Bento XVI também nomeou Wuerl como cardeal. Chaput, por outro lado, é o primeiro arcebispo da Filadélfia a não receber o barrete vermelho desde que o papa Bento XV o concedeu a Dennis Dougherty em 1921.
Os limites da imaginação evangélica de Chaput estão em plena exibição aqui:
“Eu acreditava na época, e acredito agora, que negar publicamente a Comunhão a funcionários públicos nem sempre é sábio ou o melhor caminho pastoral. Fazer isso em voz alta e enérgica pode causar mais danos do que benefícios ao convidar o oficial a se deleitar com o brilho da mídia na condição de vítima. O que eu me opus em 2004, entretanto, foi a qualquer aparente indiferença ao assunto, qualquer sugestão em uma declaração ou política dos bispos nacionais que daria aos bispos permissão para desviar suas cabeças da gravidade de um assunto muito sério”.
Deixando de lado seu comentário presunçoso sobre “se deleitar com o brilho da mídia na condição de vítima”, que soa como uma projeção vinda de um homem que construiu toda a sua personalidade na mídia reclamando do declínio da cultura ocidental, é realmente tão difícil de acreditar que o bispo – e a conferência dos bispos – está perfeitamente capaz de articular o que a Igreja ensina sobre questões de significado público sem transformar a grade do altar em um campo de batalha?
Por que, se ele realmente acredita que há momentos em que negar a Comunhão é pastoralmente imprudente, Chaput é tão rápido em defender a causa agora que Biden está indo para a Casa Branca, se que ele não é o pároco da igreja de Wilmington, Delaware, nem o pastor da Igreja de Washington D.C.?
Dizer que a cegueira cultural de Chaput é aguda talvez seja generoso demais. De que outra forma explicar as seguintes frases? “Figuras públicas que se identificam como ‘católicas’ escandalizam os fiéis ao receberem a comunhão, criando a impressão de que as leis morais da Igreja são opcionais. E os bispos dão escândalo semelhante ao não falar publicamente sobre a questão e o perigo de sacrilégio”.
Ele prossegue:
“Aqueles bispos que publicamente indicam com antecedência que irão iniciar seu próprio diálogo com o presidente eleito Joseph Biden e permitir que ele comungue, efetivamente minam o trabalho da força-tarefa estabelecida na reunião da conferência dos bispos de novembro para lidar precisamente com isso e questões relacionadas. Isso é um escândalo para seus irmãos bispos e padres, e para muitos católicos que lutam para permanecer fiéis aos ensinamentos da Igreja”.
Talvez metade da Igreja esteja escandalizada com isso, mas a outra metade ficou escandalizada com o fracasso dos bispos em confrontar as muitas, muitas falhas morais do governo Trump com o tipo de linguagem contundente que usam rotineiramente contra os democratas. E todos deveríamos estar escandalizados por uma conferência episcopal que se deixou tão dividida que seu chefe, o papa Francisco, teve que dizer-lhes para tirarem um tempo de suas reuniões e rezarem juntos.
Na verdade, os bispos dos EUA têm defendido a vida humana desde a concepção até a morte natural de forma tão vigorosa e, tendo recebido apoio significativo de grande parte da comunidade católica, não cabe a eles colocar mais energia no restante do ensino social da Igreja? Muitos católicos parecem não estar familiarizados com muito desse ensino, mas todos eles sabem o que a igreja ensina sobre o aborto. Como, então, a diferença pública de um político leva alguém a pensar o contrário? Como isso causa escândalo?
Chaput insiste que “esta não é uma questão ‘política’ e aqueles que a descrevem como tal são ignorantes ou confundem a questão deliberadamente”.
Isso é simplesmente ridículo. Não é estranho que essa questão do aborto (e Chaput inclui o casamento do mesmo sexo em um ponto) seja a única que provoca essa conversa? Por que não a recusa em lutar contra a mudança climática, que ameaça a vida humana de forma ainda mais abrangente do que o aborto? Houve algum republicano ameaçado de negar a comunhão porque apoiou e facilitou a Guerra do Iraque, que levou à morte centenas de milhares de pessoas inocentes?
Além disso, Chaput sabe que, como presidente, Biden não falará mais que o ex-arcebispo sobre a legalidade do aborto. Foi a Suprema Corte que decidiu que o aborto era um direito constitucional, e é a Suprema Corte que pode anular ou confirmar essa decisão. Se a questão for repassada aos estados, Chaput pode fazer lobby junto aos legisladores na Pensilvânia e Biden pode fazer lobby nos legisladores em Delaware. Suspeito que haverá um impulso para promulgar leis liberais de aborto em nível federal, mas uma maioria da Suprema Corte disposta a derrubar Roe é uma maioria disposta a decidir qualquer promulgação legislativa de Roe inconstitucional.
Teologia ruim? Confirmado.
Incompreensão da política americana? Confirmado.
Armamento de questões pastorais? Confirmado.
Um prelado que não ascendeu à posição que seus amigos consideravam merecida? Confirmado.
Soa familiar? Chaput tornou-se um Viganò dos EUA e, como o infeliz ex-núncio, está causando divisão no episcopado mesmo na aposentadoria. Esse é o escândalo aqui.
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O Viganò dos EUA: arcebispo Charles Chaput, da Filadélfia, divide o episcopado mesmo aposentado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU