16 Novembro 2020
"Ele agora também é o primeiro papa a vencer as eleições presidenciais dos Estados Unidos. Não tanto porque um presidente católico foi eleito, ou porque um homem que Bergoglio despreza foi derrotado. Mas porque a administração de Trump, inclusive questionando o princípio da separação entre Igreja e Estado, tinha como alvo a unidade da Igreja Católica. Isto é, o que o papado deve defender", escreve Alberto Melloni, historiador italiano, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha, em artigo publicado por Domani, 06-11-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Bergoglio é o primeiro papa a vencer as eleições presidenciais estadunidenses. Nem tanto porque um presidente católico foi eleito. Mas porque a administração Trump tinha como alvo a unidade da Igreja Católica. Havia uma dimensão historicamente inédita do trumpismo e era a sua tentativa de dividir a Igreja Católica. Para produzir no catolicismo o cisma que já dividiu o mundo protestante. Este projeto foi derrotado por Biden, que soube se mover sem enfatizar as posições daqueles bispos que queriam negar-lhe a comunhão por sua posição sobre a legislação sobre o aborto. Poderíamos dizer de Francisco que "ele é o primeiro papa que ...". Ele é o primeiro papa jesuíta, o primeiro que nasceu e vem de uma metrópole, o primeiro que lecionou psicologia, o primeiro que sabe usar uma máquina de lavar, o primeiro com uma irmã divorciada, o primeiro que se tornou padre depois do Concílio. Ele agora também é o primeiro papa a vencer as eleições presidenciais dos Estados Unidos. Não tanto porque um presidente católico foi eleito, ou porque um homem que Bergoglio despreza foi derrotado. Mas porque a administração de Trump, inclusive questionando o princípio da separação entre Igreja e Estado, tinha como alvo a unidade da Igreja Católica. Isto é, o que o papado deve defender. Sob alguns aspectos, de fato, a política "religiosa" de Trump obedecia a algumas regras padrão do sistema democrático. Na democracia, cada ator deve dizer algumas palavras daquela língua especial que é a católica: Trump conhecia algumas delas, especialmente aquelas do conservadorismo pro life com as quais dialogar com a maior confissão do país. Na democracia, todo governo deve ter uma política eclesiástica que, segundo uma áurea definição do cardeal Silvestrini, consiste simplesmente em "tornar-se previsível". A igreja de Roma, especialmente em seus órgãos centrais, de fato odeia a improvisação e não gosta de calcular as médias: por isso não suporta quem alterne lisonjas com grosserias, não teme os antagonismos desde que sejam estáveis e não faz pouco dos carolas, desde que sejam constantes. E Trump era previsível à sua maneira.
Mas havia uma dimensão do trumpismo historicamente inédita e era sua tentativa de dividir a Igreja Católica. Produzir no catolicismo o cisma que já dividiu o mundo protestante, onde se formou uma corrente de igrejas "evangélicas" (para distingui-las das igrejas evangélicas luteranas, que são as de tradição luterana). A administração Trump queria criar um catolicismo "catolical" de três maneiras. Em primeiro lugar, explorando o ressentimento contra Francisco de um tradicionalismo integralista que encontrou uma voz tresloucada e irresponsável em um ex-núncio como Monsenhor Carlo Maria Viganò. Em segundo lugar, financiando a coordenação e presença na web de jornalistas mercenários, de miseráveis autodenominados ratzingerianos (Ratzinger os teria incinerado com duas citações): e com eles criar aquele ruído branco que em 0,57 segundos oferece 163 mil sites a quem procura "Papa Francisco herege". Em terceiro lugar, ao enviar como seu apocrisiário a Roma, Steve Bannon: que, enganando até mesmo a secretaria de Estado, dera o nome do documento do Vaticano sobre a liberdade de consciência odiado pelos lefebvrianos (Dignitatis humanae) a um centro de estudos para admiradores do soberanismo e do racismo, envolvendo em sua campanha para fazer da Liga o partido "catolical", herdeiros da Lega Norte e laranjas mafiosos.
Por fim, talvez acima de tudo, o mundo "catolical" tentou explorar a "teologia do cisto" do Papa Francisco de maneira astuta. De fato, o pontífice está convencido de que na Igreja Católica, local e central, existem dois problemas que ficaram apodrecendo por anos: o encobrimento de estupradores de menores por bispos, ineptos ou protagonistas dos próprios crimes; a indiferença diante de roubalheiras cometidas dentro e em torno da administração dos bens da Santa Sé. Problemas que remontam ao tempo, que Francisco classificou– justamente – dos “cistos". Cistos que devem estourar ou ser drenados para supurar. Não é que Bergoglio não soubesse que esse procedimento acentuava os riscos de abusos, favorecia a delação, entusiasmava a egopatia de quem vê males por toda parte dos quais quer sentir-se cuidador. Mas ele sempre pensou que o cheiro asqueroso de podridão é a premissa da cura. E a administração estadunidense foi, portanto, capaz de usar tudo o que o gesto justiceiro do papa proporcionava - mesmo ao custo de contornar as indiscrições lançando 440 páginas contra McCarrick em pdf no site vatican.va - como argumentos para retratar uma crise do governo da Igreja, favorecer a subversão até de cardeais, guiar seu pessoal Kulturkampf que pertence plenamente àquele populismo a que o pontífice argentino, até mesmo em Fratelli tutti, oferece algumas atenuantes. Sinal dessa prioridade do Kulturkampf a que Joe Biden barrou o caminho foi a nomeação de Amy Coney Barrett para a Suprema Corte. Filha de um diácono permanente, a nova juíza e sua família são membros do "People of praise", movimento nascido em 1971 a partir da experiência de Kevin Ranaghan, que agregou um grupo dos que ele mesmo descreveu como catholic pentecostals. Amy Coney exerceu o ministério de "women leader" neste movimento em que os homens têm um diretor espiritual que para as mulheres casadas coincide com o próprio marido: católica exemplar, sete filhos, três dos quais adotados e um com deficiência, a juíza que ainda não tem cinquenta anos é o exemplo de um catolicismo conservador, que faz da criminalização do aborto uma exigência e ao qual Roma até agora tinha dado apenas um sinal de estima ao nomear um dos coirmãos da juíza como bispo de Portland. E era naquele catolicismo que Trump estava procurando não pessoas para serem reconhecidas, mas figuras pelas quais ser reconhecido. Esse projeto foi derrotado por Biden, que soube se mover sem enfatizar as posições daqueles bispos que queriam negar-lhe a comunhão por sua posição sobre a legislação sobre o aborto. E assim o papa venceu suas eleições presidenciais, pela primeira vez.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Assim, o Papa Francisco venceu suas primeiras eleições presidenciais nos Estados Unidos. Artigo de Alberto Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU