Os monopólios digitais nos oferecem "cada vez mais aquilo que reforça nossos pontos de vista e vamos tendo cada vez menos contato com o contraditório", diz o pesquisador
"Plataformocracia" é o termo empregado por Jonas Valente, doutor em Sociologia e autor da tese "Tecnologia, informação e poder: das plataformas online aos monopólios digitais", para descrever o tipo de democracia que vivemos hoje, comandada "especialmente pelos monopólios digitais". Apesar de as plataformas e sua expansão não serem um fenômeno novo nas sociedades, o pesquisador explica que elas têm gerado mudanças na forma como trabalhamos, produzimos e consumimos, especialmente na última década, em que elas transformaram seus negócios. "Elas partiram de suas grandes bases de usuários, do alcance global, do enorme volume de dados coletados de seus usuários e da sua base tecnológica para expandir suas atividades para novos segmentos. O Facebook não é mais uma rede social digital, mas entrou no mercado de dispositivos de realidade aumentada. O Google não é somente um mecanismo de busca, mas um conglomerado (Alphabet) com atuação no ramo financeiro e até de saúde. A Amazon não é um espaço de comércio eletrônico, possuindo um serviço próprio de streaming. A Microsoft não é apenas uma desenvolvedora de sistemas operacionais e softwares, mas atua no segmento de games e de plataformas corporativas", relata.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Valente comenta "a gravidade do fenômeno dos monopólios digitais" formados pelas empresas Alphabet, Facebook, Amazon, Apple, Microsoft, Tencent e Alibaba, pela "influência econômica, social, política, cultural e tecnológica" que elas exercem na sociedade. No Brasil, menciona, um país com mais de 130 milhões de usuários do Facebook, WhatsApp e YouTube, "o debate eleitoral passa por essas plataformas. E a luta por voto passou a se submeter às suas formas de funcionamento, fortalecendo ainda mais a lógica do poder econômico. Mas pior, as candidaturas aproveitam os mecanismos de direcionamento a partir dos perfis para segmentar seus discursos, permitindo o surgimento de 'candidatos de várias caras' e reduzindo a transparência do debate público eleitoral".
Valente também discorre sobre o crescimento dos monopólios digitais durante a pandemia, especialmente na área de educação. "O projeto Educação Vigiada faz um mapeamento da presença dessas plataformas. Ao celebrar contratos e convênios em que oferecem seus serviços gratuitamente ou com licenças muito baratas, essas plataformas passam a ser a base do desenvolvimento das atividades pedagógicas. O mesmo vale para o Google, com seu serviço 'classroom'. (...) Ao terem as aulas e outras atividades pedagógicas no seu interior, as plataformas ganham duas modalidades de dados. As primeiras são informações sobre competências e habilidades dos alunos, relevantes para a formação de perfil, e a segunda envolve dados sobre currículos de abordagens educacionais. Não por coincidência, essas empresas vêm avançando em seus próprios projetos de formação, como a Microsoft University e a Brazil Partner University no caso da Microsoft. Em agosto de 2020, o Google anunciou cursos técnicos, que podem inclusive em um futuro concorrer com os oferecidos pelas universidades", informa.
Jonas Valente (Foto: Arquivo pessoal)
Jonas Valente é doutor em Sociologia e mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília - UnB e graduado em Comunicação Social pelo Centro Universitário de Brasília. É integrante do Laboratório de Políticas de Comunicação da Faculdade de Comunicação da UnB, editor-assistente da revista eletrônica de Economia Política das Telecomunicações, Informação, Comunicação e Cultura - Eptic, coordenador do grupo de trabalho sobre indústrias midiáticas do capítulo brasileiro da União Latina da Economia Política da Informação, Comunicação e Cultura - Ulepicc-Brasil. Integra também o Coletivo Brasil de Comunicação Social - Intervozes, onde desenvolve projetos de pesquisa em tecnologia, informação e comunicação. Participa do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho do Departamento de Sociologia da UnB e da Rede de Pesquisa em Governança da Internet.
IHU On-Line - Como as plataformas online se transformaram em monopólios digitais? Como se deu esse processo? Pode nos dar alguns exemplos?
Jonas Valente - Vivemos em uma “plataformocracia” comandada especialmente pelos monopólios digitais. Emprego este termo não em seu sentido clássico de uma estrutura de mercado concentrada, mas como um fenômeno sociotécnico em que algumas plataformas se transformaram recentemente e tiveram sua atuação ampliada, exercendo um movimento de expansão de suas práticas de mediação social. As plataformas digitais são caracterizadas pela capacidade de colocar lados em contato, sejam estes indivíduos, organizações ou instituições. São empregados diversos termos para isso, intermediários online, plataformas online, plataformas ponto a ponto ou simplesmente plataformas. O termo difere do uso feito nas comunicações (em que o debate sobre multiplataforma, por exemplo, diz respeito a diferentes tipos de mídia) ou das engenharias e da ciência da computação, em que plataforma está relacionada à base para o desenvolvimento de softwares.
Aqui, o termo (plataformas digitais me parece mais adequado) delimita agentes que promovem uma mediação ativa (e não neutra) de interações, de transações, de produção informativa e cultural e de relações de trabalho. Elas fazem isso, por exemplo, permitindo que pessoas se comuniquem no WhatsApp, que alguém compre um produto de outro no Mercado Livre, que um indivíduo acesse uma notícia mostrada no feed de uma rede social digital como o Facebook, que um internauta encontre um site por meio de um mecanismo de busca como o Google ou que um passageiro realize uma corrida com o Uber.
Mais do que isso, vivemos um processo que alguns autores chamam de plataformização. Ou plataformas estabelecidas entram em novos segmentos, como discutirei a seguir, ou empresas antes não estabelecidas como plataformas passam a incorporar esse modelo. Se a ação das plataformas era mais visível antes na informação e na comunicação, ela se expande por todo tipo de atividade econômica. Assim, a plataformização implica mudanças na maneira como trabalhamos, produzimos e consumimos. Este tema vem ganhando atenção no campo das relações trabalhistas com o que alguns autores chamam de “uberização do trabalho”. Prefiro falar em trabalho em plataformas, pois estamos lidando com atividades com características específicas e que vão muito além do Uber. Os serviços de freelancers e microtrabalho não se equivalem à dinâmica do Uber, bem como o Airbnb ou até mesmo o YouTube.
As plataformas não são fenômenos novos. A intermediação é um fenômeno bem antigo nas sociedades e no mundo econômico. Cartões de crédito e corretores de imóveis são alguns dos exemplos. Mas nos últimos dez anos algumas plataformas avançaram para um novo modelo. Elas partiram de suas grandes bases de usuários, do alcance global, do enorme volume de dados coletados de seus usuários e da sua base tecnológica para expandir suas atividades para novos segmentos. O Facebook não é mais uma rede social digital, mas entrou no mercado de dispositivos de realidade aumentada. O Google não é somente um mecanismo de busca, mas um conglomerado (Alphabet) com atuação no ramo financeiro e até de saúde. A Amazon não é um espaço de comércio eletrônico, possuindo um serviço próprio de streaming. A Microsoft não é apenas uma desenvolvedora de sistemas operacionais e softwares, mas atua no segmento de games e de plataformas corporativas.
Esse espraiamento para novas atividades também não é novo. Temos conglomerados empresariais com atuação em diferentes áreas no Brasil e no mundo. Mas a diferença deste fenômeno específico é o modo como estas plataformas fazem isso e qual o impacto deste processo na sociedade. Por meio da combinação dos fatores citados acima, estas plataformas conseguem, como nenhum outro agente, diversificar suas atividades de forma rápida e com grande potencialidade. O maior concorrente do Tinder não é um novo app de uma startup, mas o Facebook Dating. Diferentemente de qualquer nova empresa de tecnologia, que precisa construir uma base de clientes e uma robusta infraestrutura, o Facebook já parte de 2,6 bilhões de pessoas no mundo e de uma capacidade tecnológica gigantesca. O maior concorrente da Netflix hoje não é a Disney (embora possa vir a ser), mas o Amazon Prime Video e o YouTube Premium. A Amazon entrou fortemente no Brasil a baixos preços e oferecendo pacotes casados com sua modalidade premium na plataforma de comércio eletrônico, com benefícios como frete grátis.
IHU On-Line - Que empresas fazem parte do monopólio digital hoje?
Jonas Valente - Este fenômeno ocorre fundamentalmente nas principais plataformas digitais estadunidenses: Alphabet, Facebook, Amazon, Apple e Microsoft. É também presente em grandes plataformas chinesas, como os produtos da Tencent ou o Alibaba. Outras plataformas vêm apresentando movimentos neste sentido, como a expansão do Uber para o UberEats. No plano nacional, a Globo vem fazendo um esforço, cujo maior exemplo é o Cartola F.C. e seu braço de estratégias digitais, mas ainda bastante distante dos grandes grupos globais. A escala e o alcance fazem muita diferença, como mencionado, no volume de dados e na base tecnológica.
O Google talvez seja o maior exemplo de um monopólio digital. A empresa começou focada em um mecanismo de busca no fim dos anos 1990. Já na primeira metade dos anos 2000 começou a expandir suas atividades para outros segmentos com a aquisição, por exemplo, do sistema operacional Android e da plataforma de vídeos YouTube. As aquisições são estratégias fundamentais destes grupos, seja para entrar em novos negócios, seja para fortalecer áreas meio. O Google comprou também nos anos 2000 a DoubleClick, uma empresa com expertise de marketing digital. No início dos anos 2010 comprou a Nokia para investir na área de infraestrutura, mas essa aposta não deu muito certo. A partir de seu mecanismo de busca, desenvolveu diversos novos serviços: Shopping, Finance, Flights, Books etc. Em 2015, não por acaso, criou um conglomerado com um nome próprio, o Alphabet. Os serviços mais conhecidos (busca, YouTube, Android) continuam sendo a principal fonte de renda, mas o grupo criou uma série de novos negócios que chama de “outras apostas”. Nele estão uma subsidiária de serviços de acesso à Internet (Access), uma de fabricação de dispositivos de Internet das Coisas (Nest), dois fundos de investimento (CapitalG e GV), duas companhias de desenvolvimento de inovações em saúde (Calico e Verily), um braço de construção de carros autônomos (Waymo) e a X, cujo objetivo é desenvolver qualquer tipo de solução.
A Amazon também possui braços em diversos segmentos. O grupo iniciou vendendo livros pela Internet e sua estrutura de plataforma de comércio eletrônico foi facilmente expandida para incorporar qualquer tipo de produto. Entre esses, uma plataforma de streaming. Mas a companhia não é apenas uma organizadora de catálogo. Para competir com a Netflix, teve de entrar na corrida com produções próprias, tendo se agregado um setor de mídia. A Amazon é uma das principais empresas no campo de serviços da “nuvem” (oferta de serviços acessados pela Internet, mas armazenados em seus servidores), com a AWS. O Amazon Mechanical Turk é a subsidiária de mediação de microtrabalho. O nome não poderia ser mais adequado e se refere a uma fraude no século XVIII na qual um suposto autômato jogava xadrez, mas que na verdade era controlado por um jogador por trás. O grupo é um exemplo de como o fato de ser uma plataforma (e um monopólio) digital não reduz sua atuação ao ambiente online. Uma das maiores demandas de um comércio eletrônico é logística de distribuição. Não por acaso a Amazon adquiriu a cadeia de supermercados estadunidense Whole Foods, onde pôde integrar suas vendas online e offline. Também lançou recentemente lojas de conveniência totalmente automatizadas.
A Microsoft, juntamente com a Apple, já possui um histórico no segmento de informática. A empresa se destacou por seus sistemas operacionais e programas (como o pacote Office). Logo na fase da web 1.0, focada em sites, desenvolveu seu portal MSN.com, além de aplicações online, como o MSN Messenger. O grupo adaptou seu Windows como sistema operacional para smartphones, embora com pouco sucesso. Adotando uma tática clássica dos monopólios digitais já mencionada, a Microsoft também comprou diversas empresas, entre elas a plataforma de desenvolvimento de softwares GitHub, a rede social profissional Linkedin e a divisão de dispositivos móveis da Nokia. O conglomerado também entrou no mercado de videogames com a fabricação da linha de consoles Xbox. A companhia disputa o mercado corporativo com os demais monopólios digitais com seus serviços para empresas, que vão de aplicações para organização do trabalho (como o recurso de videoconferência Teams) ao Azure, sua plataforma na “nuvem”.
O Facebook apresenta uma diversificação menor do que as anteriores, mas ainda assim atua como um poderoso monopólio digital. A empresa de Mark Zuckerberg adotou como foco o domínio completo do segmento de redes sociais digitais, fortalecendo sua plataforma e impedindo a ascensão de concorrentes pela compra deles ou por diversas práticas anticompetitivas. Ela adquiriu diversas pequenas empresas com tecnologias de conexão de indivíduos, como ConnectU em 2008, Friendster em 2010, Beluga em 2011. Mas suas grandes compras foram a do Instagram em 2012 e do WhatsApp em 2014. As duas foram ocasionadas pela capacidade de coleta de dados, que apontou a emergência dos novos concorrentes. Com o Snapchat a tentativa foi a mesma, mas malsucedida. Uma vez que não pôde incorporar o aplicativo, o Facebook copiou seu principal recurso: o formato stories. Utilizando sua base já estabelecida de usuários, o Facebook seguiu crescendo, enquanto o Snapchat, não. Mas a empresa espraiou-se sim para outros segmentos. Um deles é o de serviços corporativos em nuvem, com o Marketplace. Outro é o de realidade virtual, com os aparelhos Oculus.
IHU On-Line - Quais são as implicações econômicas, políticas e sociais de as plataformas online terem se tornado monopólios digitais? Quais são as consequências desse processo para a sociedade?
