20 Junho 2020
Saskia Sassen (Haia, 1949, criada na Argentina, cidadã estadunidense) é a socióloga do global. E, no momento, não há crise mais global do que a do coronavírus, que abalou cidades, países e especialmente o sistema mundial globalizado. Uma crise sanitária que se tornou econômica e de poder, provocando - ou exacerbando e acelerando - tendências que estão mudando o mundo, mas que também é “um convite para repensar” a maneira como vivemos como sociedade global e a crescente economia da extração, em parte responsável pela pandemia, defende Sassen.
A reportagem-entrevista é de Alicia Alamillos, publicada por El Confidencial, 18-06-2020. A tradução é do Cepat.
Essa socióloga, que faz parte de um panteão que a coloca entre os 10 principais cientistas sociais no 'ranking' do Social Science Citation Index, da última década, com intelectuais como Jürgen Habermas e Zygmunt Bauman (ela é a única mulher), por seus estudos sobre a dimensão social, econômica e política de globalização e a sociologia urbana, e que recebeu o Prêmio Príncipe das Astúrias de Ciências Sociais, em 2013, foi surpreendida pelo coronavírus em Londres, onde está confinada.
O coronavírus matou ao menos mais de 440.000 pessoas, confinou milhões e inúmeras outras estão agora enfrentando as consequências econômicas da maior pandemia das últimas décadas. Mas, apesar da natureza dramática da situação, “nós não somos inocentes. Não somos simplesmente vítimas. Também fomos agressores”, afirma Sassen.
Qual é a pergunta chave que temos que fazer? A origem, a razão dessa pandemia. “Tivemos outras grandes epidemias antes, ao menos três, a partir da Primeira Guerra Mundial, mas desta vez há algo diferente. No passado, quando tivemos as grandes invasões de vírus, elas geralmente ocupavam um território mais limitado. E esse é um vírus muito agressivo. Há algo diferente. Uma pergunta para mim que é muito importante e que não nos perguntamos o suficiente é a razão pela qual estas coisas aconteceram”.
Sassen, cujos muitos trabalhos (onde cunhou o termo ‘cidade global’ e escreveu textos como Cidades globais, 1991, Perdendo o controle. A soberania na era da globalização, 1996, Território, autoridade e direitos, 2006 e Expulsões, 2014) se centram na queda da democracia liberal - que deixou de funcionar com a globalização das grandes corporações - e especialmente na “lógica da extração” de recursos, na conversa com este jornal, concentra-se no plano ambiental, na exploração das últimas décadas e na necessidade de refletir sobre o papel que a sociedade teve na pandemia como uma resposta à pergunta sobre o que tornou o coronavírus diferente.
“Este é um vírus agressivo, um vírus que invade, que se espalhou por todo o mundo. Mas eu não quero jogar a culpa no vírus. A culpa é nossa”, afirma. Porque “geramos a crise perfeita para que esse vírus avance como tem feito”. Como? Com a ampla exploração de terras, águas e habitats. Uma exploração que não depende mais, como no passado, da conquista de territórios, mas da extração corporativista do que estes podem oferecer.
“Até que ponto nós, os humanos, com nosso modo de usar as águas, as terras e o ar, de maneira brutal em muitos casos, agitamos esses vírus? Estamos construindo muito mais, extraindo muito mais, contaminando muito mais. Roubamos espaço do vírus. Nosso assassinato de uma série de animais, plantas, águas e terras contribuiu para o que está acontecendo aqui”, insiste várias vezes durante a entrevista.
“É preciso entender que nós contribuímos para aguçar essa pandemia. Temos que reconhecer nosso papel”, aponta Sassen. “Se tivéssemos monopolizado menos espaço e destruído menos territórios...”. Poderia ter sido evitado?
Essa pandemia não tem precedentes nas últimas décadas, tanto na expansão, como nas consequências, mas os sinais já estavam aí: “Podemos ver uma trajetória, ou seja, isto que aconteceu conosco [a pandemia] não caiu do céu. Há ‘pré-histórias’ que apontam, de certa maneira, que isso ia acontecer”, afirma. Talvez o mundo não soubesse que iria acontecer, mas já havia pistas. E o mundo e sua economia de extração, de destruição, são também diretamente responsáveis.
“Talvez seja difícil vê-la, mas o que estou tentando dizer é que há uma conexão em como manejamos o habitat do nosso mundo e como fomos atacados por esse vírus. Temos que entender a razão”, acrescenta, para talvez evitar uma segunda onda, ou uma próxima pandemia, que cause os estragos causados pelo vírus nesse momento. “Nós matamos muitíssimo: sejam terras, águas, animais, vírus. Temos que ter isso gravado em nossas mentes”.
Após o ‘choque’ da covid-19, “precisamos entender que arruinamos suficientes funções em nosso planeta e que temos que mudar algo em nossa maneira de raciocinar o que é aceitável e o que não é aceitável em uma escala de construções, em termos de acumulação [de recursos]”. “Para mim, o vírus é um convite a pensar em um nível muito mais amplo do que a questão do próprio vírus em si. Temos que ver esse vírus como um alerta. É terrível que tenha matado pessoas, mas isso nos aponta algo que está por vir. Porque esta não será nem a última visita [do coronavírus], nem o último vírus”.
Os governos vão reagir? Os líderes mundiais tornarão o mundo mais protecionista e nacionalista? “Sim, acho que é um risco que temos”, aponta. Mas também vai ser uma desculpa, adverte: o mundo corre o risco de que tudo seja atribuído à pandemia, quando na verdade a maioria das tendências mundiais não é nova, mas foram exacerbadas pelo coronavírus e seu alcance global. Da geopolítica, o passo em falso dos Estados Unidos como poder hegemônico e a ascensão da China, aos movimentos sociais e o empobrecimento e, usando um conceito da própria Saskia, “expulsão” dos cidadãos dentro de bolsas de pobreza das grandes cidades.
“A partir dos anos 1990, começou uma nova modalidade nos países maiores. Os Estados Unidos seriam a prova número 1. Os Estados Unidos já foram se afastando dessa espécie de emergente universalismo que existia, especialmente entre os países ocidentais, para se voltar mais para o interno, o regional, local, no lugar do internacional. Um personagem como Trump acrescenta muito a esse tipo de discurso. Mesmo que Trump seja um personagem ridículo que o leva ao extremo”.
Justamente Trump é um dos maiores expoentes da narrativa de “guerra” contra o vírus, seja contra esse “inimigo invisível”, como contra o visível, neste caso, com o dedo apontando sempre para a China. Uma narrativa que recupera os elementos da Guerra Fria, do conflito, para enquadrar o vírus e o cenário que deixa.
“É um erro. É uma maneira barata de justificar medidas que não poderiam ser justificadas de outra maneira. Camuflar os erros que tiveram, as coisas que não puderam oferecer, proteger as pessoas. E apontar os chineses e o vírus ou ao que for. É muito problemático e é algo que as grandes potências fizeram”, ressalta, muito crítica, tanto da administração da pandemia nos Estados Unidos (“Os Estados Unidos foram um desastre)”, como de outros países como o Reino Unido. (“O governo falhou em produzir um tipo de inteligência para que o povo entendesse a pandemia. Faltou linguagem, falta discurso”).
Para Sassen, a narrativa de criar um inimigo no vírus e de alimentar as estruturas mentais da Guerra Fria não apenas é perigoso e errôneo, mas “simples”. “Nós, como humanos, sempre tivemos inimigos, construímos inimigos. Estamos construindo o vírus como um inimigo também. É um erro vê-lo dessa maneira. Irritam-me muito esses artigos que falam do combate, de que o inimigo é o vírus. É simples demais”.
Com o vírus, entrou também um novo ator no panorama internacional. “O vírus é outro ator aqui, que nos gera uma série de pensamentos sobre como é o nosso planeta, como vamos lidar com isso. Porque vão retornar, estamos enfrentando uma realidade que não são ‘os russos que estão chegando’ - depois da Segunda Guerra Mundial eram os russos, depois os chineses... – “Agora não. Agora, somos nós que geramos essas opções para [a expansão] dos vírus”.
O que o vírus mudará em nós e em nossas sociedades? “Este vírus muda um pouco as regras do jogo. Vamos precisar mais uns dos outros. Teremos que reconhecer que somos mais frágeis”.
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“Este vírus muda um pouco as regras do jogo”, avalia Saskia Sassen, socióloga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU