Apreensão, sensibilidade e propósito: a policrise e o mundo porvir

Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”

23 Novembro 2020

“É necessário questionar cursos que constroem o conhecimento técnico apenas para responder ao Mercado, como se este fosse a única dimensão meio-e-fim da vida humana; ou de grades curriculares que relegam a importância do (des)envolvimento econômico. A trans-inter-pluridisciplinaridade deve ser estimulada mais do que nunca. O economista precisa estar preparado e apto para dialogar e buscar soluções que vão além do seu escopo de aprendizagem. Este não é um ato de autodescrédito, mas uma atitude política de resistência à superespecialização promovida pela tecnocracia, superando a arquitetura setorializada das formas de gestão, desde as políticas públicas até a falta de diálogos intersetoriais dentro das empresas”, escreve Guilherme Tenher Rodrigues, para a coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”.

Guilherme Tenher Rodrigues é graduado em Ciências Econômicas pela Unisinos e integrante do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

O evento Economia de Francisco iniciou, 19-11, de forma virtual, e vai até sábado, 21-11. Em cada um desses três dias, a IHU On-Line publica artigos de jovens participantes do evento.

A arte que ilustra esta Coluna é uma obra de Kassio Massa, arquiteto, urbanista e artista visual com graduação pela FAU Mackenzie, e mestrando na mesma universidade. Atua com desenho, fotografia e meios digitais.

 

Eis o artigo.

 

A escolha de cursar Ciências Econômicas foi uma das decisões mais importantes da minha vida. Decisão esta impulsionada por um motivo egoísta e outro não tão egoísta. O primeiro, o mais individualista, surgiu da motivação de interrogar o que esta ciência tratava e para que(m) e o quê ela servia. E, precisamente, esta característica “turva” me atraía a compreender mais sobre este campo de estudo. A Economia era uma entidade presente cotidianamente, mas de difícil apreensão para mim, ela estava basicamente em tudo, mas não se manifestava concretamente, como se poucos pudessem ter domínio e visão deste elemento aparentemente abstrato.

O segundo motivo, puxado pelo primeiro, mas um pouco menos egoísta, foi ingressar no curso como uma forma de compreender o que se passava na nossa realidade nacional e internacional – iniciei o curso em 2015, em plena recessão econômica brasileira. Dois anos depois das manifestações de junho de 2013, os ânimos da população difusa e confusamente se exaltavam e o sistema político arqueava para o que hoje se desemboca num dos maiores projetos de neoliberalismo conservador e populismo reacionário da América Latina, responsável pelos maiores desmontes dos sistemas de proteção social desde a redemocratização do país ocorrida do final da década de 80.

Confesso que, por mais que não sabia muito bem a respeito das disciplinas constituintes do estudo da Economia, especulava que história, matemática e estatística seriam áreas nas quais a base desta ciência iria se calcar. De fato, estes conteúdos foram contemplados durante minha graduação, mas ainda sentia que me encastelava por trás destes conhecimentos. Esta sensação vinha porque, salvo os estudos sobre a história da economia; história do pensamento econômico; desenvolvimento econômico; e demais análises com caráter de imprevisilbidade e de não retidão/determinismo, outros temas me levaram a um mundo pelo qual não conseguia justapor com o que eu e os demais cidadãos estávamos vivendo: teorias marginais, indicadores incompletos, simplificação e a falta de reflexão nos/dos números abordados eram alguns dos meus “incômodos”. Mesmo tendo todos os instrumentos técnicos, eu sentia impotência em explicar o real. Impotência em dar uma resposta consistente aos enfrentamentos da sociedade global e brasileira. A metodologia não correspondia necessariamente à teleologia do que eu considerava Economia.

Esta sensação se seguiu até o final do curso, precisamente antes do meu trabalho de conclusão, quando resolvi estudar sobre minha cidade e sua trajetória de desenvolvimento. Não me senti receoso em buscar respostas para além dos autores clássicos que havia lido durante o curso. Aliás, como método, fui incentivado pelos meus mestres a estimular minha sensibilidade para a complexidade dos fenômenos da sociedade. Este foi o ponto nevrálgico para eu aliviar minha angústia de não conseguir emoldurar o mundo nos modelos mainstream apresentados durante o curso. Percebi que, no processo de conclusão do curso, obtive uma grande lição: o encorajamento à sensibilidade.

Três anos após sua publicação, tive a oportunidade de conhecer e ler a Encíclica Laudato Si’. O texto de Papa Francisco materializava todas as minhas inquietudes com os impasses do mundo. A correlação das violências enfrentadas pela população pobre com a degradação ambiental foi um dos pontos que mais me marcaram. Este movimento de descarte ou expulsão de vidas, parafraseando a socióloga Saskia Sassen, é oriundo da maneira com que os assuntos econômicos e políticos foram e estão sendo conduzidos pelas três cabeças de Cérbero: as políticas neoliberais, a financeirização e a digitalização/algoritmização da vida.

Outro ponto marcante da Encíclica são as menções que Papa Francisco faz à Técnica. Conforme trecho do décimo quarto parágrafo: “Infelizmente, muitos esforços na busca de soluções concretas para a crise ambiental acabam, com frequência, frustrados não só pela recusa dos poderosos, mas também pelo desinteresse dos outros. As atitudes que dificultam os caminhos de solução, mesmo entre os crentes, vão da negação do problema à indiferença, à resignação acomodada ou à confiança cega nas soluções técnicas” [1]. E é justamente este último ponto que, nos parágrafos 102 a 114, o Santo Padre aprofunda e apresenta o caráter ambivalente do progresso técnico / tecnológico na história da humanidade. Segundo ele, a tecnologia auxiliou na resolução de muitos males enfrentados em diferentes épocas, seja nas áreas da medicina, engenharias ou comunicação. Entretanto, este mesmo progresso foi construído sob uma base da técnica de posse, de transformação e degradação da natureza e da própria dimensão humana. Este movimento descolou a Técnica da Ética e tornou os processos de produção, de distribuição, de consumo e até mesmo de socialização elementos puramente quantificáveis, analisáveis e impessoais, elucubrados a partir da fria e indiferente luz da Tecnocracia.

Esta parte do documento me remeteu ao que o filósofo Gilbert Simondon argumentava sobre o modo mágico de existência – também qualificado como pré-tecnico e pré-religioso. Segundo este autor, o período pré-técnico, ao contrário da total inexistência de técnicas, se caracterizava pela indistinção entre a técnica e a ética, esta última majoritariamente conduzida por princípios religiosos. Período este também constituído por uma rica organização simbiótica entre a figura e o fundo cósmico ou o homem e o mundo. Ao longo do tempo, a relação entre estes dois elementos foi dividida essencialmente em dois sistemas: o técnico e o religioso. O primeiro encarregou-se das questões da energia, da matéria, da produção e da organização espacial. O segundo preocupou-se com as questões da metafísica, da ética, da moral e do Divino [2]. Esta cisão culminou hoje em uma civilização fragmentada, insensibilizada, criadora da policrise de cunho econômico, político, ético, social, ambiental, civilizacional. A meu ver, Papa Francisco busca remendar o abismo formado entre estes dois sistemas como forma de transmutar nossa relação com o mundo, com o intuito de perceber seu caráter interdependente, cósmico, reticular, regenerativo e circular.

A sensibilidade do Papa Francisco e sua coragem em elencar tantos elementos sórdidos mas reais da nossa existência entusiasmaram meus estudos e me incentivaram a reavaliar meu propósito como economista. Logo após a leitura da Encíclica Laudato Si’, elaborei um rápido mapa conceitual que buscou relacionar o homem e o meio:


Mapa conceitual. Elaboração: Guilherme Tenher Rodrigues

Captura de novas epistemes

 

Os cursos de Ciências Econômicas têm capacidade de responder às demandas da sociedade do século XXI? Concentração de renda; desigualdade social brutal; digitalização da vida e seus processos de socialização; plataformização; mundo do trabalho precarizado; mutações climáticas; sindemias; ultraneoliberalismo; desconfiança nos sistemas democráticos. Todos estes e muitos outros fenômenos se convergem e simultaneamente nos desafiam no início da segunda década deste século. Cabe a nós analisarmos nossos livros-textos e indagar: os estudos com base em metodologias estáticas nos permitem captar movimento? A linearidade explica os ciclos das matérias e da natureza? As teorias econômicas, nascidas e desenvolvidas para a realidade de dois séculos atrás ainda nos auxiliam nas questões de nosso tempo? As relações humanas, com suas incertezas, vicissitudes e possibilidades, podem ser integralmente substituídas por modelos matemáticos e estatísticos?

