26 Setembro 2020
“É improvável que a pandemia seja suficiente para superar a inércia de um sistema que combina os interesses dos poderosos e a cumplicidade passiva de suas vítimas. Passado o alerta, corre-se o risco de voltar aos negócios normais, como aconteceu após a crise econômica e financeira de 2008. Estamos sempre na lógica da competitividade. O choque precisaria ser muito mais forte”, escreve Serge Latouche, professor emérito de Economia na Universidade de Orsay, França.
A situação “sem precedentes” na qual o coronavírus afundou o mundo conduz a um decrescimento? Esta questão foi ampliada em debate público nas últimas semanas. Serge Latouche, opositor da falácia do crescimento, é um dos ideólogos mais conhecidos e referenciais do decrescimento, corrente que define não como uma alternativa concreta, mas sim como a matriz que daria lugar à eclosão de múltiplas alternativas ao “crescimento”, o que qualifica como uma crença.
O artigo é publicado por Alai, 24-09-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Com o surgimento da pandemia de covid-19, começaram a chegar pedidos de entrevista, principalmente de jornalistas italianos e franceses, mas não apenas, com o argumento de que essa pandemia desafia a tese do crescimento. Para alguns, a situação atual corresponde às previsões dos objetores de crescimento, pois poderia ser um início da realização do seu projeto; para outros, esta crise seria uma rara oportunidade de mudar o sistema.
Na verdade, as principais medidas postas em prática pelos governos para conter a epidemia parecem ter consequências “positivas”. As emissões de gases de efeito estufa caíram substancialmente na China, o ar se tornou transparente, os pequineses puderam ver um céu azul novamente, a poluição de todos os tipos foi reduzida, o canto dos pássaros pôde ser escutado novamente nas cidades, os golfinhos retornaram aos canais de Veneza, livres dos navios a vapor e dos turistas. Além disso, pela força das coisas, as pessoas percebem que podem sobreviver sem consumir muito. Aprendem a viver com frugalidade e perceberam que podem viver sem muitas coisas, sem se sentirem muito mal. Não seria conveniente, como aponta um interlocutor, “uma possibilidade de recondicionamento e, consequentemente, reaprendizagem da compaixão pelo outro, dando atenção ao que se vive, com redução forçada do consumo e do trabalho e depois adotá-la?
Como a temporalidade da reflexão teórica e filosófica não é a mesma da mídia, me contive muito em minhas reações, limitando-me a sublinhar minha incompetência nos aspectos técnicos do problema epidemiológico e a dizer que, em minha opinião, tão logo passasse a crise voltaríamos às práticas anteriores, como aconteceu após a crise de 2008. As lições aprendidas limitar-se-ão, na melhor das hipóteses, a um repatriamento relativo da produção farmacêutica, graças a intervenções estatais ad hoc que revogam os princípios sacrossantos da competitividade e do livre comércio.
Com o tempo e o recuo necessários à reflexão, esta crise parece ser, pela sua especificidade e amplitude, uma revelação particularmente forte das patologias do nosso crescimento, sociedade produtivista e consumista. No entanto, é conveniente refletir sobre o paradoxo do aspecto “sem precedentes” do fenômeno antes de considerar o que ele revela, quais seriam as consequências e que lições podemos tirar.
A mídia, que é em grande parte a causa, invariavelmente reflete a natureza excepcional do que estamos vivenciando. O que, então, é qualificado como sem precedentes? Certamente o aparecimento de uma pandemia não é, nem mesmo, a sua gravidade. Os historiadores identificam o aparecimento recorrente de pandemias desde o período Neolítico, com algumas mais graves do que a que vivemos hoje, como a Peste Negra do século XIV que teria exterminado um terço da população da Europa. Em geral, atribuem esses fenômenos às modificações nas relações do ser humano com o meio “selvagem” (vida selvagem); e no que diz respeito à origem do vírus e sua propagação, o desenvolvimento de trocas e movimentos populacionais. Mais recentemente, alguns mostraram a sua ligação com as mudanças climáticas de origem geológica e por vezes antrópica, na Antiguidade e no século XVI para o continente americano.
O que certamente não tem precedentes é a amplitude das medidas de contenção adotadas por um grande número de países, que no momento da redação deste artigo atingem mais de três bilhões de indivíduos. Se o vírus não é fatal na maioria dos casos, seu contágio é muito forte e os males que causa introduzem desordem em estruturas de saúde mal preparadas, apesar da previsibilidade do surgimento de patologias desse tipo. A atividade humana é suspensa em quase todos os lugares do planeta.
No entanto, aqueles que inicialmente apontaram o caráter benigno, senão banal, do assunto não estavam muito enganados.
Diziam que a realidade, neste momento, não está no fim do mundo, como mostram os números de mortes notificados. As estatísticas de mortos e infectados, anunciadas com grande escândalo, sem correções e sem perspectiva, a todo o momento pela mídia, como se fossem vítimas de uma guerra, contribuem para a criação de uma psicose apocalíptica. Lembremos que a gripe comum também produz mais de 150 mortes por dia na França ao longo de vários meses, sem falar nos acidentes rodoviários que produzem cerca de 1,3 milhão de mortes no mundo todo ano, sem que isso leve à proibição de circulação. Na época dos balanços, poderia parecer que outras pandemias menos recentes tiveram um impacto real mais importante. O jornalista Daniel Schneidermann, em uma crônica do diário parisiense Liberation de 23 de março de 2020, observa que a gripe de Hong Kong, entre o verão de 1968 até o inverno de 1969/70, produziu cerca de 40 mil mortes na França e um milhão no mundo e passou despercebida. Esses dados nos perguntam sobre as causas da mídia e a amplitude política da atual pandemia.
O crescimento da importância da rejeição da morte que se manifestou no fantasma das guerras de mortos-zero após as intervenções americanas no Iraque, como também é revelado nas investigações quiméricas dos transhumanistas, é transparente na cumplicidade implícita entre os poderes médico e governamental e a opinião pública. A autoridade do discurso médico e científico, grandemente ampliado pela mídia, plebiscitado pela opinião, apesar das contradições e confusões de seus porta-vozes, tornou-se uma verdadeira força vinculante, para chefes de estado – as mudanças de posição de Donald Trump e Boris Johnson são particularmente reveladoras – e ao mesmo tempo, servem de apoio às inclinações ditatoriais da Hungria de Orban e da Turquia de Erdogan, que são os exemplos mais flagrantes. Certas autoridades médicas reagem a quem dita as medidas mais restritivas e repressivas, em detrimento das liberdades.
Na verdade, é notável que tenha havido um regresso da “economia a todo custo” da sociedade em crescimento para a “saúde a qualquer custo” da primeira modernidade, após as guerras religiosas. Ou seja, entre os dois polos complementares e antagônicos da modernidade, a “bolsa de valores”, bem representada por John Locke, para quem o contrato social visa o enriquecimento dentro de um estado de direito e de “vida”, bem representado por Thomas Hobbes, para quem devemos abdicar de todos os direitos naturais em benefício de um Leviatã tutelar único fiador da mera sobrevivência e segurança, o cursor mudou na direção do segundo termo: escapar da morte, qualquer que seja o preço a pagar em termos de renúncia às liberdades e até, se necessário, sacrificar um pouco a economia.
A crise revela, antes de tudo, a extraordinária fragilidade de nossas sociedades. Muitos anos atrás, os ambientalistas mostraram que o crescimento da sociedade iria atingir a parede dos limites ecológicos do planeta Terra. Quanto mais a sociedade em crescimento desenvolve seu poder tecnológico, mais frágil ela se torna. A erupção de um vulcão islandês, alguns anos atrás, havia mostrado isso. Além disso, falhas recorrentes de energia ou panes, tsunamis e outros desastres naturais.
Quanto mais crescem a interconexão e a interdependência entre os seres humanos e entre as nações, devido ao efeito da lógica econômica e tecnológica, mais diminui a resiliência. A escassez de produtos farmacêuticos confirma isso.
Na Itália, como na França, em particular, o triunfo das políticas neoliberais e as curas de austeridade desmantelaram o Estado-provedor e os sistemas de saúde construídos após a Segunda Guerra Mundial, em benefício de um setor privado e da lógica da rentabilidade. Como resultado, tivemos que enfrentar essa pandemia com equipe médica insuficiente, estoques de material de proteção, equipamentos, número de leitos e medicamentos essenciais em falta.
Há algo patético na competição global por máscaras de proteção que não requerem nem terras raras nem alta tecnologia para serem fabricadas. Porém, seja qual for o escândalo pelo crime das políticas seguidas e da surdez dos poderes públicos perante os sinais de alarme, não devemos nos cegar, no entanto, em torno da contraprodutividade da medicina moderna. É frequentemente iatrogênico, como analisa Iván Illich, e constitui um abismo financeiro; engendra doenças nosocomiais e o enfraquecimento das barreiras imunológicas sob o efeito do abuso de drogas.
A crise do estado social também tem fundamentos muito reais que, sem desculpá-la, ajudam a explicar a contrarrevolução neoliberal de Margaret Thatcher e Ronald Reagan. A realidade é que os gastos com saúde na lógica da medicina de ponta tendem a se tornar exponenciais e incontroláveis, sem falar nos preços exigidos pelas empresas farmacêuticas. Saúde para todos neste contexto de uma sociedade em crescimento (que também apresenta crescimento quase zero) está se tornando uma meta cada vez mais difícil de alcançar. No entanto, será necessário cuidar da patologia social em vez de seus efeitos cada vez maiores sobre a saúde dos cidadãos.
Seria mais eficaz remediar os efeitos negativos da sociedade em crescimento por meio de uma ruptura radical do que por meio de uma fuga tecnológica. O programa de decrescimento defende fortemente uma reorientação da pesquisa científica, particularmente no domínio da medicina, e mediante o desenvolvimento de uma medicina doce, ambiental e de proximidade.
No plano humano e relacional, um dos efeitos mais desanimadores que nos deveriam desafiar é o fato de que a sociabilidade elementar e fundamental, apertar as mãos, beijar, foi suprimida em favor do triunfo do virtual. No passado, o gerenciamento de pandemia envolvia quarentena, mas nunca o desaparecimento do encontro real com o outro. A viralidade, não só epidêmica, também eletrônica, econômica e financeira, terrorista etc., acelerada pela globalização favorece o triunfo do virtual sobre o real, como bem viu em sua época o sociólogo Jean Baudrillard. Esse triunfo do virtual é consideravelmente reforçado pelo lugar que o digital ocupa na vida confinada. Desse modo, as objeções justificadas sobre os perigos físicos e psicológicos da exposição prolongada de crianças às telas são varridas, devido à necessidade de preservar a educação escolar, sem falar na diversão de famílias amontoadas e enclausuradas em espaços restritos. As partes do mercado digital, em detrimento da economia real, sejam livrarias Amazon ou lojas de proximidade ou mercados locais em benefício de vendas online, teletrabalho de grande distribuição, consultas a serviços médicos online, etc., crescem irreversivelmente. Nesse ponto, pelo menos, nada será mais como antes.
Estamos testemunhando o que James Lovelock chama de “vingança de Gaia”. Declaramos guerra à natureza por meio da modernidade, em vez de viver dentro dela em harmonia com ela. Ela reage para se defender e, em vez de recuar, lançamos uma nova ofensiva. Essa atitude guerreira é detestável e contraproducente. Não se mata um vírus que faz parte do que vive, mas se administra.
