10 Dezembro 2020
Reconceitualizar a vida se torna necessário, quase obrigatório, em um momento de desestabilização mundial. Um vírus assola a face da Terra e a maquinaria capitalista endurece: as pessoas não precisam ver o quão frágil é o sistema. Faz pouco mais de um ano que faleceu Erik Olin Wright, um dos mais eminentes sociólogos marxistas, não sem antes deixar para a posteridade seu último livro: “Como ser anticapitalista no século XXI?” [Boitempo, 2019].
A reportagem é de Guillermo Martínez, publicada por Público, 09-12-2020. A tradução é do Cepat.
A busca de alternativas ao sistema de produção predominante na maioria dos países do mundo foi o farol guia, durante os últimos anos de vida do autor. Este texto de recente publicação, com um vocabulário simples e atrativo, com um índice conciso, mas bem estruturado, tenta ser a continuação de outra de suas obras centrais, intitulada “Construyendo utopías reales” (Akal, 2014). Se antes mostrava para onde a Humanidade precisa ir, agora, desenvolve o como, a estratégia.
Três binômios vertebram todo um postulado posterior: igualdade/equidade, democracia/liberdade e comunidade/solidariedade. A partir deles, o sociólogo empreende uma viagem ao interior do anticapitalismo.
“Esses pares que ele apresenta no início evocam a tríade liberdade, igualdade e fraternidade. É o modo como reflete que o projeto socialista não é algo exótico, mas se conecta com preocupações amplamente compartilhadas. Praticamente, ninguém se opõe a esses pares de conceitos, e nós que defendemos o projeto socialista democrático temos que partir de amplas ideias compartilhadas”, avalia Jorge Sola, professor de sociologia da Universidade Complutense de Madrid (UCM) e ex-aluno de Wright.
O escritor levanta cinco possibilidades para aplacar ou pelo menos diminuir os efeitos do capitalismo. Debate-se entre aniquilar, desmantelar, domesticar, resistir e fugir do capitalismo. Desta forma, a primeira delas será descartada, pois as condições atuais não possibilitam uma verdadeira revolução que elimine o sistema. Wright chega a afirmar que “aniquilar o capitalismo fica descartado pelas experiências trágicas que ocorreram no século XX em torno do comunismo”.
Em seguida, o sociólogo comenta alguns aspectos das outras, sem chegar a se inclinar por qualquer uma delas. Assim percebe Sola: “Há tempo, em um artigo, defendeu que nós, socialistas, perdemos muito tempo e energia discutindo qual é a melhor via, quando existem muitas delas e não há razão para que sejam incompatíveis. Ele defende um pluralismo estratégico”.
A denominação que Wright realiza dos aspectos a se levar em conta frente a uma mudança de paradigma, tanto produtivo como social, se relaciona com os “ingredientes básicos de um destino democrático para além do capitalismo”. Uma série de lugares comuns, mas que o sociólogo consegue articular de tal modo que parece que a queda do capitalismo está ao virar a esquina, uma vez conquistados.
A saber: a renda básica universal, uma economia de mercado cooperativa, uma economia social e solidária, a democratização das empresas capitalistas e a conversão do banco em uma empresa de serviço público.
Neste sentido, ainda que possa parecer que esses objetivos ainda estão distantes, Sola insiste em que a prioridade é “vencer o ceticismo das pessoas, fazer ver que outro mundo é possível”. E explica: “Na realidade, uma parte desse mundo desejado já existe no que temos, são como sementes que precisam florescer. As pessoas já participam em estruturas institucionais alternativas, razão pela qual apenas seria necessário ampliá-las para todas as esferas da vida social”.
Neste sentido, o imaginário coletivo que os cidadãos são capazes de se criar para si é uma das questões primordiais. Os limites do que se percebe como possível ou desejável são muito instáveis e se deslocam continuamente, conforme aponta o sociólogo da UCM. Esta realidade, que pode ser tanto positiva como prejudicial na hora de efetuar mudanças sociais de alto alcance, materializa-se em ideias muito básicas como a democratização das empresas capitalistas.