Jonas Valente - A gravidade do fenômeno dos monopólios digitais é exatamente sua influência econômica, social, política, cultural e tecnológica na sociedade. Em primeiro lugar, há um problema grave com seu modelo de negócios. Ao se basearem em serviços personalizados (sejam eles anúncios ou venda de produtos), as plataformas criam cada vez mais formas de coletar dados de seus usuários de modo a sofisticar seus mecanismos de criação de perfil para direcionar produtos e serviços seus e de terceiros. Para isso, criam arquiteturas que estimulam ou impõem a interação e o engajamento, de modo a ter mais rastros digitais, que trazem mais elementos para o detalhamento do perfil e, consequentemente, mais capacidade de personalização. E, assim, podem mapear demandas por novos serviços e produtos de uma forma que nenhum outro concorrente consegue. Este fenômeno ocorre no que chamo de “espiral da vigilância comercializada”.
De posse desses insumos, exemplos citados acima já indicam como elas se valem de práticas anticompetitivas para manter seu domínio de mercado. Embora parte dos mercados onde essas plataformas atuam sejam dinâmicos e muitas vezes difíceis de definir, em alguns segmentos esta prevalência, e até uma condição monopolista ou oligopolista, fica clara. De acordo com o site de estatísticas StatCounter, o Google possui em 2020 mais de 90% do segmento de busca. O YouTube é a maior plataforma gratuita de vídeo, com dois bilhões de usuários. O Chrome é o navegador mais popular, com 66,3% do mercado. O Android possui 74% de participação no segmento de sistemas operacionais móveis. Já o Windows domina 77% dos sistemas operacionais em desktops. Conforme o site de estatísticas Statista, em 2020 o Facebook controla as três principais redes sociais digitais: a de mesmo nome (2,6 bilhões), o WhatsApp (dois bilhões) e o FB Messenger (1,3 bilhão). A Amazon controla perto de metade do mercado de comércio eletrônico dos Estados Unidos.
Para além das estruturas de mercado concentradas, há práticas anticompetitivas. A Microsoft já foi investigada por seu sistema operacional favorecer seus aplicativos. O Google, da mesma forma, pelo fato de o Android trabalhar como apps pré-instalados da empresa. Em 2017, recebeu uma multa de 2,4 bilhões de euros da União Europeia após a descoberta de que o mecanismo de busca favorece os vídeos do YouTube e os serviços do próprio Google, como o Shopping e o Flights, em detrimento de concorrentes. Em 2019, foram abertas investigações tanto nos Estados Unidos quanto na União Europeia para avaliar novas práticas do Alphabet com impacto negativo na concorrência. A Amazon favorece seu serviço e streaming, o Prime Video, ao comercializar pacotes com seu perfil premium. Esses monopólios digitais, como dito, utilizam suas posições estabelecidas para avançar em outros negócios, favorecendo de forma cruzada seus diversos braços e subsidiárias. O Google possui uma subsidiária chamada X, cujo objetivo é desenvolver novas soluções em qualquer campo. E por que o Google pode fazer isso? Por que ao comandar uma máquina de vigilância 24 horas, sete dias por semana, o conglomerado acumula mais informações sobre a população mundial do que qualquer outra empresa.
Esta dinâmica de mediação expansiva das atividades sociais que, conforme esta plataformocracia, vai além da dimensão econômica. Essas plataformas medeiam a troca de informação e as comunicações entre os indivíduos. Longe de serem neutras, ao mercantilizarem cada vez mais seus ambientes, elas constituem jardins murados, com suas próprias regras, dentro dos quais definem quem acessa o quê de que maneira, impactando a maneira de nos informarmos e de discutirmos assuntos públicos ou privados. O Facebook vende a ilusão de um ambiente em que qualquer um pode difundir seu discurso, mas cobra para amplificar o alcance pelo modo de conteúdo patrocinado. O Google age da mesma forma seja nos resultados do mecanismo de busca, em suas lojas de aplicativo, seja na recomendação de vídeos no YouTube.
Ou seja, chega às pessoas quem tem dinheiro para isso. E isso define inclusive eleições. No Brasil, a reforma eleitoral de 2017 incluiu a possibilidade de propaganda em impulsionamento, criando uma reserva de mercado para Facebook e Google (e impedindo, por exemplo, banners em sites). Em um país com mais de 130 milhões de usuários do Facebook, WhatsApp e YouTube, o debate eleitoral passa por essas plataformas. E a luta por voto passou a se submeter às suas formas de funcionamento, fortalecendo ainda mais a lógica do poder econômico. Mas pior, as candidaturas aproveitam os mecanismos de direcionamento a partir dos perfis para segmentar seus discursos, permitindo o surgimento de “candidatos de várias caras” e reduzindo a transparência do debate público eleitoral. O caso do WhatsApp envolve uma outra dinâmica, uma vez que o app tem criptografia ponta a ponta. Ali, a arquitetura que permite a difusão com reencaminhamentos em massa vem sendo aproveitada no Brasil por grupos políticos para difundir mensagens em massa.
Esta prática é a ponta de lança de um novo paradigma calcado na coleta massiva de dados das pessoas (datificação), de processamento inteligente por algoritmos e sistemas de inteligência artificial e em aplicações que não somente preveem como modulam nossos comportamentos. Neste cenário, populações excluídas ou oprimidas servem como fontes de dados para sistemas que reforçam práticas discriminatórias. No plano global, esses monopólios digitais reforçam uma concentração da divisão social do trabalho no qual o sul global atua como fontes de dados e consumidor e o norte global, especialmente os Estados Unidos, são os proprietários das plataformas que permitem uma transferência crescente de riquezas.
IHU On-Line - Quais os efeitos da pandemia de covid-19 nestes monopólios digitais? A crise da pandemia intensificou esses monopólios ou gerou outras possibilidades?
Jonas Valente - A pandemia abriu espaço para uma ampliação da atuação dos monopólios digitais. Eles passaram a colonizar novos territórios, atividades e práticas sociais. Um exemplo é o teletrabalho. Diversas empresas passaram a utilizar esta modalidade e os monopólios digitais fornecem soluções tecnológicas neste sentido. A Microsoft tem um pacote com seus softwares de escritório e o sistema de videoconferência Teams, além do seu serviço de computação em nuvem com Inteligência Artificial Azure. O Google também tem um serviço corporativo em que sua suíte com Gmail, Drive e produção coletiva remota de documentos e informação é empregada por uma série de empresas. O Facebook possui o Marketplace, e a Amazon, o AWS. Quanto mais o trabalho ficou remoto, maior a quantidade de tarefas feitas por meio da Internet e maior a estrutura necessária para dar conta dessas comunicações. Os monopólios digitais, que já se beneficiavam da construção destes serviços corporativos a partir de sua estrutura montada para processar enormes volumes de dados, agora eram os fornecedores perfeitos.
Essas plataformas, que já mediavam a comunicação entre as pessoas, passaram a ser mais demandadas na pandemia. Com o isolamento social, conversas entre amigos passaram a ser feitas em aplicações como Google Meet ou em chats. Isso não significa que outros concorrentes não tenham ganhado espaço, e isso ocorreu, como mostra o crescimento do número de usuários da plataforma Zoom ou de outras semelhantes. As transmissões ao vivo, ou lives, passaram a ser transmitidas pelo Instagram, pelo YouTube ou pelo Facebook. Essas plataformas eram as principais de acesso gratuito por onde tais eventos puderam ser transmitidos. Com isso, tiveram sua atividade ampliada, aumentando o número de rastros digitais coletados e processados e os negócios feitos sobre eles, alimentando sua espiral da vigilância comercializada. Com a demanda por mais conteúdo na Internet para suprir o tempo livre confinado, essas plataformas também foram as principais ofertantes de serviços de streaming, ao lado da Netflix.
Uma demonstração da condição de monopólio digital foi o avanço dessas plataformas sobre a educação, que durante a pandemia passou a ser fundamentalmente remota. Algumas plataformas, principalmente Google e Microsoft, já tinham entrada nesta área. O Facebook passou a ofertar uma plataforma de educação na pandemia. O projeto Educação Vigiada faz um mapeamento da presença dessas plataformas. Ao celebrar contratos e convênios em que oferecem seus serviços gratuitamente ou com licenças muito baratas, essas plataformas passam a ser a base do desenvolvimento das atividades pedagógicas. O mesmo vale para o Google, com seu serviço “classroom”. Ao optarem pela facilidade destes recursos, as instituições de ensino entregam dados fundamentais a essas empresas. Embora haja um senso comum de que as plataformas “já possuem todos os nossos dados”, isso não é verdade. Este é o objetivo delas, e é por isso que expandem sua ação para diferentes segmentos, como agora a educação.
Ao terem as aulas e outras atividades pedagógicas no seu interior, as plataformas ganham duas modalidades de dados. As primeiras são informações sobre competências e habilidades dos alunos, relevantes para a formação de perfil, e a segunda envolve dados sobre currículos de abordagens educacionais. Não por coincidência, essas empresas vêm avançando em seus próprios projetos de formação, como a Microsoft University e a Brazil Partner University no caso da Microsoft. Em agosto de 2020, o Google anunciou cursos técnicos, que podem inclusive em um futuro concorrer com os oferecidos pelas universidades.
