13 Novembro 2020
“No final, o relatório McCarrick pode ser lembrado como o passo mais importante em direção à reforma durante o papado de Francisco, não apenas por causa do que ele revela sobre este caso particular, mas pelo precedente que ele estabelece sobre como todos os casos futuros devem ser tratados”, escreve John L. Allen Jr., em artigo publicado por Crux, 12-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Quando eu estudei Civilização Ocidental na universidade, nosso professor uma vez leu para a turma um excerto do diário de um senador romano escrito em 04 de setembro de 476 d.C.. O senador descrevia seus esforços para bajular o imperador Rômulo Augusto de 16 anos na esperança de ser apontado para algum alto cargo, talvez uma tribuna ou magistrado.
Naquele mesmo dia, Rômulo Augusto, o último imperador no Ocidente, foi deposto pelo bárbaro Odoacro, marcando aquilo que os historiadores hoje convencionalmente identificam como a Queda do Império Romano Ocidental.
Meu professor apontava que aquele que muitas vezes as pessoas viviam momentos que mudavam a história e falhavam em reconhecer essas mudanças no momento.
Esse apontamento ressurge com respeito ao tão aguardado relatório do Vaticano, publicado na terça-feira, sobre o caso do ex-cardeal e ex-padre Theodore McCarrick. Enquanto o foco, incompreensivelmente, tem sido sobre o conteúdo do relatório, o ponto histórico crucial pode ser o fato de tudo ter acontecido.
É tão impressionante, na verdade, que nos perguntamos se alguém no Vaticano realmente entende a magnitude do precedente que acabou de se abrir.
A única comparação que vem à mente data de 17 de agosto de 2011, quando o Vaticano divulgou cerca de 70 páginas de documentos em sua posse sobre o caso do padre Andrew Ronan, um padre servita que foi laicizado em 1966 e morreu em 1992 e que mais tarde figurou em um processo de abuso sexual no Oregon, no qual o Vaticano foi citado como réu.
No entanto, naquele caso, não houve entrevistas conduzidas por um investigador do Vaticano, nenhuma tentativa de fornecer contexto ou explicação, e nenhuma admissão de fracasso. Tudo o que obtivemos foram os próprios documentos, junto com uma declaração peremptória de um porta-voz de que provaram que o Vaticano era completamente inocente (Isso pode ser porque a questão no caso Ronan era se todo padre católico no mundo é um “funcionário” do Vaticano, uma noção absurda para qualquer pessoa que entenda seriamente disso).
Em outras palavras, o relatório do caso Ronan foi profundamente diferente do que aconteceu com o relatório McCarrick, que foi pesquisado e escrito por Jeffrey Lena e seus colegas. Lena é uma advogada que reside em Berkeley que representa o Vaticano em questões civis nos tribunais americanos há décadas e que também conhece bem a Itália, tendo estudado e lecionado em Milão e Turim.
Para compreender o significado total do que aconteceu, vamos dar um passo para trás. Desde 1870, quando o Vaticano perdeu sua autoridade temporal e foi compelido a se tornar um poder exclusivamente espiritual, operacionalmente ele tinha dois princípios fundamentais: sigilo e soberania. Sigilo significa que não arejamos nossa roupa suja em público para evitar escândalos, e soberania significa que não devemos uma explicação de nossas ações a ninguém.
Este relatório não apenas rompe com esses princípios, ele os destrói para sempre.
É verdade que os críticos podem achar terrivelmente conveniente que, embora o relatório culpe João Paulo II e o papa emérito Bento XVI, em grande parte isenta o papa Francisco da culpa. Concedido, também, que as vítimas e outros podem objetar que esta é uma prestação de contas sem responsabilidade e transparência, e até que alguém seja punido não apenas pelo crime, mas pelo acobertamento, o trabalho não está feito.
Ainda assim, na maior parte, o relatório é terrivelmente honesto e sai como uma tentativa genuína de chegar à verdade. Ele contém um nível de detalhe nunca antes visto. Lemos o conselho estritamente confidencial que os prelados mais antigos da Igreja deram ao decidirem promover McCarrick, recebemos os detalhes angustiantes do depoimento das vítimas e recebemos lembranças de primeira mão de altos funcionários do Vaticano do processo de tomada de decisão. Essa divulgação, nessa escala, é absolutamente nova.
A atual estrutura de poder no Vaticano merece crédito não apenas por permitir que isso acontecesse, mas por aguentar a pressão com o passar do tempo e a impaciência crescendo. Há dois anos que estamos nos perguntando por que estava demorando tanto, mas vendo o quão completo e meticulosamente detalhado é o relatório, essa questão não parece mais tão urgente.
Mais basicamente, pense sobre o precedente que este relatório estabelece. De agora até o fim dos tempos, em relação a qualquer escândalo passado ou presente, se o Vaticano se recusar a conduzir uma investigação semelhante e tornar públicos os resultados, a pergunta sempre será: por que não? O que eles estão tentando esconder?
Se eu fosse uma vítima do falecido padre mexicano Marcial Maciel Degollado, fundador da Legião de Cristo, estaria exigindo uma investigação semelhante agora para descobrir quem acobertou Maciel no Vaticano e por quê. Se eu fosse uma das supostas vítimas do bispo argentino Gustavo Zanchetta, acusado de má conduta sexual com seminaristas adultos e convocado pelo papa Francisco para operações financeiras do Vaticano, estaria clamando por meu próprio relatório McCarrick para me dizer o que o Papa soube e quando soube.
Alguém poderia continuar. No momento, outro candidato a tal inquérito pode ser o crescente escândalo financeiro de Londres e as acusações de impropriedade financeira contra o cardeal italiano Angelo Becciu. Alguns céticos acreditam que Becciu foi apontado como um substituto conveniente para todo o caso, e talvez apenas uma revisão completa na escala do relatório McCarrick poderia estabelecer o que realmente aconteceu.
Em outras palavras, tendo decidido uma vez que o sigilo e a soberania precisam ceder à transparência e à honestidade, o Vaticano nunca mais terá uma desculpa convincente para não fazer a mesma coisa quando outras falhas ocorrerem.
No final, o relatório McCarrick pode ser lembrado como o passo mais importante em direção à reforma durante o papado de Francisco, não apenas por causa do que ele revela sobre este caso particular, mas pelo precedente que ele estabelece sobre como todos os casos futuros devem ser tratados.
Assim que o gênio da transparência sair da garrafa, será terrivelmente difícil colocá-lo de volta.
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Relatório McCarrick faz história e estabelece um precedente para o Vaticano não dar passo atrás - Instituto Humanitas Unisinos - IHU