O próprio Wright cita em sua obra que a lei alemã estipula que os trabalhadores podem escolher quase 50% do conselho de direção em empresas que empregam mais de 2.000 trabalhadores, e um terço naquelas empresas que têm de 500 a 2.000 trabalhadores. “Aqui, onde isso nos parece impossível, é normal na Alemanha, mas a saúde pública, que aqui nos parece normal, nos Estados Unidos, é impossível”, exemplifica Sola.
Diagnosticando as incongruências e os processos de crise e autodestruição que o capitalismo traz para si mesmo, muitas vezes apaziguados pelo próprio Estado, Wright defende que a emergência climática e a revolução tecnológica serão os dois desafios que a sociedade terá que enfrentar durante o século XXI. Os dois aspectos abrem caminho para que os valores democráticos, igualitários e solidários, o mantra repetido ao longo do texto, se imponham sobre os outros.
Neste sentido, Sola argumenta que a crise climática é uma oportunidade para enfrentar mudanças mais profundas, mas, por sua vez, também constitui uma má notícia, já que exige dos humanos certa urgência e radicalidade nas ações.
Quanto à revolução tecnológica, ele prefere ser cético diante dos “discursos apocalípticos das máquinas”, já que “durante os últimos anos presenciamos processos semelhantes e pudemos ver que o problema está na distribuição das riquezas que a tecnologia gera, motivo pelo qual não deixa de ser um problema político”.
Quanto à agência coletiva, um conceito que descreve a possibilidade e o poder que a sociedade possui para reverter certas dinâmicas perniciosas para a mesma, Wright desenvolve três questões que precisariam ser levadas em conta para que a mudança se materializasse. Por um lado, as identidades, importantes para “forjar a solidariedade dentro de um ator coletivo”, e por outra parte, os interesses, para “modelar os objetivos da ação coletiva”. Por último, os valores, importantes para “conectar diversas identidades e interesses dentro dos significados comuns”.
Sola adere a estas premissas dado que “a classe trabalhadora não nasce homogênea, mas como algo que é criada por meio de muitos estímulos que é preciso coligar politicamente”, em seus próprios termos. Criar uma base comum e articular os aspectos compartilhados é, na opinião do sociólogo da UCM, a chave para enfrentar a diversidade “com espírito construtivo e superar as divisões que obstaculizam o surgimento destes atores”.
Wright encerra seu ensaio oferecendo alguns parâmetros que, do seu ponto de vista, são imprescindíveis para a criação de atores coletivos capazes de sustentar a ação política. Superar as vidas privatizadas, construir solidariedade de classe, dentro de estruturas de classe complexas e fragmentadas, e forjar políticas anticapitalistas na presença de formas de identidade diversas e rivais, não baseadas na classe, são os indicadores que o sociólogo marca para pavimentar uma possível mudança que conduza a esse socialismo democrático que almeja.
Sara Porras, também professora de sociologia na UCM, oferece algumas concepções que completam “Como ser anticapitalista no século XXI?”. Algo que Wright visa em sua obra é articular a construção de uma sociedade socialista com base na economia que se dá no contexto da produção, um fato que responde à tradição teórica do marxismo.
“O mercado seria a instituição fundamental que ordenaria a vida política e social, mas levando em conta a conjuntura atual, onde a pandemia transtornou e acelerou a vida na maioria de suas vertentes, acredito que é uma boa oportunidade para repensar para onde queremos chegar e como pretendemos conseguir isso”, introduz Porras.
“Quando Wright fornece ferramentas concretas, como o estabelecimento da renda básica universal, gostaria de ir além e apresentar o debate sobre quais são os trabalhos socialmente necessários, com uma parcela do mercado na qual é possível observar uma correlação muito clara: aqueles empregos que são socialmente imprescindíveis são os menos valorizados e os que mais afetam algumas escalas. Primeiro em relação à feminização dos mesmos e, depois dela, a racialização que experimentam”, acrescenta a professora da UCM, que defende que a obra do sociólogo recentemente falecido estaria mais completa, caso tivesse introduzido estas identidades (etnia, raça, gênero, etc.) como significantes dentro da própria identidade de classe.
A partir da publicação, Porras aponta três eixos em torno dos quais circularia a criação do novo paradigma socialista. Em primeiro lugar, situar a vida e a responsabilidade coletiva como espinha dorsal da mudança anticapitalista, uma realidade que poderia se dar a partir da renda básica universal ou da adoção da jornada de trabalho de quatro dias por semana. Por outro lado, ela insiste na potencialidade das cidades, na atualidade, como espaço de socialização, representadas como o principal território no qual os diversos atores coletivos se veem interconectados e a vizinhança pode se conhecer e se organizar.
Por último, esta socióloga também ressalta a transformação que os Estados teriam que sofrer como principal instituição reguladora de uma nação: “O Estado não só teria que ser o principal apoio da parte social da cidadania, como também, para garanti-la, deveria começar a ser um ator econômico e social de grande envergadura, no qual também se reverte os lucros econômicos que seu financiamento propicia, especialmente agora que estamos em um contexto global onde a desvio fiscal é enorme”.
Ao mesmo tempo, sim, concorda com o postulado que Wright aponta em sua obra a respeito da emergência climática. Nas palavras de Porras, “esta emergência supõe que fujamos do debate entre se queremos que isto mude ou não, para nos levar ao debate sobre em que lugar nos posicionaremos nesta mudança que já é obrigatória”. Colocar a vida no centro abre um amplo leque de possibilidades, uma miríade de opções a serem descobertas que iriam se aperfeiçoando, conforme praticadas.
Para isso, o aspecto dos cuidados é fundamental: “Não se trata de ver quantas horas produzimos no mercado de trabalho e quantas restam para a nossa vida, muito pelo contrário. Primeiro, teríamos que tomar consciência de quanto tempo precisamos para suprir os cuidados que todos queremos em nossa vida, já que aquele indivíduo que afirma não os necessitar, corresponde a um sujeito que tem uma mulher racializada em sua casa, durante oito horas, resolvendo suas tarefas, enquanto produz no mercado. Mais acertado que a mão invisível dos mercados, é falar da mão invisível dos cuidados”, acrescenta a esse respeito.
Desta forma, a socióloga afirma que “situar a vida no centro supõe um espaço privilegiado para demonstrar a fragilidade do sistema capitalista e a potência da mudança justa, em um momento em que desaparecerão milhares de empregos e haverá uma grande expulsão de pessoas do mercado, por causa da revolução tecnológica”. Um dado: “80% dos cuidados que uma pessoa requer e que não supõe sua hospitalização são desenvolvidos por uma mulher ou por entidades privadas”, acrescenta Porras.
Em relação à teoria clássica da identidade que Wright defende em sua última obra, a professora da UCM adverte que se encontra um pouco defasada. E assim explica: “As identidades são necessárias para sustentar um processo de transformação, mas caso sejam baseadas somente no contexto da produção, ficam fragilizadas. As pessoas se identificam mais com suas aspirações do que com a realidade estrutural que as ocupa. Quando pergunto a meus alunos como se descrevem, colocam sua condição de estudantes de sociologia à frente de sua condição de trabalhadores precários. Temos que ser capazes de imaginar e construir um espaço que possa conectar as identidades sub-reptícias para uni-las em sua complexidade e fragmentação, e isto a cidade permite muito mais do que o Estado”.
Em conclusão, “Como ser anticapitalista no século XXI?” oferece alguns fundamentos para fortalecer a luta contra o sistema preponderante em nível global, mas também possibilita a criação de um novo imaginário a partir do qual construí-la. Wright, com esta obra, se despede de uma forma abrupta, prematura inclusive, mas nela é possível perceber esse traço transformador e meritório que o tornou um dos sociólogos mais reconhecidos da segunda metade do século XX e inícios do XXI.
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Outro mundo é possível? O anticapitalismo no século XXI - Instituto Humanitas Unisinos - IHU