Por fim, durante a pandemia, as plataformas digitais também avançaram na área de saúde. O Google deu início ao processo de aquisição da Fitbit, empresa de relógios inteligentes que coletam dados biométricos e de saúde dos usuários. Em 2019, o Google já havia demonstrado sua aposta na coleta deste tipo de informação com o projeto Nightingale, em que firmou parceria com provedoras de serviços de saúde nos Estados Unidos para obter registros de milhões de pacientes. E durante uma pandemia, em que o desespero das autoridades sanitárias e das pessoas cria o contexto perfeito para qualquer tecnologia com a promessa de ajudar a combater o coronavírus, as plataformas não ficaram de fora. Apple e Google, as controladoras dos dois principais sistemas operacionais do mundo, anunciaram uma parceria para desenvolver uma plataforma vinculada a aplicações de rastreamento de contatos. A iniciativa foi duramente questionada pelos riscos à privacidade dos usuários.
IHU On-Line - Sua pesquisa de doutorado analisa como Google e Facebook são resultantes de vetores sociais de regulação e do paradigma tecnológico das TIC. Como essas empresas contribuíram para esses processos?
Jonas Valente - A tese propõe uma visão da tecnologia como algo processual e dialético em sua relação com a sociedade. Os artefatos são forjados pelas dinâmicas sociais, mas também contribuem para moldá-las de determinadas maneiras. Diversos autores trabalham com essas relações, como a abordagem da construção social da tecnologia ou a teoria crítica da tecnologia. Na minha pesquisa, propus o que chamei de modelo da regulação tecnológica. O desenvolvimento técnico ocorre a partir de necessidades sociais e dentro das estruturas de poder na sociedade.
Assim, há vetores de regulação sobre a tecnologia. Mas ele parte também do conhecimento acumulado e de paradigmas tecnológicos (como padrões de soluções de problemas consensuados ou dominantes), onde ocorre a regulação da tecnologia. Por fim, os artefatos provocam consequências sobre como as pessoas agem e como a sociedade se organiza, onde ocorre uma regulação pela tecnologia. Para além disso, se compreendemos os aparatos técnicos de forma contextualizada, devemos considerar sua inserção no capitalismo, sendo fundamental compreender estes como mercadorias que ensejam relações sociais de produção e são postos em concorrência nos mercados.
O Google e o Facebook podem ser observados desta maneira. O Google nasceu como mecanismo de busca. Havia aí uma demanda de como encontrar informações em um ambiente fragmentado como a Internet. Além disso, o Google desde o seu início teve sua gestão determinada pelo modelo financeirizado capitalista. Os primeiros investidores obrigaram a presença de um executivo com experiência, razão pela qual Eric Schmidt foi nomeado CEO em 2001. Quando abriu seu capital na Bolsa em 2004, a influência passou a ser ainda maior, com a pressão de respostas financeiras aos acionistas. O Facebook, apesar do controle por Mark Zuckerberg, também passou por este processo, tendo sua abertura de capital ocorrida em 2012.
O Facebook e o Google têm seus modelos de negócio basicamente sustentados por publicidade. Com a expansão da Internet e dos dispositivos móveis (dois exemplos de vetores sociais de regulação), as atividades online passaram a ganhar mais alcance e capacidade. Os dois monopólios digitais se tornaram uma alternativa importante como veiculação de publicidade. Em um cenário de pós-crise de 2008 em que o sistema capitalista buscava se recompor, especialmente nos EUA e no centro do capitalismo, a realização das mercadorias deve ser otimizada. Em vez de uma publicidade genérica e baseada no alcance de grandes públicos, eles permitiam a segmentação e direcionamento quase personalizado a partir da criação de perfis. Com isso, cresceram como um duopólio da publicidade digital.
Essa demanda encontrou sistemas desenvolvidos para a personalização. O paradigma tecnológico das aplicações (que devem ser baixadas em um aparelho e são mais rastreáveis), dos dispositivos móveis (mais individualizados do que os desktops) e do crescimento da informacionalização das atividades, especialmente na Internet (onde a vigilância pode se dar de diversas formas, de fingerprints a cookies que monitoram a navegação), constituíram os vetores de regulação da tecnologia aproveitados por Google e Facebook no desenvolvimento de seus sistemas e serviços. Tomando o modelo processual da regulação tecnológica, esses serviços passaram a impactar a sociedade de diversas formas, como já citado em respostas anteriores. Para além das consequências econômicas e políticas mencionadas, há estudos que indicam uma relação entre o uso do Facebook e doenças mentais ou o uso do Google e perda de memória. Esta influência, portanto, tem um espectro variado de setores.
Também podemos perceber os vetores sociais de regulação no uso para fins políticos. Com a instabilidade econômica da dificuldade de recuperação do sistema capitalista após 2008, cresceram grupos de extrema direita apresentando soluções ancoradas no ódio e ressentimento e propondo em alguns casos nacionalismo anti-imigração e em outros um entreguismo antipopular, como no Brasil. Há um grande debate em torno do papel das redes sociais no fortalecimento da extrema direita que não será possível analisar adequadamente aqui. Mas registro que essas plataformas ofereceram recursos e instrumentos potencializadores de discursos extremos que foram aproveitados por estes grupos. A lógica de potencialização dos discursos extremos ajudou a amplificar as vozes de extrema direita, das teorias da conspiração negacionistas e dos grupos supremacistas.
IHU On-Line - Havia uma expectativa de que a Internet possibilitaria a produção colaborativa. Como vê a produção colaborativa na Internet e de que modo os monopólios digitais favorecem ou atrapalham esse processo?
Jonas Valente - Como em outros momentos de solucionismo tecnológico, com o surgimento da Internet e seu desenvolvimento, também ganhou força o discurso de que a Internet seria a solução para diversos problemas ao promover acesso à informação e a possibilidade de expressão. Integro o corpo editorial da Revista Eptic juntamente com os professores César Bolaño, Helena Martins, Manoel Bastos, Rodrigo Marques e Patrícia Maurício, e a abordagem do periódico, a Economia Política da Comunicação, já mostra há tempos que se trata de uma ilusão. A Internet se desenvolveu sob o capitalismo, forjada pelas suas dinâmicas de exploração do trabalho, valorização do valor e concentração e centralização de capital. Mais importante do que a tecnologia em si, já diria Marx, são as relações sociais de produção. E a despeito da disputa por pesquisadores e defensores de uma Internet livre ao longo de sua história, a dinâmica capitalista se impôs para mercantilizar a rede desde o seu início e, sobretudo, a partir dos anos 1990.
Ao mesmo tempo em que tínhamos o surgimento dos blogs, a Web era dominada por grandes portais. Com o surgimento das redes sociais e plataformas digitais com o que foi chamado de Web 2.0, ampliou-se a possibilidade de difusão de discursos com as alternativas de criação de perfis ou de publicação de textos, imagens, vídeos e áudios em plataformas como MySpace, YouTube, Facebook, SoundCloud, Instagram e outras. Autores leram este processo sob uma lente otimista, como Pierre Lévy com sua inteligência coletiva, Manuel Castells com sua sociedade em rede ou Henry Jenkins com a sua cultura de convergência. Contudo, outros autores críticos, como Nicholas Garnham, César Bolaño, Vincent Mosco, Robert McChesney, Guillermo Mastrini e Martín Becerra, Evgeny Morozov e outros compreenderam que tal processo conformava o crescimento do poder destes agentes na construção de seus jardins murados.
Mas isso significa que não foram ampliadas as possibilidades de acesso a informações de expressão? Não. Mas temos de ler o contexto geral. Temos aí um “paradoxo da diversidade”: enquanto parece haver maior diversidade uma vez que mais pessoas podem publicar seus conteúdos, há uma concentração brutal da distribuição. E esta centralização e subordinação das pessoas às arquiteturas das grandes plataformas, especialmente dos monopólios digitais, tem impactos também no crescimento da desinformação e do discurso de ódio. Ao estimularem o engajamento, os algoritmos das plataformas impulsionam dois tipos de conteúdos: aqueles extremos, com mais condição de viralização, e aqueles de acordo com as crenças e concepções do usuário, mais fáceis de serem aceitos e compartilhados. Com isso, o fluxo cai no que autores como Eli Pariser chamam de “filtros bolha”, ou “câmaras de eco”. As plataformas nos oferecem cada vez mais aquilo que reforça nossos pontos de vista e vamos tendo cada vez menos contato com o contraditório. Esse círculo vicioso vem se mostrando perigoso com o ascenso da desinformação sob um novo patamar de alcance e velocidade e do uso desses ambientes para discurso de ódios, assédio e práticas de violência discursiva contra segmentos minorizados (como mulheres, negros, pobres, LGBTI, imigrantes e outros).
IHU On-Line - Alguns teóricos mencionam a necessidade de regular o capitalismo digital. Isso é necessário? Em que sentido?
Jonas Valente - Há um debate muito rico sobre a caracterização do capitalismo atual. Eu me aproximo dos autores que seguem afirmando estarmos na etapa neoliberal do sistema capitalista, como David Harvey, François Chesnais, Alfredo Saad-Filho, Riccardo Bellofiore, Gérard Duménil e Francisco Louçã. Mas neste neoliberalismo com dominância financeira, certamente as tecnologias da informação e da comunicação e, em especial, as plataformas digitais, produzem uma série de impactos, como já apontado. Se o sistema já necessitava das tecnologias para aprofundar os modos de exploração da força de trabalho, de otimizar a distribuição de mercadorias, de agilizar a realização e potencialização do consumo e de intensificar a circulação do capital financeiro, com a pandemia esses movimentos se tornaram ainda mais importantes do ponto de vista do capital. Não por acaso em diversos países, como no Brasil, há ofensivas contra os direitos, pela redução da participação da renda do trabalho, pela precarização das relações de trabalho, pela limitação dos investimentos em políticas sociais, pela desregulamentação do capital financeiro e pelo reforço das práticas de opressão sobre mulheres, negros, indígenas, trabalhadores e LGBTI. Uma ofensiva capitalista, patriarcal, racista e heteronormativa.
Nesta disputa, a população vem resistindo. E esta resistência passa por regulações que ampliem direitos, redistribuam a riqueza produzida, promovam justiça social, reconheçam as diferenças e coíbam a discriminação e preservem o meio ambiente. No âmbito das plataformas digitais, objeto da presente entrevista, a regulação já vem de muitos anos. Ela iniciou sobretudo no debate sobre direitos autorais a partir da ofensiva dos estúdios de música e de cinema contra o livre compartilhamento de informação e cultura, cujo exemplo é Digital Millennium Copyright Act, dos Estados Unidos, aprovado em 1996. Uma outra frente de regulação das plataformas foram as leis de proteção de dados, existentes em mais de 100 países em todo o mundo. Diante do cenário apresentado, estas são fundamentais. A Europa reformou sua diretiva em um novo regulamento geral cuja vigência iniciou em 2018, com regras importantes. No Brasil, temos uma Lei Geral de Proteção de Dados aprovada após intensa disputa e cuja validade começou em setembro. Esta deve ser conhecida e reivindicada pela população, pois a proteção dos nossos dados é um dos pilares do enfrentamento dos abusos pelas plataformas digitais. É por meio da larga coleta de informações pessoais que empresas criam e depois aproveitam em campanhas, seja no Facebook ou em disparos em massa com cadastros ilegais no WhatsApp.
No plano do conteúdo, há um debate intenso. Nos anos 2000, ganhou força a partir do Communication Decency Act dos Estados Unidos de não responsabilizar plataformas e serviços de hospedagem de sites pelo conteúdo de terceiros, uma vez que isso poderia trazer prejuízos à liberdade de expressão. Este foi o modelo, por exemplo, que inspirou o Marco Civil da Internet brasileiro, de 2014. Contudo, o passar dos anos mostrou que essas plataformas não têm qualquer neutralidade e que responsabilidades devem ser colocadas para estes agentes. Essa preocupação disparou diversas legislações sobre desinformação no mundo, inclusive no Brasil, onde é debatido neste momento o Projeto de Lei Nº 2630. A complexidade do debate mostra como não há balas de prata contra a desinformação e como não se pode combatê-la nem criminalizando os usuários, nem atribuindo mais poder às plataformas para retirada de conteúdo, mas com um modelo que combine fiscalização do Ministério Público e da Justiça, transparência nas plataformas e devido processo para evitar abusos contra os usuários.
Um debate regulatório que também vem ganhando força, embora menos do que os demais, é o no plano econômico. Embora o monitoramento da concorrência venha se dando pela dinâmica antitruste de casos concretos e não de mudança de leis, vem se fortalecendo a ideia de que os monopólios digitais possuem um poder de mercado excessivo que deve ser enfrentado. Pré-candidatos à presidência dos EUA como a democrata Elizabeth Warren defenderam a “quebra” das plataformas (como obrigar o Facebook a vender o Instagram e o WhatsApp ou o Google a vender o YouTube e o Android). Considero esta medida fundamental. As grandes plataformas digitais possuem níveis escandalosos de domínio de mercado e práticas anticompetitivas. Obrigar a quebra delas e a venda é não somente uma medida necessária do ponto de vista econômico, mas político e social.
Considero, inclusive, que é preciso ir além. Se não tocarmos na raiz do problema, ele continuará alimentando a espiral da vigilância comercializada e o controle de cada vez mais áreas da Internet e das nossas vidas. É preciso impedir a coleta de dados excessiva e a construção de perfis para a personalização de serviços. Esta prática implica um controle nunca antes visto nas nossas sociedades. Como diz Shoshana Zuboff no filme o “Dilema das Redes”, a sociedade optou por proibir a escravidão e o tráfico de órgãos. Deve optar também por impedir que o controle dos nossos desejos, pensamentos, gostos e atos seja tratado como um mercado comandado por estes agentes que conformam esta plataformocracia.