Parece, se acreditarmos nos especialistas em virologia, que o coronavírus vem de morcegos como muitos outros vírus e passou aos humanos diretamente (os chineses consomem a farmacopeia tradicional) ou indiretamente, por meio de outras espécies silvestres igualmente consumidas por eles, como o pangolim. A agricultura produtivista também participa da guerra contra a natureza e aplica comportamentos predatórios e não de bom jardineiro, como na permacultura e no campesinato tradicional. Contribui para o desmatamento, para os métodos de criação intensivos sem respeito aos animais, para o comércio de animais silvestres, todas atividades que favorecem o cruzamento de barreiras entre as espécies, a mutação de vírus e finalmente sua passagem do animal ao ser humano. Gripe aviária, peste suína, AIDS, SARS, são as ilustrações. No caso da pandemia atual, isso pode ser menos flagrante, mas em qualquer caso, menos direto, mas a ligação é provável. Em vez disso, parece que a saturação do ar em Wuhan e na Lombardia têm sido fatores agravantes, enquanto a globalização gerou uma propagação sem precedentes.
Que lições podemos tirar desta crise? Nada mais será como antes é o que todas as vozes autorizadas, políticas, intelectuais e até econômicas nos dizem. Nós apenas podemos acreditar, mas assim? A razão, obviamente, nos obriga a mudar de rumo. Veremos, porém, a colocação dos prolegômenos daquela sociedade de abundância frugal que desejamos, para evitar um desequilíbrio total e o desaparecimento da humanidade? Certamente, ao mesmo tempo em que alguns chamam isso de decrescimento forçado, ver-se-á – mas tínhamos visto com o movimento dos coletes amarelos – o emergir impetuoso da solidariedade, uma certa criatividade e até formas de convivialidade, virtual pela força das coisas... Mas tudo isso será suficiente para realizar a mudança necessária? Algumas pequenas mudanças podem ser previstas. Haverá uma pequena dose de protecionismo com uma certa deslocalização das empresas farmacêuticas, uma modificação das regras de funcionamento monetário da União Europeia, na perspectiva de um regresso relativo do intervencionismo estatal. Porém, a renúncia às políticas neoliberais, das quais não podemos deixar de nos alegrar, corre o risco de ser apenas provisória e a necessária “metanoia”, o questionamento dos fundamentos de nossas sociedades, ficará por ser feita.
A visão de curto prazo que domina as políticas governamentais provavelmente prevalecerá. A renúncia à religião da economia e do crescimento ainda não está na agenda. É improvável que a pandemia seja suficiente para superar a inércia de um sistema que combina os interesses dos poderosos e a cumplicidade passiva de suas vítimas. Passado o alerta, corre-se o risco de voltar aos negócios normais, como aconteceu após a crise econômica e financeira de 2008. Estamos sempre na lógica da competitividade. O choque precisaria ser muito mais forte.
E se houvesse um descarrilamento total da economia mundial? Não é impossível, mas é improvável. Agora, os governos reconheceram uma série de lições. Eles são capazes de intervir nos mercados. Obviamente, existem limites, por exemplo no caso de uma recessão. Mas acho que no contexto atual o sistema ainda é capaz de enfrentar uma recessão desde que não vire uma depressão, porque nesse momento tudo estaria fora de controle. Mesmo os aspectos ecológicos positivos seriam eliminados. Lembremos que, na época da queda da URSS, o desastre econômico e social, as emissões de CO2 caíram consideravelmente. No caso da China, a queda é considerável, mas eles já planejam recuperar o atraso.
Vários acreditaram ter visto, na suspensão da maior parte das atividades, a famosa utopia dos anos 1970 criada pelo cartunista Gebé de Charlie Hebdo, "O ano 01", que recriou a vida como deveria ser, simples, bela, satisfatória, e não como realmente é; mas, pelo menos nesta ocasião, ainda não será. Vamos manter viva a nostalgia, porém, para alimentar a esperança de uma mudança radical necessária sustentada pelo projeto de desabrochar.
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O coronavírus e o decrescimento. Artigo de Serge Latouche - Instituto Humanitas Unisinos - IHU