O que pretendo levantar aqui não é um expurgo de toda a construção histórica por trás da evolução do pensamento econômico. Muito pelo contrário, a História ou a Memória são fundamentais para a compreensão das transformações dos diferentes processos sociais no tempo e no espaço. O que pretendo provocar aqui é uma ação de “reciclagem” de conhecimentos da área de ciências econômicas que serão capazes de auxiliar seus estudantes e economistas para os novos desafios local e globalmente vivenciados. Nas palavras do filósofo chinês Yuk Hui, há urgência em se desenvolver um pensamento nômade, consistente e ao mesmo tempo aberto e maleável às provocações do real. É necessário questionar cursos demasiadamente fundamentados em teorias eurocentradas, desconsiderando o trabalho excepcional de estudiosos conterrâneos. Acredito na importância da valorização da História segundo pessoas que se dedicaram a interpretar a complexidade da sociedade brasileira, construindo um pensamento a partir do seu território e dialogando imperiosamente com o conhecimento “importado” e colonizante. Conforme expresso pelo professor Armando de Melo Lisboa, precisamos capturar este zeitgeist pós-iluminista, adentrando às análises antes marginalizadas que hoje fazem e buscam o sentido do mundo, seja pela base epistemológica da Economia do Cuidado, do Bem-Viver, do Ecofeminismo, da Macroeconomia sem equilíbrio, da Economia comportamental ou da Economia ecológica, por exemplo. [3]

É necessário questionar cursos que constroem o conhecimento técnico apenas para responder ao Mercado, como se este fosse a única dimensão meio-e-fim da vida humana; ou de grades curriculares que relegam a importância do (des)envolvimento econômico. Aqui insisto em abandonar o prefixo “des” e buscar trabalhar com o conceito de envolvimento econômico como um processo relacional, de criação de valor(es) por meio das relações sociais, da troca de conhecimento, do reconhecimento da essencialidade do trabalho humano - apesar da digitalização- , da preservação e da criação de técnicas sustentáveis de produção, distribuição, comercialização e consumo, conforme a visão de co-produtores e coletivos asseverada por Carlo Petrini. Também é importante levantar a questão da capacidade de comunicação – como tornar comum os conhecimentos- da Economia com outras disciplinas as quais a realidade cria interfaces, como a Antropologia, Filosofia, Sociologia, Ciências Sociais, Geografia, Engenharias de produção ambiental. A trans-inter-pluridisciplinaridade deve ser estimulada mais do que nunca. O economista precisa estar preparado e apto para dialogar e buscar soluções que vão além do seu escopo de aprendizagem. Este não é um ato de autodescrédito, mas uma atitude política de resistência à superespecialização promovida pela tecnocracia, superando a arquitetura setorializada das formas de gestão, desde as políticas públicas até a falta de diálogos intersetoriais dentro das empresas.

 

Democratização do conhecimento

 

As ciências econômicas têm capacidade de informar e formar a população? A lógica mercantil tende a hierarquizar os bens e serviços, de modo a tornar o acesso desigual através da monetização em seus diferentes níveis de oferta. Este imperativo também é válido para o Ensino de forma geral. A hierarquização do conhecimento, enquanto compatibiliza com o Mercado, auxilia para aumentar o “gap” da desigualdade social. Com maior desigualdade social, mais comprometida fica nossa democracia, pois os cidadãos partem de diferentes “discernimentos” da realidade. Com a falta de acesso aos estudos – até mesmo noções básicas / conhecimento geral- a população não só se torna desigual em termos materiais – pois a qualificação hoje é sinônimo de qualificação profissional e não integral- como também em termos imateriais – sem muitos referenciais, grande parte das pessoas perdem a capacidade de reflexão e se tornam facialmente manipuláveis. Este é um projeto político antigo, mas que ainda funciona, veja o fenômeno das fake news nos processos eleitorais nos últimos anos.

Economia é uma área muito delicada e importante, pois envolve aspectos cruciais da vida das pessoas. Como economista, sou capaz de explicar e auxiliar às 15,3 milhões de pessoas que não procuraram trabalho por conta da pandemia – mas não apenas- ou por falta de trabalho na localidade; ou às 19,7 milhões de pessoas ocupadas que tiveram rendimento efetivamente recebido menor que o normalmente recebem [4]; ou aos 65 milhões de brasileiros que precisaram recorrer ao auxílio emergencial nestes tempos de pandemia[5]? E às vítimas das queimadas ou de apagões sociais? Este cenário nos revela qual tipo de Economia? Estamos trabalhando em prol destes cidadãos?

Informar e formar são um ato de cuidado, um ato democrático. Não se vive integralmente em democracia se não se tem cuidado e responsabilidade pela vida.

Enquanto as vidas em Urras perecem, fazendo analogia ao livro da escritora estadunidense Ursula K. Le Guin, seremos capazes de um projeto tão revolucionário como aquele engendrado pelo povo de Anarres [6]? Segunda a organização Oxfam [7], “seis brasileiros têm uma riqueza equivalente ao patrimônio dos 100 milhões mais pobres do país. Os 5% mais ricos detêm a mesma fatia de renda dos demais 95%”. Que tipo de sistema econômico é esse que permite um abismo ético e social desta proporção? Se se tem conhecimento desta realidade e nada se faz, a crise é, sobretudo, psíquica.

A pandemia intensificou muitas desigualdades e explicitou a multidimensionalidade da pobreza contemporânea. Um dos aspectos mais significativos – e inéditos - é o acesso à internet e, por consequência, acesso aos seus respectivos processos de socialização, que vão desde o comércio digital, passando pela participação na ambiência das redes sociais, até chegar à possibilidade de estudar remotamente. Nós, como economistas, devemos lutar pelo direito econômico de acesso à rede como um bem comum, compreendendo que a infosfera, conforme apontado por Luciano Floridi é peremptória para a comunicação e promoção de distintos processos da/na sociedade democrática contemporânea.

Para cuidar da vida é necessário compreendê-la. Sempre fui reticente aos modelos econômicos excessivamente simplificados. Na verdade, a abstração que se posiciona muito longe da realidade passa de teoria para ideologia. Isto é mais perigoso do que parece, pois cabe à Academia saber se o que ela ensina ainda pode ser classificado como teoria e isto exige rejeição à inércia de pensamento, assim como comunicação constante com a realidade. Mas, afinal, o que é a realidade? Para esta pergunta, gosto muito de citar Marilda Vilela Iamamoto, doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP:

“[...] se não se tem domínio da realidade que é objeto do trabalho profissional, como é possível construir propostas de ação inovadoras? Construí-las, com base em quê? Não sendo a elaboração de propostas de políticas, de programas e projetos um ato de mágica, supõe, além de princípios e diretrizes políticas claras, um acúmulo de informações sobre a realidade social”. [8]

A afirmação não responde diretamente o que é a realidade, mas me induz a pensar que a captura da realidade se dá pela constante interação e construção de nômenos e fenômenos. Sendo assim, a realidade é observável em suas distintas manifestações nos sistemas da natureza e circuitos de energia; e nos processos históricos e sociais da civilização. Em outras palavras, penso que a realidade requer sensibilidade e consciência da complexidade por trás da coexistência de distintas dimensões, podendo estas se manifestarem de forma econômica, social, política, cultural, ambiental.

 

Apreender com os pés: a força do lugar

 

Ser sensível é um ato revolucionário em um mundo insensibilizado, violento e deprimido. A sensibilidade é um caminho honesto para a verdade, para o que é real; para o que se manifesta incontestavelmente. A hospitalidade, a fraternidade, a amabilidade e o cuidado são alguns exemplos de expressão do Sensível. Não só a Academia me fez questionar seus métodos de ensino, como também me mostrou saídas para a criação de uma ciência econômica menos lúgubre, que opera com prudência e se importa com a vida.

“Apreender com os pés” é uma frase muito simbólica para mim, utilizada pelo arquiteto Frederico de Holanda ao introduzir seus estudos sobre a utilização do método de sintaxe espacial na cidade de Brasília. Esta afirmação nos provoca a aguçar nossa presença no espaço onde trabalhamos e (con)vivemos. O contato com a terra para compreender a Terra. A necessidade de qualificarmos nossos sentidos em busca da apreensão da corporeidade da vida na superfície terrestre, com todos seus movimentos, encontros, esquivanças, mutações. Conforme Franco Bifo Berardi, o que se decantou desta pandemia foi o fato de termos criado mecanismos de prisão da nossa própria corporeidade, seja pelo isolamento ou pelo sufocamento psicofísico. A saída para esta distopia criada por nós mesmos está na reconexão com a força do lugar, da terra, da comunidade, da realidade local.

Para isto, é preciso mudar nossas formas de produção, distribuição, comercialização e consumo de bens físicos e simbólicos. Para os bens físicos, Serge Latouche e, recentemente, o físico Antonio Turiel apontou que “o decrescimento econômico é inevitável, teremos que decidir se o fazemos por bem ou por mal”[9]. Quando falamos em decrescimento é importante mencionar a necessidade de desaceleração. Esta última concatena a produção física com a imaterialidade e velocidade da financeirização, da digitalização, dos processos de governança e de comunicação. Decrescer e desacelerar implica na reterritorialização das relações sociais e o enfrentamento dos possíveis (e inevitáveis) conflitos de tempos mentais, circulares e lineares dentro de espaços lisos e /ou rugosos. A desaceleração pressupõe o retorno da compreensão de que o tempo na verdade é tempo-espaço, e que este último elemento é preenchido pela relação da natureza com os seres humanos e suas manifestações sociais, religiosas, culturais, técnicas (materiais), políticas, entre outras. O tempo se revela no espaço e vice-versa. Em Economia, negamos deliberadamente o conceito de espaço e aprofundamos nossos estudos na aceleração, isto é, no movimento da produção e do consumo no tempo. Hoje, com a pandemia e a catástrofe climática, o espaço volta a se impor sob nós, mostrando a finitude física por trás de modelos de crescimento infinito.

O período coronial também revelou o frenesi e a aceleração da produção imaterial, a falta de foco, as ansiedades, a imprevisibilidade, nossa desconexão com o ritmo da natureza e o adoecimento de mentes. Olhando para o espólio deixado pela Modernidade, e já considerando esta um elemento a ser historicizado e não mais vivido, conforme apontamento de Eugenio Scalfari, caímos em uma policrise jamais vivida pela humanidade.

Dado o que nos é imposto, evidencio alguns aspectos da realidade para que possamos trabalhar em uma alternativa capaz de nos tirar da barbárie humanitária:

 

Natureza

A natureza é apenas um recurso econômico ou é a (pré) condição para a nossa existência? Não existirá transição na matriz produtiva sem se pensar primeiro na transição da matriz energética. Em uma palestra concedida em outubro de 2020 para o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o economista Gael Giraud nos aponta a questão da análise equivocada da robotização como motivo para implementação de uma renda básica incondicional (RBI). Para ele, dado o contexto pandêmico, não haverá robotização integral das nossas sociedades, mas sim um risco integral destas mesmas como resultado de uma crise ecológica que se avulta. A iminência de uma crise hídrica, da perda da biodiversidade, do aumento das secas e das enchentes, de regiões inteiras com temperaturas insuportáveis para a vida e do desaparecimento de combustíveis, minérios e demais matérias-primas essenciais para os processos de produção e transporte atuais ditarão formas radicais de desglobalização, (falta) de mobilidade e o aumento de refugiados climáticos.

Para isso, implementar qualquer sistema de proteção social é levar em conta, sobretudo, as mutações climáticas. Uma das consequências desta crise, combinada com a falta de proteção para a população será o retorno à escravidão. Giraud compara a escravidão à descoberta de novas fontes de energia, segundo ele, “o Ocidente renunciou à escravidão no século XIX essencialmente porque encontrou energias que foram mais produtivas do que o corpo humano, como o carvão, o petróleo e o gás”. Sem a matriz energética essencial para o sistema de produção capitalista globalizado, não haverá o fim do trabalho, mas sim o trabalho sem fim. [10]. Dado este contexto, é necessário repensar o trabalho e sua importância na construção da materialidade e memória sociocultural.

 

Trabalho

Alessandra Smerilli [11] aponta que é preciso entender as engrenagens da economia contemporânea para identificar possíveis pontos nevrálgicos capazes de inflexionar, minimizar e até suprimir tendências prejudiciais ao meio ambiente e à vida social. Para a economista, há inegável instabilidade do sistema econômico, pois este é marcado por forte desigualdade social, alta concentração de renda e danos ambientais. Permeando estas tendências, materializa-se um quadro de pobreza que não pode ser analisado apenas pela dimensão da (falta de) riqueza, mas também pelas oportunidades de se obter boa educação, um eficiente sistema de saúde, habitação digna, solos, águas e ar não envenenados, ou seja, um “bem-estar” multidimensional, conforme apontado pelo prêmio Nobel de economia em 2015, Angus Deaton.

Smerilli disserta sobre as tendências do mundo contemporâneo através de três movimentos: observação, análise e proposta. Deste método, pode-se extrair três grandes temas abordados pela autora: gênero, trabalho e meio ambiente. Destaco os dois primeiros elementos:

 

1. Violência e desigualdade de gênero: inúmeras pesquisas, mundiais e regionais, relacionadas à observação dos salários entre homens e mulheres apresentam resultados que denunciam a desigualdade de renda entre estes dois gêneros. “Isso confirma como a educação e as normas sociais também modelam o comportamento econômico”.[12]. Desta forma, a autora convida a repensar o espaço e as oportunidades dadas às mulheres em diversas dimensões da vida. Ademais, é apresentado por ela uma diferença comportamental importante entre pessoas do sexo masculino e feminino observada a partir de experimentos estatísticos que torna-se essencial para o sistema econômico e social: enquanto os homens apresentam maior propensão para a competição, as mulheres se mostram mais aptas à cooperação. Assim, Smerilli propõe uma mudança comportamental econômica fundada em relações mais cooperativas e menos competitivas;

 

2. Trabalho: não se pode falar em trabalho sem relacioná-lo com tecnologia. Esta última influencia o primeiro em vários aspectos. Todavia o trabalho ainda pode ser organizado através de metodologias antigas (sindicatos, por exemplo). O crescente desemprego estrutural demanda dos governos a criação de uma renda cidadã como resposta à pobreza. Contudo, resumir o trabalho apenas à dimensão monetária deturpa a real importância dele. Para Smerilli o trabalho trespassa não só no nível econômico, mas também filosófico e projetual. Trabalhar é uma forma de criar projetos de vida e de mundo. Assim, a economista provoca acerca da verdadeira intenção e consequência de políticas da renda cidadã:

O trabalho é cooperação, é o lugar onde nos tornamos adultos, é a nossa contribuição para tornar o mundo mais bonito: por isso, impedir um jovem de trabalhar é um ato violento, é a violência de impedi-lo de participar deste grande projeto. [...]A questão agora é perguntar-se se o subsídio de renda do cidadão será percebido como um apoio aos esforços de procurar emprego, ou como uma declaração de pertencer ao número de cidadãos categoria B, os que não são bons o suficiente” [13].

A essencialidade do trabalho fez Smerilli criar uma proposta que reunisse trabalho, tecnologia e ética. A proposição intitulada “Trabalho e Cuidado” sugere um trabalho remunerado com mais horas livres para atividades que cuidam da comunidade (crianças, idosos e pessoas em situação de desproteção social) e do próprio trabalhador. Tudo isso graças aos avanços tecnológicos que deverão (ou deveriam) servir para maior produtividade e liberdade do empregado. Esta nova forma de trabalhar transformaria a utopia (não lugar) em eutopia (bom lugar), pois o trabalho comum/comunitário reaviva o sentimento de cuidado para com o território, tornando a mudança socioeconômica visível e presenciável, ou seja, existente na rotina de todas as pessoas envolvidas.

“Esta proposta é diferente do slogan ‘trabalhar menos, trabalharem todos’: está dizendo que o trabalho e o cuidado de si e dos outros são duas dimensões coessenciais da vida, que nos tornam mais humanos. Não conheço realmente o caráter de uma pessoa até que a observe enquanto trabalha, e, ao mesmo tempo, não conheço realmente seu coração e seu grau de humanidade até que a veja cuidando de outra pessoa. Uma mudança tão importante na forma de entender o trabalho e o cuidado é um daqueles processos que exigem protestos e conquistas coletivas. É um presente para toda a sociedade que hoje pode vir principalmente, e talvez exclusivamente, das vozes das mulheres. Sim, porque tradicionalmente o papel do cuidado tem sido atribuído às mulheres, que hoje, se querem trabalhar, devem se dividir, às vezes de maneira exaustiva e insustentável, entre o trabalho e o cuidado. Mas se a cura é uma dimensão essencial do ser humano, e você não será totalmente humano se não cuidar dos outros (a própria limpeza de um quarto é um cuidado para quem ali vai viver), então, todos nós devemos nos tornar mais conscientes. Encontraremos nova relação com o trabalho, se encontrarmos uma nova relação com o cuidado, homens e mulheres juntos”. [14]

 

Técnica e cosmos

Como podemos reformular nossos processos nas cadeias produtivas, nos sistemas de distribuição de mercadorias e no mercado do trabalho? Para arquitetar novos processos socioeconômicos e organizativos segundo as demandas sociais e climáticas, penso em uma solução a partir dos estudos de Yuk Hui, o qual nos auxilia a pensar em outras formas de conceber a técnica e, se apropriando de Simondon - mas não somente-, reestabelecer uma relação de harmonia entre a figura e o fundo; o homem e o mundo. A técnica pode ser interpretada como um conjunto de normas e processos articulados (meio) para se obter determinado resultado; ela expressa a exteriorização da memória e do tempo; ela é a materialização da adaptação humana e sua racionalidade; ela pode libertar ou condicionar determinados processos sociais e até unificá-los. É este último ponto que farei um breve comentário.

Em sua obra “A Natureza do Espaço”, Milton Santos já asseverava das vicissitudes ocasionadas pelo processo de globalização e, por consequência, do movimento de unificação das técnicas ao redor do globo. A imperiosidade de certos sistemas de produção, distribuição, comercialização e consumo assumiriam papéis estranhos/alhures às dinâmicas de diferentes regiões e organizações territoriais. Normalmente este movimento se dava por meio de processos lentos ou rápidos, mas majoritariamente violentos, onde pessoas, a multiculturalidade e a cosmotecnicidade dos diferentes pontos da Terra eram “engolidos” pelos sistemas unificantes das cadeias globais de valor.

Desde a mineração até o trabalho escravo, o sistema mercantil global impõe técnicas econômicas que desconsideram o tecido social e cultural das localidades. Pensando na descolonização dos saberes e dos modos de produção, o filósofo chinês Yuk Hui também busca propor em seu livro “The Question Concerning Technology in China: an essay on cosmotechnics” o conceito de cosmotécnicas, isto é, a capacidade de revisitar ou até mesmo de criar um (des)envolvimento tecnológico a partir de cosmovisões e sistemas morais distintos do pensamento europeu, especialmente o grego, o qual se caracteriza por uma relação de dominação do homem para com a natureza. Refletir em diferentes formas de conceber a tecnologia automaticamente implica em cosmopolíticas capazes de enfrentar o determinismo tecnológico dos algoritmos, da financeirização, da inteligência artificial, do monopólio global da informação e da utopia do trans-humanismo californiano, conforme expresso também por Giraud.

 

Comum unidade

Por fim, esperanço que, junto a todas estas reflexões e enfrentamentos dos últimos anos, podemos recuperar nosso senso de comunidade. Mas, o que há de comum entre os seres humanos nestes tempos? A pandemia? A dor deixada pelo moinho satânico do Mercado? A Terra que maltratamos? As queimadas? As cinzas de um projeto insustentável de vida?

Podemos tornar comum o senso de preservação da energia natural, das nossas águas, dos solos, da nossa biodiversidade, do lugar onde trabalhamos e moramos? Podemos tornar comum a sabedoria ancestral, as culturas e modos de vida indígenas? Conseguiríamos, conforme idealizara Andre Gorz [15], uma sociedade de pessoas livres da lógica consumista industrial; autônomas para trabalhar em seus projetos; cônscias do uso da técnica / tecnologia como ferramenta de libertação, acionada para fins humanitários e não somente produtivistas?

Observando esta mudança epocal pela qual somos desafiados incessantemente em todos os aspectos físicos e psíquicos de nossa existência, me pulsa à memória a dança performática do coreógrafo europeu Damien Jalet [16], intitulada SKID. Apresentados a um mundo-palco unilateral, limitado, quadrangular e principalmente inclinado / em declínio, observamos a relação entre os corpos humanos e a gravidade. No limiar da performance, os corpos se entregam totalmente à força inexorável do declive, como que empedernidos pela gravidade de suas próprias ações. Em consistência “plasmática”, inertes e voláteis às pressões físicas, o mínimo esforço é feito para que eles evitem o colapso de se encontrar com o abismo. O mundo se apresenta em caos e nele há o movimento entre aqueles que propositalmente aceleram sua queda e outros que se agarram em outros para se salvar – prolongando sua existência naquele espaço-tempo. Independente das (não) permanências, o declínio é inevitável para aqueles que, desprovidos de outro horizonte, agiam unilateralmente ao que lhes era exibido.


Fragmento do espetáculo SKID de Damien Jalet, 2019.

Acontece que, por sorte, por impulso ou por adaptação a este novo mundo, alguns corpos procuraram novas formas de interagir com este monocromático “tilted soil”. Com aguçadas qualidades sociais e sencientes, os demais corpos que surgiam à luz da realidade daquele mundo passaram a cooperar e criar diferentes estruturas de sustentação de suas próprias vidas. A dança, a inter-relação, a harmonia, o ritmo caótico e ao mesmo tempo organizado, irradiavam de energia / vida o mundo em declínio. A resiliência dos que se esforçaram antes de largar-se às profundidades abissais sopravam novas perspectivas de interação dos corpos e seu meio, ambos transmutando simultaneamente ao lento mover da luz branca e fleumática do novo mundo.

Por meio desta simplória e pessoal interpretação, convido a todos a sermos os corpos resilientes que, movidos pelo vigor de um novo despertar, arquitetam novas formas de ser, de conviver, de (inter)agir com outros humanos e com o meio. Quem sabe a Terra nos convida a repensarmos nossa relação figura-fundo cósmico. Não tenhamos medo de despertar para o que se aproxima. 


Notas

[1] FRANCISCO, Papa. “Carta Encíclica Laudato Si”. São Paulo: Editora Paulinas, 2015. Disponível neste link.

[2] SIMONDON, Gilbert. Do Modo De Existência Dos Objetos Técnicos. Rio de Janeiro. Contraponto Editora, 2020

[3] DE MELO LISBOA, Armando. Zeitgeist pós-iluminista e contrarrevolução cientificista na análise econômica. Caderno IHU Ideias, São Leopoldo, ano 18, v. 18, n. 300, p. 1-32, 22 jul. 2020.

[4] BRASIL. IBGE PNAD COVID-19. Disponível neste link.

[5] GOVERNO FEDERAL (DF). Auxílio Emergencial alcança mais de 65 milhões de brasileiros. COVID-19, Brasília, 8 jul. 2020. Disponível neste link.

[6] K. LE GUIN, Ursula. Os despossuídos. São Paulo: Aleph, 2019. Urras e Anarres são os nomes de dois planetas com sistemas políticos opostos criados pela autora Ursula K. Le Guin em sua ficção “Os despossuídos”. Urras é o planeta onde o sistema capitalista domina, assim como o sentimento de egoísmo, a concentração de renda e a barbárie da desigualdade social. Já Anarres é o planeta aonde os anarquistas de Urras eram mandados por contestarem o sistema capitalista urrasiano. É também neste planeta onde os habitantes viviam um projeto revolucionário de uma sociedade sem direitos de propriedade, sem dinheiro, sem trabalho compulsório, apenas voluntário. A autora escreveu o romance na época da Guerra Fria e concebeu o livro como um ensaio às possíveis consequências do atrito dos dois sistemas econômico-políticos do período.

[7] OXFAM. A distância que nos une. Disponível neste link

[8] IAMAMOTO, Marilda Vilela. O Serviço Social na Contemporaneidade: Trabalho e formação Profissional. 3. ed. São Paulo, Cortez, 2000.

[9] TURIEL, Antonio. “O decrescimento econômico é inevitável, teremos que decidir se o fazemos por bem ou por mal”. Entrevista com Antonio Turiel. Revista IHU Online, São Leopoldo, 6 out. 2020.

[10] RENDA universal e justiça socioambiental. Fundamentos econômicos, éticos e teológicos. São Leopoldo: Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 2020. Disponível neste link.

[11] SMERILLI, Alessandra. Tendências econômicas do mundo contemporâneo. Cadernos IHU Ideias, São Leopoldo, ano 16, v. 16, p. 1-36, 1 jan. 2018.

[12] Ibid., p. 10

[13] Ibid., p. 13

[14] Ibid., p. 15

[15] André Gorz e suas três vidas.

[16] Skid. The Göteborg Opera.

 

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